Segurança jurídica e tributação

“Segurança jurídica e tributação”, in “LIMITAÇÕES AO PODER IMPOSITIVO E SEGURANÇA JURÍDICA”. São Paulo, Centro de Extensão Universitária/Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 266-287, obra coletiva coordenada por Ives Gandra da Silva Martins.

 

1) As limitações constitucionais ao poder de tributar são cláusulas pétreas? Entre elas as imunidades?

O Sistema tributário brasileiro apóia a sua articulação racional em dois pilares: a discriminação constitucional de competências tributárias e as limitações constitucionais ao poder de tributar.

A Constituição Federal brasileira consagra a expressão “limitações do poder de tributar” como epígrafe da seção II, do capítulo I (Do Sistema Tributário Nacional), do Título VI (da tributação e do orçamento).

Na disciplina das limitações ao poder de tributar, a Constituição Federal contempla uma grande variedade de direitos e garantias individuais em matéria tributária, entre os quais destacam-se os mais fundamentais princípios jurídicos em matéria de tributação (como a legalidade e a igualdade) e algumas imunidades tributárias.

A primeira observação digna de registro atine à circunstância de que o rol de regras e princípios protetivos inscritos na seção constitucional dedicada às limitações do poder de tributar (arts. 150 a 152) não é exaustivo. Esta conclusão decorre da própria literalidade do artigo 150 da Carta Política, segundo o qual “sem prejuízo de outras garantias aseguradas ao contribuinte, é vadado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: …”.

A Constituição Federal, em matéria de tributação, consubstancia um “sistema de limites” articulado com a finalidade precípua de proteger o indivíduo contra o exercício desmedido do poder tributário pelo Estado. As competências tributárias deferidas aos entes políticos são instrumentos de afirmação dos direitos dos indivíduos face à autoridade estatal e somente se justificam constitucionalmente quando o seu exercício se revela compatível com aquela finalidade protetiva.

Por assumir este caráter de garantia contra o arbítrio tributário, a Constituição alberga um extenso rol de limitações ao poder de tributar, o qual não se esgota na seção II, do capítulo I, do Título VI, da Carta Política, epigrafada “das limitações do poder de tributar”. Com efeito, as limitações ao poder de tributar estão espraiadas por todo o Texto Constitucional. Onde houver um direito individual, coletivo ou difuso (enfim uma prerrogativa individual em sentido lato) sendo sufocado pelo exercício do poder tributário, aí haverá uma limitação constitucional ao exercício deste poder.

Entre as limitações constitucionais ao poder de tributar destacam-se as imunidades tributárias, normas constitucionais que consagram espaços de intributabilidade, referidos subjetiva ou objetivamente, a pessoas ou bens e situações, respectivamente.

Por consubstanciarem espaços de intributabilidade, as imunidades tributárias encontram-se espalhadas por todo o Texto Constitucional e aludem às diferentes espécies tributárias.

A Constituição Federal contempla, por exemplo, imunidade tributária à imposição de taxas, no artigo 5º, XXXIV, ao assegurar a todos, independentemente de contraprestação tributária, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, bem como a obtenção de certidões em repartições públicas para defesa e esclarecimento de situações de interesse pessoal.

São também exemplos de imunidades tributárias relativamente às taxas: a gratuidade de custas judiciais para a propositura de ação popular (art. 5º, LXXIII), de habeas data e habeas corpus (LXXVII), a gratuidade do registro civil de nascimento e de óbito aos reconhecidamente pobres (5º, LXXVI, a e b) bem como do ensino público em estabelecimentos oficiais (art. 206, IV da Carta), sendo o ensino fundamental obrigatório e gratuito, concebido pela ordem constituicional como direito público subjetivo de todos os submetidos à Constituição brasileira (art. 208 da CF).

A Constituição Federal também impõe limites imunizantes à incidência de contribuições. Exemplo deste desiderato constitucional encontra-se na consagração do direito fundamental à assistência social, independentemente do pagamento de contribuição, por quem dela necessitar (art. 203 da Carta Política). Este comando constitucional expressa o compromisso normativo que o constituinte assumiu com a assistência aos desvalidos e necessitados, manifestação do ideal de igualdade jurídica tomado como objetivo da República brasileira pelo art. 3º da Carta.

O Texto Constitucional (art. 150, VI) imuniza da incidência de impostos o patrimônio, renda ou serviços dos entes políticos, os templos de qualquer culto, o patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, das entidades sindicais de trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, nos termos da lei, e os livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.

