O STF e o ICMS

É conhecimento propedêutico de Direito a afirmação de que a interpretação jurídica constitui a expressão de um ato de vontade do intérprete. Os textos normativos (Constituição, leis, Decretos, Portarias) somente ganham vida, normatividade, após serem interpretados pelos diferentes agentes encarregados pela ordem jurídica de exercer tal missão. O conhecimento acerca do que é proibido, permitido ou obrigatório apenas é obtido com definitividade após o texto normativo em questão ser objeto de interpretação por um intérprete autêntico (em geral, os juízes). Antes deste momento, o que podemos é apenas imaginar o provável resultado da interpretação ante a literalidade dos textos interpretados.

Este afirmação é importante para entender porque certas vezes somos surpreendidos por decisões judiciais antes não imaginadas. É o que aconteceu recentemente com decisão do Supremo Tribunal Federal acerca de ICMS. Aquela Corte optou por uma interpretação que, a meu juízo, mantido o respeito pelas posições contrárias, foge das finalidades do texto interpretado.

Refiro-me à decisão do Supremo Tribunal Federal que recentemente interpretou o parágrafo sétimo do artigo 150 da Constituição Federal, produto da Emenda Constitucional nº 3/93, assim verbalizado: “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.” Este dispositivo constitucional consagra a chamada substituição tributária, técnica de incidência através da qual o Fisco arrecada antecipadamente o tributo relativo a um fato gerador que, segundo um juízo de probabilidade, deverá ocorrer em momento posterior face às características da cadeia de produção e comercialização de certos produtos.

Vale lembrar que a introdução da técnica de substituição tributária no Brasil foi alvo de caloroso debate doutrinário e jurisprudencial haja vista o fato de que rompe o caráter de atualidade que deve ter a manifestação de capacidade contributiva expressa na realização do fato gerador. Em outras palavras, através da substituição tributária (e do fato gerador por ela presumido) o Fisco antecipa a arrecadação de um tributo que, a rigor, somente seria devido no momento futuro da realização do respectivo fato gerador. De todo modo, levada no passado à apreciação do Supremo Tribunal Federal a substituição tributária foi considerada como constitucional.

A polêmica relativa à validade do recolhimento antecipado de certa forma foi amainada com a Emenda Constitucional nº 3/93, que incluiu o parágrafo sétimo no artigo 150 da Constituição e na parte final do dispositivo assegurou ao contribuinte a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso no futuro não se realizasse o fato gerador presumido, sobre o qual o Fisco já teria arrecadado o tributo respectivo. Ora, se é assegurada a restituição do tributo antecipado, e mais, ainda de forma imediata e preferencial, não havia mais razões plausíveis para se continuar questionando a validade constitucional da citada técnica de incidência tributária.

Ocorre que a realidade é mais rica do que os textos normativos. Começaram a surgir casos, como é perfeitamente natural, em que o fato gerador presumido (sobre o qual o Fisco arrecadou antecipadamente) de fato se realizou, todavia em montante inferior àquele utilizado pelo Fisco para arrecadar antecipadamente. Por exemplo, imaginemos o caso em que a legislação determina que a venda (fato gerador) presumida irá ocorrer no futuro pelo valor de 100; desde logo, o contribuinte substituto deve recolher o tributo sobre esta base de cálculo. Entretanto, em momento posterior, se verifica que a venda se realizou pelo valor inferior aos 100 antes presumidos, o que, por óbvio, revela ter o Fisco arrecadado tributo a maior, devendo, portanto, promover a restituição.

No entanto, o Fisco assim não interpretou a questão. Pelo contrário, apegou-se na literalidade do artigo 150, parágrafo sétimo para afirmar que a restituição ali assegurada valia apenas para os casos em o fato gerador não se realizasse, e não para as hipóteses em que se realizasse em valor menor. Recentemente, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal que, por maioria, acatou a tese do Fisco no sentido de negar o direito a restituição de um tributo recolhido sobre um fato gerador presumido a maior do que efetivamente realizado.

O pior é observar a argumentação do Relator, Min. Ilmar Galvão, para negar o direito a restituição. Segundo este Ministro, não há interesse jurídico em verificar posteriormente o tributo pago a maior ou a menor porque a finalidade do instituto da substituição tributária, pr meio da presunção de valores, é justamente tornar viável o sistema de arrecadação do ICMS.

Ora, se a Constituição Federal assegura o direito a restituição imediata a preferencial de um tributo arrecadado antecipadamente calculado sobre uma base meramente presumida, na hipótese de o fato gerador presumido não se realizar, “a fortiori” deve ser garantida a restituição quando o mesmo se realizar em valores menores que o presumido. Esta é interpretação mais razoável para a questão pela simples razão de que atende à finalidade buscada pelo art. 150, parágrafo sétimo da Carta, qual seja, a de não permitir a arrecadação de um tributo em valores maiores do que o devido na forma da lei e da Constituição. Todavia, como afirmei no início desta reflexão, nunca estamos livres de surpresas na interpretação jurídica.

De todo modo, se as razões adotadas pelo Supremo neste caso se sucederem no futuro, devemos todos dar viva às “finalidades arrecadatórias” e nos despedir da Constituição Federal e do conjunto de garantias individuais que ela assegura.