Planejamento tributário

Qual o limite jurídico dos contribuintes no desenho de suas operações e na eleição dos negócios jurídicos buscando a menor tributação possível? Em outras palavras, até onde o contribuinte pode ir licitamente para fugir da tributação? A resposta a esta questão constitui um dos capítulos mais fascinantes da Teoria Geral do Direito Tributário e muito revelador da ideologia prevalecente em cada ordem jurídica.

No Direito Brasileiro este tema, que andava adormecido, ressurgiu com a publicação do livro “Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária” de Marco Aurélio Greco. A questão doutrinária ganhou praticidade com a publicação da Lei Complementar 104/01 que inseriu parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional, autorizando a autoridade administrativa a desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Este dispositivo legal autoriza a autoridade administrativa a chamar de compra e venda um negócio jurídico formalmente de outra natureza, de doação um contrato com outra denominação etc., e exigir o tributo respectivo, desde que aquela autoridade entenda estar presente o objetivo (subjetivo) de “dissimular”, sempre observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária (ainda inexistente).

Os tipos tributários (transformados pelo legislador em fatos geradores) apóiam-se tradicionalmente na ordem jurídica brasileira em negócios jurídicos típicos (compra e venda, doação, propriedade, etc). A definição da incidência tributária aplicável depende, portanto, fundamentalmente da forma jurídica que reveste o negócio jurídico ou operação tributável. No entanto, a tentativa doutrinária de superação da forma do negócio jurídico pelo conteúdo econômico do mesmo (a chamada interpretação econômica do fato gerador) como critério definidor da incidência tributária aplicável sempre permaneceu. Nunca é demais lembrar que esta teoria tem raízes na lei tributária Alemã (Abgabenordnung) de 1919 decorrente da obra do jurista Enno Becker, e foi acolhida com prazer pelo Partido Nacional-Socialista de Hitler através da lei de Adaptação Fiscal (Steueranpassungsgesetz) de 1934.

No Brasil, coube a Sampaio Dória ainda em 1977, através da obra “Elisão e evasão fiscal”, expor as insuficiências da teoria econômica do fato gerador e do seu perigo para as liberdades individuais. Sampaio Dória bem distingue a elisão fiscal, comportamento lícito, anterior à ocorrência do fato gerador, praticado visando evitar a realização do fato típico tributário, da evasão fiscal, comportamento ilícito, posterior à realização do fato gerador e que objetiva, mediante instrumentos fraudulentos, impedir o Fisco de conhecer o fato já praticado ou alterar quantitativamente ou qualitativamente os seus contornos.

Marco Aurelio Greco, na obra supra citada, trouxe novamente o tema para o centro dos debates, apoiado em novas categorias, como abuso de direito, ato anormal de gestão e ilegitimidade de opções fiscais. Em suma, o que este autor sustenta é a possibilidade de o Fisco desconsiderar negócios jurídicos praticados com o intuito exclusivo de economia tributária e exigir o tributo que se pretendeu evitar com a eleição do negócio jurídico. O fundamento jurídico de tal teoria repousa na concepção segundo a qual iguais manifestações de capacidade contributiva (independentemente da forma através da qual sejam reveladas) devem sofrer a mesma incidência tributária.

Esta teoria foi vigorosamente contestada por Alberto Xavier no livro “Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva”. Este autor sustenta que a tributação por exigência constitucional há de se fundar em fato gerador típico previsto em lei, nunca em considerações principiológicas. O princípio da capacidade contributiva, embora constitua axiologicamente o fundamento da atividade impositiva, revela-se juridicamente como um comando constitucional de imposição legislativa, vale dizer, consubstancia um mandamento dirigido ao legislador para que este eleja os fatos econômicos manifestadores de riqueza e os qualifique legalmente como fatos geradores tributários. Fora do campo eleito pelo legislador, pode o contribuinte livremente praticar os atos negociais que entender cabíveis, desde que não simulados, podendo livremente buscar a menor imposição fiscal.

Parece-me que o tema dos limites do planejamento tributário envolve substancialmente um debate acerca da liberdade. O princípio da legalidade tributária – que entre outros significados, garante os agentes econômicos a serem tributados somente pelos atos estrita, clara e exaustivamente previstos em lei como geradores do dever tributário – sempre representou um cláusula de proteção do indivíduo contra o Estado. As ingerências do Estado sobre as liberdades individuais (sejam elas de conteúdo patrimonial ou não) somente são legítimas quando autorizadas prévia e exaustivamente em lei.

As teorias de desconsideração pelas autoridades administrativas da forma dos negócios jurídicos licitamente praticados, sem vício de simulação, acabam por menoscabar toda a simbologia  da legalidade tributária, construída historicamente a duras penas, na medida em que confere cláusula aberta ao Poder Público para validamente atuar desconsiderando “a posteriori” atos praticados em legítimo exercício da autonomia da vontade. A legalidade, como fórmula protetiva de um determinado espaço de liberdade individual, é substituída por norma de competência aberta, em descompasso com todos os princípios fundantes do Estado Democrático de Direito. A objetividade da lei é substituída pelo subjetivismo da autoridade administrativa.

Talvez por estar consciente do perigo representado pelo reconhecimento daquela competência administrativa, o Poder Público ainda não editou a lei prevendo os procedimentos necessários ao exercício da mesma. De todo modo, o tema da liberdade de planejamento tributário permite que façamos uma reflexão acerca das dimensões que o Poder pode assumir no mundo contemporâneo e do papel das liberdades individuais neste contexto.