O importante é registrar que as imunidades tributárias expressam o compromisso constitucional com alguns valores fundantes da República brasileira, na visão do constituinte originário, razão pela qual, sob o ponto de vista da sua função eficacial, as regras constitucionais de imunidades tributárias assumem uma dupla função.

Utilizando a dicção de Tércio Sampaio Ferraz Júnior[1], pode-se afirmar que as imunidades tributárias exercem uma função de bloqueio porque objetivam impedir, bloquear, atitudes do legislador que conduzam à tributação de certas pessoas ou situações protegidas constitucionalmente, segundo a valoração do legislador constituinte de 1988.

Sob outra perspectiva, as imunidades tributárias também desempenham uma função de programa,  na medida em que expressam o desejo constitucional de promoção de políticas públicas (ações), livres de tributos, que visem ao alcance de determinados resultados qualificados positivamente pelo constituinte. Vale dizer, as imunidades tributárias livram certos fatos/pessoas da incidência de tributos como instrumento para a realização de certas metas almejadas pelo constituinte.

As normas de imunidades tributárias têm, assim, acentuado caráter axiológico, porquanto representam o compromisso constitucional com certos valores constitucionalmente protegidos, que estão, via de regra, ligados ao exercício de prerrogativas individuais inalienáveis e insuscetíveis de supressão por qualquer processo de reforma constitucional.

Por outro lado, a Constituição Federal impõe limitações ao poder de reforma constitucional de diferentes naturezas.[2] Limites circunstanciais que objetivam evitar a alteração constitucional em momentos de instabilidade institucional e democrática, como o Estado de Sítio, Estado de Defesa e Intervenção federal formalmente decretada (art. 60, § 1º, CF). Limites materiais referem-se a certos temas que, pela importância, não podem ser objeto de veiculação por Emendas Constitucionais: formam as chamadas “cláusulas pétreas” ou “cláusulas de eternidade” (art. 60, § 4º, CF). Limites processuais ou formais que concernem ao processo de deliberação da norma de reforma constitucional, via de regra no sentido de impor maior debate e representatividade às propostas de modificação da Carta Política (p. ex., quorum qualificado e votação em dois turnos, previsto no art. 60, CF). Por fim, existem os limites implícitos dirigidos aos próprios pressupostos de rigidez constitucional.

Os limites materiais ou “cláusulas pétreas” na ordem constitucional brasileira são a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º). Proposta de emenda constitucional que “tenda a abolir” qualquer destas garantias constitucionais não será sequer objeto de deliberação congressual.

As imunidades tributárias, conforme exposto, representam espaços de intributabilidade que, via de regra, justificam-se pela proteção de alguma prerrogativa individual reputada como valiosa pelo constituinte originário. Neste sentido, as imunidades tributárias estão conectadas axiologicamente com os direitos e garantias individuais, razão pela qual estão protegidas do poder de reforma constitucional.

A Constituição Federal instaura e fundamenta o poder tributário, o qual nasce delimitado pelo conjunto de espaços de intributabilidade já previstos na Carta Política, em caráter inaugural. Vale dizer, o poder tributário têm os seus limites originariamente definidos pelo constituinte de 1988. Qualquer tentativa de ampliar os limites do poder tributário, através de instrumentos de reforma constitucional, configura “fraude à Constituição” e manifesto atentado ao disposto no artigo 60, § 4º , da Carta Política, norma que protege os direitos e garantiais individuais contra qualquer emenda constitucional que objetive suprimir-lhe a eficácia.

As limitações constitucionais ao poder de tributar são expressões de valores constitucionais, e configuram (dão forma) ao poder tributário, razão pela qual são insuscetíveis de supressão ou redução. Se as limitações constitucionais ao poder de tributar pudessem ser livremente reduzidas ou suprimidas pelo constituinte derivado, esvaziada estaria sua função de proteção contra o arbítrio estatal.

Como garantias individuais do contribuinte contra o arbítrio estatal, as limitações constitucionais ao poder de tributar – expressas em cláusulas constitucionais de proteção contra o poder tributário (direitos individuais) ou em normas consagradoras de espaços constitucionais de intributabilidade (normas de imunidades tributárias) – consubstanciam, na visão do constituinte de 1988, valores dignos de proteção contra o poder de reforma constitucional, razão pela qual revelam cláusulas pétreas, sob o alcance do art. 60, § 4º da Carta Política.

2) Poderiam as imunidades ser reguladas pelos 5.500 entes federativos, via lei ordinária, com conformações, perfis e definições distintas ou sendo uma limitação constitucional ao poder de tributar, por força do artigo 146 letra “b”, da Constituição apenas a lei complementar nacional poderia fazê-lo?

