Penalidade e razoabilidade

Característica marcante da relação Fisco-contribuinte no Brasil é a excessiva litigiosidade. O volume de ações de natureza tributária nos escaninhos das varas judiciárias deste país é fato notório a corroborar aquela assertiva. Várias são as causas deste conflito aparentemente insolúvel e crescente, desde a excessiva carga tributária, o que estimula a inadimplência, até a complexidade da legislação tributária, que, não raro, conduz ao seu descumprimento involuntário pelo contribuinte.

No entanto, a experiência demonstra que o próprio Poder Judiciário revela-se fonte geradora de conflitos de natureza tributária, haja vista a absoluta irrazoabilidade de algumas interpretações formuladas no âmbito deste Poder que, ao invés de contribuir para a redução do nível de litígios, maximizando a eficácia dos desideratos do legislador tributário, pelo contrário caminha no sentido inverso.

Exemplo candente desta percepção da realidade é revelado por recente decisão de uma das Turmas de Tribunal Regional Federal acerca da imposição de multa moratória ao contribuinte que declarou em documento fiscal (DCTF) a existência de débito fiscal, mas o recolheu fora do prazo legal, acompanhado apenas de juros de mora, por entender aplicável a regra do artigo 138 do Código Tributário Nacional, consagradora da chamada denúncia espontânea da infração.

Segundo aquela decisão, o tributo declarado pelo contribuinte e pago fora do prazo do vencimento deve ser realizado com acréscimo de multa e que não cabe a denúncia espontânea em relação aos débitos declarados por meio da Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, já que a existência da dívida foi comunicada ao Fisco no momento da entrega da declaração. Entendeu-se que, no caso dos tributos sujeitos ao regime de lançamento por homologação, se declarados na DCTF e não pagos no prazo legal, a sua cobrança decorre do autolançamento, sendo exigíveis independentemente de notificação prévia ou de instauração de procedimento administrativo. Além disso, não se configura como denúncia espontânea o pagamento a destempo de débitos anteriormente declarados à Receita Federal por meio de declaração, porquanto inexiste confissão sobre débito conhecido pelo Fisco, mas simples pagamento de débito constituído pelo autolançamento.

Em outro dizer, o chamado lançamento por homologação ou autolançamento é aquele através do qual o contribuinte apura o tributo devido, declara-o ao Fisco em documento oficial (DCTF) e promove o seu recolhimento. Esta sistemática tem o condão fundamental de informar ao Fisco a ocorrência do fato gerador tributário, facilitando a tarefa de fiscalização do contribuinte que declara, bem como daqueles outros com os quais este tenha realizado operações.

A norma do artigo 138 do Código Tributário Nacional, por seu turno, estabelece que a responsabilidade tributária é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância fixada pela autoridade administrativa, quando o montante depender de apuração.

No caso ora comentado, o que a citada decisão esta a afirmar é o seguinte: a norma que garante a exclusão da multa moratória quando houver denúncia espontânea da infração somente alcança o contribuinte que nada declara ao Fisco, escondendo deste a realização do fato gerador, situando-se à margem da lei tributária. Este contribuinte que nada declarou, ainda segundo aquele Tribunal, enquanto não estiver submetido a procedimento de fiscalização poderá denunciar a infração e recolher o tributo acrescido apenas de juros de mora, sem qualquer penalidade.

Por outro lado, ainda segundo aquela interpretação judicial, o contribuinte que cumpriu a legislação, isto é, que declarou ao Fisco a realização do fato gerador, mas que, por qualquer razão, não efetuou dentro do prazo legal o recolhimento tributário, não tem direito ao favor legal de apenas recolher o tributo acrescido de juros de mora, enquanto não estiver submetido a processo de fiscalização. Vale dizer, nos termos daquela exegese, quem declarou, cumpriu a lei, informando o Fisco, não tem direito ao favor legal e aquele que nada declarou, escondeu do Fisco a prática de fatos tributáveis, tem direito aquele benefício legal.

A irrazoabilidade da interpretação é patente e fruto de uma inadequada compreensão da natureza do instituto da denúncia espontânea em nosso ordenamento jurídico. A norma do artigo 138 do Código Tributário Nacional está entre aquelas que a Dogmática denomina “normas de direito premial” cujo objetivo não é reprimir, sancionar negativamente ações, mas induzir a prática de certos comportamentos desejados pelo legislador, mediante a adoção de estímulos normativos, autênticos prêmios àqueles que realizam estas condutas.

O legislador tributário através da citada norma deseja que o contribuinte promova espontaneamente a denúncia de infração tributária que tenha cometido e recolha o tributo respectivo. Para atingir tal finalidade, dispensa-se o contribuinte faltoso da multa moratória que seria devida, caso aquela norma inexistisse. Qualquer interpretação do alcance daquela norma deve inexoravelmente contemplar este objetivo: premiar o contribuinte infrator, dispensando-lhe a penalidade, desde que promova o recolhimento desejado pelo legislador.

A decisão judicial ora comentada caminha em sentido oposto: retira o direito ao favor legal do artigo 138 do CTN ao contribuinte que declarou ao Fisco a ocorrência do fato gerador tributário, e premia com aquele benefício legal o contribuinte que descumpre a legislação que estabelece o dever acessório de declarar ao Fisco o fato tributário.

A prevalecer o entendimento expresso na citada decisão judicial, no que não acredito, melhor será o contribuinte esconder-se do Fisco, não cumprindo o dever legal que lhe cabe de declarar em documento oficial a prática do fato gerador tributário e, mesmo fora do prazo legal, mas antes de qualquer processo fiscalizatório, recolher o tributo devido acrescido apenas de juros de mora.

São interpretações irrazoáveis como a supra comentada que contribuem para o acirramento do conflito entre Fisco e contribuinte, aumentam o já insuportável número de processos judiciais de natureza tributária em nossos Tribunais e que, lamentavelmente, são pouco atingidas pelas reformas constitucionais que objetivam a eficiência do Poder Judiciário, em nome do cidadão.