A nova contabilidade e o Direito Tributário

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 15.05.2019

A tributação se apoia sobre fatos econômicos captados pelo legislador como manifestações de capacidade contributiva. Estes fatos econômicos são traduzidos e mensurados pela contabilidade como instrumentos de demonstração do patrimônio, dos fluxos de caixa e da geração de benefícios pelas entidades econômicas (pessoas jurídicas).

O relacionamento entre a norma tributária e a norma contábil nunca foi tranquilo tendo em vista a circunstância de que, embora capturando um mesmo fato econômico, aquelas normas têm objetivos e perspectivas diferentes. Enquanto a norma tributária identifica os fatos econômicos e os categoriza segundo as formas jurídicas próprias do direito positivo, a contabilidade os toma a partir de sua essência econômica sem consideração quanto aos seus aspectos jurídico-formais.

O fato é que há pontos de contato entre normas tributárias e normas contábeis, mas também há situações cuja regulamentação difere substancialmente. Não existe supremacia entre as duas normas, o que há são diferentes perspectivas do fenômeno econômico subjacente. Todo processo interpretativo deve considerar os contextos semântico (investigação do sentido dos signos linguísticos), sistemático (identificação do sistema de normas no qual o texto interpretado está inserido) e finalístico (afinal, qual o objetivo visado pelo texto interpretado). Considerados os diferentes contextos, é possível a convivência entre a norma tributária e a norma contábil.

Com a alteração veiculada pela Lei 11.638/07 ao art. 177, parág. 5o da Lei das Sociedades Anônimas, o Brasil iniciou o processo de convergência das normas contábeis brasileiras ao padrão contábil internacional, o qual vem ocorrendo através da incorporação ao direito brasileiro das normas (os chamados International Financial Reporting Standards – IFRS) expedidas pelo International Accounting Standards Board – IASB.

Este processo de incorporação se materializa através da adoção dos IFRS pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, grupo de trabalho sem personalidade jurídica que funciona junto ao Conselho Federal de Contabilidade – CFC. Integram o CPC, a Abrasca, o Apimec nacional, a Bovespa, o Conselho Federal de Contabilidade – CFC, o Fipecafi, o Ibracon e outras entidades que também são convidadas (Receita Federal, Banco Central), nos termos da Resolução CFC 1.055.

O processo de convergência contábil seguiu com a edição da Lei 11.941/08 que criou o Regime Tributário de Transição – RTT, que objetivou regular e neutralizar a inserção das então novas normas contábeis, e foi seguido pela Lei 12.973/14 que extinguiu o Regime Tributário de Transição – RTT e formulou adaptações à legislação tributária necessárias e decorrentes da implantação dos padrões internacionais de contabilidade à realidade brasileira.

A chamada nova contabilidade formulou uma virada copernicana no padrão de contabilidade até então adotado no Brasil, alterando regras de reconhecimento, de mensuração e de evidenciação de fatos econômicos à luz da contabilidade.

Quanto ao reconhecimento dos fatos contábeis, passou do antigo padrão apoiado na forma jurídica, por influência que o direito exerceu sobre a contabilidade no Brasil, muito em razão do atendimento de demandas tributárias, para a adoção do princípio da essência econômica. No que tange à mensuração dos fatos contábeis, o custo histórico deu lugar à regra do valor justo, valor presente e vida útil dos bens. Por fim, os critérios de evidenciação do patrimônio, antes pobres do ponto de vista informacionais, passaram a ser regulados pelo princípio da ampla divulgação e máxima fidedignidade.

É considerável o impacto que o processo de convergência contábil exerce sobre a apuração dos tributos, especialmente aqueles incidentes sobre a renda e o lucro, tendo em vista o fato de que o ponto de partida da base tributável é o lucro líquido societário apurado segundo as novas normas contábeis.

Diante deste fato, o legislador editou a Lei 12.973/14 objetivando neutralizar fiscalmente situações onde a adoção da norma contábil pode gerar um efeito tributário indesejado ou incompatível com a ordem constitucional. Como o processo de convergência contábil ainda está em curso, esta Lei contém ainda norma jurídica (art. 58) autorizando a Receita Federal a expedir instruções normativas adaptando os efeitos fiscais às eventuais novas regras e critérios contábeis que venham a ser veiculados pelo CPC.

Portanto, a nova contabilidade abre um novo e interessante campo de indagação e desafios para o Direito Tributário, notadamente no que tange à convivência de dois sistemas de normas concebidos com diferentes finalidades.