O sistema constitucional de discriminação de competências tributárias reserva à lei complementar federal (art. 146) a tarefa de a) dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, b) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e c) estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: c.1) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, c.2) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c.3) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; c.4) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso no ICMS, das contribuições do art. 195, I e § § 12 e 13 e da contribuição ao PIS.

As imunidades tributárias, porque delimitam constitucionalmente o espaço reservado ao exercício legítimo do poder tributário, consubstanciam limitações constitucionais ao poder de tributar. Neste sentido, as normas imunizantes devem ter a sua disciplina infraconstitucional veiculada pela lei complementar a que alude o artigo 146, II da Carta Política. Esta é a única interpretação autorizada pela Constituição Federal brasileira.

Admitir que mera lei ordinária regule qualquer aspecto de alguma das normas constitucionais imunizantes representa manifesta afronta ao que estabelece o artigo 146, II, da Constituição Federal, além de interpretação que opera contra o critério de racionalização constitucional de regulação do poder de tributar.

Por aludirem a espaços de intributabilidade, as normas imunizantes somente podem ter a sua disciplina através de lei complementar nacional, na medida em que o resultado desta regulação interfere, por consequência lógico-jurídica, diretamente, na área normativa sobre a qual pode ser exercido o poder tributário.

A lei complementar prevista no artigo 146, II da Carta Política consubstancia “norma de estabilização do sistema tributário nacional”, pois tem por escopo formular, em caráter geral, os instrumentos necessários para a afirmação do desiderato constitucional de livrar certas zonas da incidência tributária, impedindo, assim, que o exercício das competências tributárias pelos diferentes entes políticos, na disciplina dos respectivos tributos, possam frustrar o comando constitucional imunizante.

Com efeito, a articulação de competência tributária definida pelo Texto Constitucional tem na lei complementar nacional o seu eixo de estabilização, porquanto é o caráter geral desta norma que impõe a todos os entes políticos, indistintamente, a eficácia imunizante prevista constitucionalmente, de modo a evitar que, através de uma disciplina individualizada pelos entes políticos, o comando constitucional imunizante perca força normativa.

A disciplina das limitações constitucionais ao poder de tributar, notadamente das imunidades tributárias, através de lei complementar nacional consiste, assim, em autêntica exigência de racionalização do sistema tributário nacional, o qual teria sua articulação sistemática inegavelmente comprometida (com evidente lesão à força normativa da Constituição), caso se permitisse que as 5.500 entidades federativas pudessem livremente definir os contornos de seu próprio espaço de competência tributária.

Com efeito, admitir que os entes federativos possam regular as imunidades tributárias é o mesmo que entregar-lhes um “cheque em branco” para que decidam o alcance e a extensão do poder tributário que desejam possuir, interpretação que conflita frontalmente com a disciplina do sistema tributário nacional, estruturado constitucionalmente como um sistema de limites ao exercício do poder tributário.

3) Pode o Poder Público contestar em juízo a sua própria orientação e decisões administrativas que, nos processos de revisões de lançamento, proferiu a favor dos contribuintes?

Na ordem jurídica brasileira, o lançamento tributário constitui uma atividade procedimental (art. 142, CTN), a qual se inicia com um ato de imposição tributária (normalmente um auto de infração) e se conclui com um ato decisório, proferido no exercício do controle de legalidade por um dos órgãos do contencioso administrativo, nos termos do devido processo legal.

Os órgãos do contencioso administrativo (excetuados aqueles vinculados às determinações do respectivo Poder Executivo, independentemente da validade destas, tais como as Delegacias de Julgamento da Secretaria da Receita Federal) têm por função aplicar a lei tributária, segundo padrões legalidade, moralidade e imparcialidade. A função destes órgãos é eminentemente de controle de legalidade e tal função não teria qualquer espaço para ser exercida se o agente que a desempenha fosse vinculado às determinações oficiais, na maioria das vezes ampla e notoriamente ilegais.

No processo administrativo de lançamento devem ser assegurados ao contribuinte a ampla defesa e o contraditório, por expressa determinação constitucional (art. 5º, LV, CF), de modo que ao final do litígio administrativo, o ato de imposição tributária reflita estritamente o que prescreve o ordenamento jurídico-positivo.

Após a definição administrativa do ato de imposição tributária – o que ocorre com o esgotamento das instâncias administrativas de julgamento – fica o Poder Público impedido a) de formular revisão “in pejus” do contribuinte, sem que lhe sejam assegurados, novamente, a ampla defesa e o contraditório, em novo processo administrativo, ou b) promover a revisão judicial de decisão, favorável ao contribuinte, tomada regularmente pela própria Administração Tributária através dos seus órgãos de controle de legalidade.

