Amplitude da anistia

Pouco tempo atrás escrevi algumas linhas neste espaço comentando o alcance da anistia de créditos tributários federais veiculada pela Medida Provisória 38. Em síntese, sustentei naquela oportunidade o caráter restritivo da norma então comentada. Todavia, refletindo melhor sobre o tema, alterei parcialmente as minhas conclusões e, em respeito àqueles que me brindam com a paciência de ler minhas reflexões, sinto-me obrigado a expor as razões que me conduziram ao novo posicionamento.

A razão de toda a controvérsia está na redação confusa e pouco clara do artigo 11 da Medida Provisória 38 (norma-matriz da anistia), especialmente na referência que este artigo faz às “condições estabelecidas pelo artigo 17 da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, e no 11 da Medida Provisória nº 2.158, de 24 de agosto de 2001”.

O artigo 17 da Lei 9.779/99 (com a redação dada pelo art. 10 da MP 2.158-35) estende os benefícios da anistia a) aos casos em que o STF tenha julgado a constitucionalidade de um tributo discutido pelo contribuinte, b) às raríssimas hipóteses em que o contribuinte tenha vencido uma batalha judicial e ainda assim deseje recolher o tributo declarado indevido e, finalmente, c) aos processos judiciais ajuizados até 31 de dezembro de 1998, exceto os relativos à execução da Dívida Ativa.

Aqui surge o primeiro problema. Enquanto o art. 17 da Lei 9.779/99 limita o benefício aos processos judiciais ajuizados até 31 de dezembro de 1998, o artigo 11 da MP 38 (norma posterior) estende o benefício a ações judiciais ajuizadas até 30 de abril de 2002. E mais: este dispositivo da MP 38 não excepcionou os processos relativos à execução da Dívida Ativa do benefício da anistia, como havia feito o artigo 17 da Lei nº 9.779/99.

Em outras palavras, a norma do artigo 11 da MP 38 contempla uma anistia mais ampla do que aquela veiculada pelo art. 17 da Lei nº 9.779/99, e por ser norma posterior regulando a mesma matéria deve prevalecer sobre a disciplina desta última Lei, por força do princípio segundo qual lei posterior derroga lei anterior quando regular a mesma matéria.

Ora, parece-me claro (pelo menos neste momento) que a norma do artigo 11 da MP 38 é mais ampla do que aquela do art. 17 da Lei 9.779/99, pois a um só tempo: a) alargou o benefício para os débitos relativos a fatos geradores ocorridos até 30 de abril de 2002, objeto de ações judiciais ajuizadas até esta data e b) não retirou os débitos já objeto de processo de execução fiscal do rol dos casos beneficiados pela anistia. Logo, a norma da MP, por ser posterior, deve prevalecer sobre a disciplina da Lei nº 9.779/99 por tê-la derrogado naquilo que disciplinou diferentemente.

Esta maior amplitude da norma anistiante é confirmada pela remissão que o art. 11 da MP 38 faz ao artigo 11 da MP 2.158-35, norma que estende o benefício da anistia aos débitos de qualquer natureza, junto à Secretaria da Receita Federal ou à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, desde que o contribuinte tenha ajuizado até 31 de dezembro de 1998 qualquer processo judicial onde o pedido abrangia a exoneração do débito, sob qualquer fundamento.

Comparando-se a norma do art. 11 da MP 38 (posterior) com a norma do art. 11 da MP 2.158-35 (a qual a primeira se remete), verificamos que a) ambas coincidem quanto à abrangência material do benefício, isto é, qualquer débito com o Fisco Federal, inscrito ou não na Dívida Ativa da União poderá ser quitado nos termos da anistia, e b) diferem quanto ao prazo-limite das ações judiciais ajuizadas pelo contribuinte para discutir uma imposição tributária, prazo este que nos termos da MP 2.158-35 era 31 de dezembro de 1998 e nos termos da MP 38 é 30 de abril de 2002.

Temos então a mesma situação antes comentada, isto é, norma posterior regulando diferentemente matéria antes regulada por outra norma. Neste sentido, o dispositivo da MP 2.158-35 que regulou o marco temporal das ações judiciais alcançadas pelo benefício da anistia foi derrogado pelo art. 11 da MP 38, norma posterior que deve prevalecer.

A tarefa do intérprete em situações como a ora comentada é de procurar compreender o sentido da norma posterior (MP 38) preenchendo-o com as condições por ela contempladas através da remissão a normas anteriores. Contudo deve-se retirar das regras passadas tudo o que conflitar com a norma posterior. No caso presente, pode-se concluir que a anistia tem a sua amplitude definida basicamente pela norma-matriz (art. 11 da MP 38) e abrange débitos de qualquer natureza com o Fisco Federal, inscritos ou não na Dívida Ativa da União (condição prevista no art. 11 da MP 2.158-35), sendo ou não objeto de processo de execução fiscal já ajuizado, e que sob qualquer fundamento tenha sido objeto de processo judicial ajuizado até 30 de abril de 2002.

Vale ressaltar que, salvo melhor juízo, o débito ainda não inscrito na Dívida Ativa somente pode ser alcançado pela anistia quando tenha de alguma forma sido objeto de processo judicial promovido pelo contribuinte (ação declaratória, ação anulatória. etc), o que parece paradoxal e ofensivo à isonomia na medida em que não se permite que um contribuinte ainda em fase de discussão administrativa quanto à validade do débito – legítimo exercício do direito constitucional ao devido processo legal na esfera administrativa – possa se valer do referido benefício.

Enfim, a regulação normativa da anistia está extremamente confusa e lacunosa, o que vem impedindo o regular exercício do benefício que se pretendeu conferir aos contribuintes em dívida com o Fisco Federal, ao conferir larga margem de apreciação intelectiva a autoridades nem sempre dotadas da necessária compreensão da finalidade da norma, o que torna imprescindível e urgente uma regulamentação complementar que inclusive retire de tal norma o que ela tem de anti-isonômica.