Noventena

O debate em torno da prorrogação da CPMF trouxe em seu bojo tema que merece uma pequena reflexão. Refiro-me à tese segundo a qual seria possível e válida Emenda Constitucional que reduzisse o prazo da anterioridade nonagesimal para a eficácia de leis que instituam ou modifiquem contribuições sociais de seguridade social. Segundo esta tese, o que a Constituição Federal vedaria, por configurar cláusula pétrea, seria apenas a proposta de Emenda Constitucional que tendesse abolir a referida garantia dos contribuintes, sendo válida a redução do seu alcance.

O STF, no caso IPMF (ADIn 939-0), decidiu que a anterioridade geral dos tributos revela-se no contexto constitucional como uma cláusula pétrea, inalterável inclusive através de Emenda Constitucional. Logo, a Emenda Constitucional 3/93 não poderia excepcionar o recém-criado imposto da obediência daquela garantia pétrea. Em outras palavras, na ADIN 939 fica claro o posicionamento do STF de que, por configurar cláusula pétrea na ordem constitucional, nenhum tributo (nem mesmo aqueles que vierem a ser criados pelo constituinte derivado) poderia estar livre de obedecer à limitação da anterioridade.

Diante deste precedente do STF, e considerando que a noventena constitui, a rigor, uma variação técnica da mesma garantia constitucional, parece-me óbvio que o legislador constituinte derivado não poderia criar novas contribuições sociais e excepcioná-las da obediência desta garantia. Segundo expressa previsão constitucional (art. 195, § 6º), a anterioridade nonagesimal aplica-se não só à instituição de contribuições sociais, mas também a leis que modifiquem a sua regência. Por esta razão, parece clara a inconstitucionalidade da “prorrogação” da exigência da CPMF sem obediência à noventena, como se prorrogação não significasse modificação do regime jurídico válido até então.

Autores como Robert Alexy e Ronald Dworkin ensinam que as normas jurídicas estruturalmente consubstanciam regras ou princípios, espécies que se diferenciam pela forma segundo a qual veiculam (e concretizam) seus mandamentos. As regras valem como um “tudo ou nada” (“all or nothing”), isto é, caba ao intérprete simplesmente verificar se os seus comandos são cumpridos ou não. Não há outra alternativa possível. Por exemplo, cabe ao intérprete do direito constatar se alguém cometeu ou não um crime previsto na legislação, ou seja, se houve ou não obediência à regra que proíbe a prática de crimes.

Os princípios, por outro lado, têm a sua validade condicionada a um juízo de sopesamento, balanceamento, equilíbrio, flexibilização. Por exemplo, não se pode dizer que o princípio da livre iniciativa empresarial é ofendido quando o Poder Público impõe obrigações a serem cumpridas pelos empresários em nome do interesse público. Vale dizer, razões de interesse público, sopesadas com o princípio da livre iniciativa, autorizam a imposição limitações a este princípio, sem que as mesmas possam ser atacadas de inconstitucionais, desde que sejam razoáveis.

Na Constituição há regras e princípios. Todavia, garantias como da anterioridade tributária tecnicamente consubstanciam autênticas regras jurídicas, na medida em que valem como um “all or nothing”, isto é, não admitem ponderações ou balanceamentos como os princípios jurídicos (livre iniciativa, livre concorrência, vedação ao confisco, modelo federal de Estado etc.). Esta é a razão pela qual acredito ser inconstitucional Emenda Constitucional que pretenda alterar (diminuindo) a anterioridade nonagesimal. Diminuir o período de anterioridade significa abolir a garantia atualmente existente e a criar uma outra garantia diferente (e menor), o que me parece, diante do precedente do STF, ofenderia o art. 60, § 4º da CF.

Ora, na forma em que está formulada a garantia da anterioridade não se pode admitir ponderações no âmbito de validade da mesma que impliquem a redução do seu alcance. A questão seria diferente se o constituinte tivesse assegurado um “princípio geral de não surpresa do contribuinte”, sem definição de marco temporal (ano civil ou noventa dias). Se tal tivesse ocorrido, poderíamos cogitar de flexibilização da garantia, já que teria a Constituição assegurado uma garantia não em termos de regra jurídica, mas de princípio jurídico (norma que admite ponderações e sopesamentos em nome do interesse público e da concretização de outras normas do sistema jurídico). Todavia, repito, isto não ocorre com a Constituição ainda em vigor.

Ninguém é obrigado a concordar com a interpretação do STF para a garantia da anterioridade formulada na ADIN 939, mas o que não se pode negar é que a mesma significou um marco na Jurisprudência constitucional brasileira na medida em que petrificou uma garantia que tecnicamente constitui uma mera regra jurídica. Em nome da estabilidade da ordem constitucional (construída sobretudo através da Jurisprudência do STF), parece-me que a anterioridade nonagesimal deva receber a mesma exegese.

O STF não foi “inflexível” na ADIN 939, apenas decidiu uma questão dentro das possibilidades normativas que a questão apresentava. Vale dizer, como se estava diante de uma garantia jurídica expressa em termos de regra jurídica (e não de princípio, no que tange à possibilidade de flexibilização), cabia àquela Corte tão somente decidir se a EC 3/93 podia ou não excepcionar a anterioridade. Em outras palavras, se a regra da anterioridade tinha sido obedecida ou não pela EC 3/93.

Flexibilização de regras como a da anterioridade (geral ou nonagesimal), significa a revogação da garantia existente e a subseqüente criação de outra. Logo, se a garantia é pétrea, não pode ser flexibilizada, sobretudo para diminuir o seu alcance. Qualquer tentativa do Congresso Nacional neste sentido revela-se absolutamente inconstitucional por ofensa ao art. 60, § 4º da Carta.