Definidos na esfera administrativa a revisão ou o cancelamento de um ato de imposição tributária (auto de infração), por qualquer falha na sua legalidade, é vedado à Administração Tributária pleitear judicialmente a restauração do ato administrativo já cancelado administrativamente por vício de legalidade. Admitir o contrário, seria aceitar que o Poder Público possa pleitear em juízo a nulidade de ato próprio, o que não consubstancia exegese aceitável em um Estado Democrático de Direito.

Falta interesse jurídico-processual – umas das condições da ação, nos termos do Código de Processo Civil – à Administração Pública para promover ação judicial objetivando o cancelamento de ato praticado por um dos seus órgãos, no exercício regular do controle de legalidade dos atos administrativos.

Com efeito, admitir que a Administração Pública possa acionar o Poder Judiciário pleiteando a revisão judicial de decisão proferida por seu próprio órgão de contencioso administrativo significa retirar toda a autoridade normativa decisória deste órgão, o qual perderia toda a sua independência e justificação existencial.

Qual seria a razão do processo administrativo fiscal, desenvolvido segundo os ditames do devdio processo legal, do contraditório e da ampla defesa, se o Poder Público, vendo cancelado ou alterado um ato de imposição tributária formulado por uma agente fiscal, possa se insurgir judicialmente pleiteando a manutenção do mesmo ato que teve a sua invalidade – total ou parcialmente – reconhecida pela própria Administração Pública, através de um dos seus órgãos de julgamento administrativo?

Os órgãos do contencioso administrativo fiscal justificam-se pela necessidade de controle de legalidade dos atos de imposição tributária, controle este que reverte também em benefício do Estado, na medida em que impede a consumação de cobranças judiciais de créditos tributários constituídos muitas vezes ao completo arrepio dos ditames legais, impondo aos cofres públicos pesados ônus sucumbenciais, nos termos do que determina a lei processual.

No âmbito federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN, através do Parecer 1.087, de 19 de julho de 2004, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda em 17 de agosto de 2004, sustenta que “1) existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato; 2) podem ser intentadas: ação de conhecimento, mandado de segurança, ação civil pública ou ação popular e 3) a ação de rito ordinário e o mandado de segurança podem ser propostos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua Unidade do foro da ação; a ação civil pública pode ser proposta pelo órgão competente; já a ação popular somente pode ser proposta por cidadão, nos termos da Constituição Federal”.

A PGFN chega àquelas conclusões partindo do entendimento de que as decisões proferidas pelos Conselhos de Contribuintes (órgãos encarregados de formular o controle de legalidade no processo administrativo fiscal federal) têm a natureza de simples atos administrativos, “porquanto emanam da manifestação unilateral de vontade da Administração Pública visando a constituir, resguardar, conservar ou extinguir direitos, e impor obrigações a si própria ou a terceiros.” Dentro desta perspectiva, entende aquele órgão federal que “A Administração, reconhecendo que praticou ato contrário ao direito vigente, deve anulá-lo de ofício, o quanto antes, para restaurar a legalidade administrativa. Se não o fizer, caberá ao Poder Judiciário fazê-lo, mediante provocação de quem tiver legitimidade ativa para tal. Assim, os atos administrativos nulos ficam sujeitos a invalidação não só pela própria Administração, como também pelo Poder Judiciário, desde que levados à sua apreciação pelos meios processuais cabíveis.”

Ao contrário do que sustenta o referido Parecer, as decisões proferidas pelos órgãos do contencioso administrativo fiscal não são meros atos administrativos, iguais aos inúmeros atos praticados diariamente pela Administração Pública, razão pela qual a eles não se aplica o princípio da autotutela tout court.

As decisões dos órgãos do contencioso administrativo caracterizam-se por suas funções jurisdicionais contenciosas, na medida em que a) representam uma resposta decisória a uma provocação do interessado (contribuinte ou, excepcionalmente, a própria Administração Tributária); b) são dotadas de impulso oficial; c) são proferidas em atendimento às exigências do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, d) têm escopo limitado às questões de legalidade.[3]

As decisões proferidas pelos órgãos de contencioso adminstrativo fiscal põem termo ao litígio na esfera administrativa e definem a “vontade estatal” expressa no ato de imposição tributária, contra o qual poderá o contribuinte se insurgir no Poder Judiciário, no exercício do legítimo direito que lhe assegura a Constituição Federal, segundo a qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º XXXV).

Evidentemente que a Administração Pública tem o direito subjetivo de pleitear judicialmente a defesa de direito subjetivo de sua titularidade, eventualmente lesado ou ameaçado por outrem. No entanto, tal pretensão não alberga o direito de pleitear judicialmente a defesa de eventual lesão a direito promovida por órgão da própria Administração Pública, como sustenta a interpretação oficial.

Questão diferente diz respeito à legalidade do chamado “recurso hierárquico” via processual que permite ao Chefe do Poder Executivo, diretamente ou através de seus Ministros ou Secretários, a reforma de decisão proferida pelo órgão encarregado administrativamente de decidir litígios fiscais, no bojo do devido processo legal.

O Superior Tribunal de Justiça registra precedentes jurisprudenciais onde aceita a validade do recurso hieráquico dirigido ao Secretário de Estado da Fazenda, desde que previsto em lei, todavia assenta que “a Fazenda Pública não poderá se insurgir caso seu recurso hierárquico não prospere, uma vez que não é possível à Administração propor ação contra ato de um de seus órgãos.”[4]

No entanto, o mesmo Superior Tribunal de Justiça, através de julgamento de seção (Turmas reunidas) decidu em expressivo precedente que “I –  A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, e não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal; II – O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei; III – As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo “dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, Art. 45); IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida.”[5]

Portanto, a Administração Pública não possui interesse jurídico-processual e legitimidade ativa ad causam para promover ação judicial objetivando a desconstituição de ato dotado de natureza judicante contenciosa praticado por órgão integrante da própria Administração Tributária.

4) A mudança de critérios exegéticos ou de conduta do Poder Público perante o contribuinte pode prevalecer para o passado, retroagindo a alteração sobre as orientações pretéritas emanadas do próprio Poder Público, ou deve submeter-se este ao artigo 146 do CTN, que impõe uma eficácia “ex nunc”, sendo este um critério geral a ser seguido pela Fazenda, objetivando “garantir” a segurança jurídica?

A norma do artigo 146 do Código Tributário Nacional é de cristalina clareza ao estatuir que: “A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”

Esta norma jurídica constitui manifestação do princípio da segurança jurídica ao impedir que uma nova interpretação oficial, surgida em consequência de decisão administrativa ou judicial, seja aplicada a fatos jurídicos ocorridos no passado.

É sabido que a aplicação da lei tributária pelas autoridades administrativas requer a sua interpretação. A norma jurídica, comando deôntico voltado à disciplina dos comportamentos humanos, é o resultado da interpretação da lei tributária (e dos demais atos normativos). Como ensinou Hans Kelsen, a norma jurídica constitui uma moldura, dentro da qual o intérprete elege a norma jurídica decisional, aquela, que, ao fim e ao cabo, vai regular o caso concreto.

A moldura normativa expressa as possibilidades significativas dos textos normativos (leis, decretos, instruções, etc.). Interpretar o direito é transformar os textos em normas jurídicas, elegendo dentro da moldura normativa qual a norma jurídica decisional que deve disciplinar os fatos jurídicos concretamente realizados.

No entanto, apenas a interpetação formulada por fonte autorizada (pelo ordenamento) tem o condão de transformar textos em normas jurídicas. As autoridades administrativas encarregadas de aplicar a lei tributária são as fontes normativas por excelência, porquanto recebem do ordenamento jurídico a tarefa de transformar os textos normativos em normas jurídicas tributárias, diante dos fatos concretos.

Assim, a produção da norma jurídica decisional (resultado da interpretação dos textos normativos) ocorre sempre diante dos fatos concretamente realizados hic et nunc e não “abstrato”. É princípio geral de direito a máxima de que os fatos devem receber a regulação consoante a disciplina normativa existente no momento de sua realização. Trata-se do célebre princípio da irretroatividade do direito.

O ordenamento jurídico apóia-se na vedação à retroatividade do direito. A irretroatividade, a rigor, consubstancia imperativo dotado de uma dupla finalidade, a saber, atende ao interesse social de que a lei deve inspirar confiança aos jurisdicionados quanto à certeza de sua aplicação e ao interesse individual no que tange à estabilização das situações reguladas por lei válida e imperativa.[6]

O princípio da irretroatividade tem o condão de resgatar um dado do passado e mantê-lo no futuro, garantindo em face da lei nova as expectativas legitimamente construídas no passado diante da lei então vigente. Assim, o sentido de um evento passado adquire um contorno próprio, na forma do direito então vigente, tornando-se imune ao sentido que a lei posterior eventualmente lhe atribua, ressalvadas as alterações in bonam partem.[7]

Antonio Roberto Sampaio Dória assim sintetizou os princípios do direito intertemporal brasileiro, observando-se, desde logo, que onde o autor se refere a “lei”, deve-se contemplar também a norma jurídica decisional (resultado da interpretação da lei pela autoridade administrativa):

“a) a lei nova não pode retroagir, expressa ou implicitamente, para atingir direitos adquiridos, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito, bem como seus efeitos, já inteiramente consumados no regime legal anterior;

  1. b) a lei nova pode atrair, para submeter a seu império, mediante expresso comando legislativo, atos e fatos passados, assim também seus efeitos pretéritos, desde que não se definam eles como direitos adquiridos, coisa julgada ou ato jurídico perfeito; é princípio de boa hermenêutica, porém, que, no silêncio da lei, emprestar-se-lhe-á, sempre, alcance prospectivo;
  2. c) a lei nova terá, por princípio, efeito imediato, atingindo todos os fatos e atos verificados no tempo de sua vigência;
  3. d) veda-se, porém, a atuação imediata da lei nova quando atinja efeitos presentes ou futuros de atos e fatos ocorridos no âmbito temporal da lei pretérita, desde que tais efeitos decorram, necessariamente, de direitos anteriormente adquiridos, de atos jurídicos perfeitos consumados no passado ou de decisão passada em julgado ao tempo da lei revogada; nessas hipóteses, dar-se-á a sobrevivência da lei antiga ou suia ultratividade.”[8]

Em outro dizer, o Direito brasileiro consagra o princípio da eficácia prospectiva dos textos e das normas jurídicas, mantendo-se os fatos jurídicos praticados no passado (desde que reveladores de atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos ou coisa julgada), ou os efeitos futuros destes (hipótese de ultratividade da norma passada).

Essa lição doutrinária é plenamente válida ainda nos dias de hoje, haja vista a expressa proteção constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (art. 5º, XXXVI).

Vale registrar que a Constituição Federal expressamente veda, enfatizando no sistema jurídico-tributário, a existência de leis tributárias retroativas (art. 150, III, a) ao impedir a cobrança de tributos em relação aos fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.

A vedação à irretroatividade do direito está duplamente garantida na ordem constitucional pátria. No art. 5º, XXXVI, protege-se da incidência da norma retroativa o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; contudo o princípio da irretroatividade da lei tributária e penal previsto nos arts. 5º, XXXIX, e 150, III, a, alcança mais do que atos jurídicos perfeitos e acabados, mas toda e qualquer incidência normativa sobre fatos jurídico-tributários pretéritos.

Vale dizer, enquanto o art. 5º, XXXVI, veda constitucionalmente a incidência retroativa de normas apenas sobre atos jurídicos perfeitos e acabados objetiva (ato jurídico perfeito) e subjetivamente (direito subjetivo e coisa julgada), o princípio da irretroatividade em matéria penal e tributária (arts. 5º, XXXIV, e 150, III, a, da CF) proíbe que a lei definidora de tipos penais sirva para qualificar juridicamente uma conduta praticada no passado, bem como que lei tributária posterior possa produzir efeitos jurídicos sobre fatos reveladores de capacidade contributiva realizados no passado, independentemente de constituírem atos jurídicos perfeitos e acabados.[9]

Misabel Abreu Machado Derzi lembra que o princípio da irretroatividade da lei tributária não protege apenas o cidadão contra as mudanças legislativas contrárias ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, garantidos sob regime jurídico anterior ou albergados pela autoridade da coisa julgada, mas protege também o cidadão contra as alterações na interpretação do direito (seja “lei” seja “norma individual e concreta” posta em sentença judicial), a impedir que coisa julgada possa ser ofendida por decisão posterior do Poder Judiciário ainda que do Supremo Tribunal Federal.[10]

Em outras palavras, o princípio constitucional da irretroatividade dirige-se não apenas à lei (texto normativo), mas também à norma jurídica decisional (aplicação dos textos normativos pelas autoridades administrativas). Vale dizer, assim como a lei tributária nova não pode pretender estabelecer consequências  normativas a fatos realizados no passado (sob outro regime jurídico), à autoridade administrativa também não é lícito construir norma jurídica decisional nova para fato ocorrido no passado, utilizando texto normativo (ou moldura normativa) então inexistente.

No subsistema do Direito Tributário, segundo a atual disciplina constitucional, a proteção contra  a retroatividade normativa alcança não apenas atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos e coisas julgadas, por força do art. 5º, XXXVI, mas atinge todo e qualquer fato passado (independentemente de assumirem uma destas três naturezas), imunizando-o contra posteriores alterações normativas, em razão do prescrito no artigo 150, III, a da Carta Política.

Portanto, novos critérios interpretativos (nova moldura normativa) formulados pelas autoridades administrativas, à luz das leis tributárias e/ou de decisões judiciais, não podem  aplicar-se (para regular) fatos ocorridos no passado, por força do artigo 5º, XXXVI e 150, III, “a”  da Carta Política e do artigo 146 do Códito Tributário Nacional.

5) O que seria segurança jurídica em matéria tributária?

O desejo de estabilidade e segurança é natural ao ser humano. O homem sente uma necessidade natural por regras que orientem o seu agir e permitam o saudável convívio social. Os instintos humanos não possibilitam uma suficiente certeza de orientação (Orientierungsgewissheit) necessária para a vida comum em família e para o comportamento em uma sociedade marcada pela complexidade.[11]

Como naturalmente o homem não consegue orientar a sua conduta com o grau de segurança por ele desejado, é necessário que a mesma seja produzida artificialmente por normas de comportamento produzidas por um outro agente dotado de autoridade.

Considerando que os padrões de conduta já estão previamente definidos pela sociedade mediante normas, o indivíduo não necessita mais avaliar diante de cada situação particular todo o conjunto de alternativas de comportamento possíveis para a situação. Assim sendo, a certeza de orientação normativa (normative Orientierunsgewissheit) produzida pelas normas contribui para gerar não só estabilidade social, mas também estabilidade psíquica individual.[12]

A aspiração por estabilidade e segurança nas relações humanas constitui uma das grandes causas da regulação jurídica. Como os homens não conseguem produzir a paz social por eles almejada nem alcançar os fins que pretendem simplesmente pelos costumes, imagina-se que a regra jurídica (que simboliza a ação de um terceiro em relação aos atores sociais) possa alcançar tais desideratos.

A necessidade de dominar e superar a luta de todos contra todos, ameaça permanente e latente nas sociedades humanas, e que se realizaria caso não existisse uma regulação coativa, bem como a urgência em se construir uma ordem social pacífica que assegure a vida de todos constituem as causas primeiras da produção do direito.[13]

Além de causa da regra jurídica, a necessidade de promoção de segurança jurídica pode ser visualizada inclusive como umas das razões para a própria obrigatoriedade da regra jurídica.[14]

Com a idéia de direito, a aspiração por segurança social transforma-se em anseio por segurança jurídica.

A segurança promovida pela regra jurídica não deve conduzir à imobilidade social. As sociedades humanas ao mesmo tempo em que desejam regras claras e estáveis que permitam a previsibilidade das ações no convívio social não aceitam que o direito promova a imobilidade social, isto é, que a coercitividade dos comandos jurídicos acabe por impedir o livre desenvolvimento e progresso do homem. Assim, o direito deve promover a estabilidade da ordem social na medida suficiente para assegurar as transformações trazidas pela evolução das necessidades sociais.

O direito é um plano da realidade social, uma manifestação da cultura de cada sociedade humana, daí por que deve ser adaptado às transformações ocorridas em cada sociedade.[15] Logo, ao mesmo tempo em que pretende ser permanente para conferir estabilidade e previsibilidade às relações sociais, o direito também deve ser variável para permitir a sua adaptação às novas realidades surgidas com as naturais alterações ocorridas na ordem social.

Pode-se afirmar que o anseio por segurança jurídica cresce proporcionalmente ao aumento de instabilidade social. A segurança como valor protegido pelo direito não é algo que ocorre espontaneamente e com idêntico sentido e intensidade nos diferentes sistemas normativos. Sua função e seu alcance dependem das lutas políticas e das vicissitudes culturais de cada sociedade.[16]

A instabilidade social exige a promoção de segurança jurídica. A preocupação com a segurança jurídica cresce nos momentos de grandes transformações e crises sociais. Nestes momentos, o direito funciona como o amálgama que permite o convívio social e evita a ruptura das sociedades humanas.

A segurança de orientação (Oriuentierungssicherheit) almejada e necessitada pelos indivíduos depende fundamentalmente da certeza quanto à efetiva realização (Realisierungsgewissheit) dos padrões de conduta escolhidos pela sociedade por uma autoridade institucionalmente constituída para regular o agir social.

Esses padrões de conduta consubstanciam as questões fundamentais de uma sociedade e refletem a concepção de justiça de cada povo. Daí por que quando os indivíduos têm posições diferentes acerca do que é lícito ou ilícito, bom ou mau, devem se submeter a uma decisão vinculante proferida por outrem que resolve a dúvida e define qual a decisão justa para o caso.[17]

Com isso, vinculam-se as aspirações por segurança e justiça, as quais constituem os pólos gravitacionais da própria idéia de direito. Há inclusive quem hierarquize os dois valores, colocando a busca da segurança em primeiro lugar como objetivo do direito.[18]

Todavia, a existência de uma ordem jurídica que busque a estabilidade e previsibilidade das condutas humanas não é suficiente para a promoção da paz social. É necessário que a segurança promovida pelo direito atenda aos anseios fundamentais de liberdade e justiça pressupostos em cada sociedade.

A segurança jurídica deve estar atrelada à promoção da justiça, fundamento e finalidade do direito. A idéia de segurança jurídica, a rigor, compõe o ideal de justiça, na medida em que objetiva pelo direito garantir a todos previsibilidade no que concerne ao exercício dos valores fundamentais do ser humano, notadamente aqueles relativos à liberdade e igualdade nas suas diferentes manifestações.

Não há segurança em uma ordem jurídica que não tenha como pressuposto a busca de justiça, o que equivale dizer que a mera existência de textos de direito positivo (veiculado por regras gerais e abstratas dotadas de razoável clareza) não garante a segurança que o direito deve promover e que a sociedade humana almeja.

Segurança jurídica não se resume à positividade de textos normativos, nem à clareza destes. Pelo contrário, para ser alcançada exige a aptidão da ordem jurídica (cujo repertório contempla não apenas textos normativos escritos, mas também normas latentes, pressupostas, como os princípios jurídicos implícitos) para promover um nível de estabilidade social na qual restem asseguradas as garantias básicas relativas ao exercício efetivo (e não meras declarações formais) dos direitos de liberdade e igualdade. O direito positivo, nesta concepção, desempenha o papel de instrumento de busca de justiça e segurança, e não de um fim em si mesmo.

Sob outra perspectiva, necessário registrar que a segurança jurídica e o princípio da proteção da confiança são normas jurídicas estruturais do Estado de Direito. Embora tenham campos normativos próximos, a teoria constitucional concebe um sob a perspectiva subjetiva e outro sob a dimensão objetiva.[19]

Em geral, considera-se a segurança jurídica como mandamento jurídico ligado a elementos objetivos da ordem jurídica, como a estabilidade da normatividade jurídica, segurança de orientação e realização do direito. A proteção da confiança concerne, por outro lado, às expectativas subjetivas dos indivíduos, tais como a calculabilidade e previsibilidade dos destinatários das normas em relação aos efeitos jurídicos delas emanados.

O princípio da segurança jurídica, sob uma perspectiva geral (na qual se inclui o campo normativo alcançado pela proteção da confiança) é norma de superestrutura que garante ao indivíduo o direito de confiar que seus atos terão os efeitos jurídicos previstos em outras normas componentes do ordenamento.

A segurança jurídica é norma que se dirige não apenas ao legislador, mas a todos os Poderes do Estado. Através da segurança jurídica, o indivíduo fica protegido contra a incidência de normas retroativas restritivas de direitos, garante-se a intangibilidade do ato jurisdicional, através da coisa julgada, bem como impede a revisão de atos administrativos constitutivos de direitos.

A segurança jurídica é direito individual que dirige-se, portanto, tanto à produção de texto normativos como ao processo de aplicação destes (produção de normas jurídicas individuais).

No plano da produção dos textos normativos (leis, atos admnistrativos e sentença judiciárias), a segurança jurídica exige que os atos normativos atendam às exigências normais de clareza, certeza e praticabilidade dos comandos que albergam, suficientes para que os destinatários possam ter condições objetivas de compreender e cumprir as determinações estatais.

No plano da aplicação do direito, a segurança jurídica exige o respeito às expectativas construídas no passado, através do princípio da irretroatividade, bem como no presente, segundo os ditames da confiança e da boa-fé.

Assim sendo, segurança jurídica em matéria tributária é norma jurídica que confere ao contribuinte o direito individual a textos normativos claros, certos e praticáveis e a um processo de aplicação normativa que respeite os fatos passados e atendam às máximas da confiança e da boa-fé.

6) Devem as limitações constitucionais ao poder de tributar ser interpretadas contra o contribuinte, por preferência ideológica ou necessidade de gerar caixa para o governo (exemplo Prouni)?

No contexto do Direito positivo brasileiro, a Constituição Federal, no que tange à disciplina da relação jurídico-tributária, constitui um sistema de limites ao poder tributário. O Sistema Tributário Nacional contempla princípios e regras de competência cujo núcleo e objetivo primordial consistem em delimitar o mais objetivamente possível a atividade impositiva estatal.

O caráter analítico do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro constitui uma peculiaridade do Direito positivo brasileiro que deve ser considerada em qualquer atividade interpretativa que tenha por objeto situações por ele disciplinadas.

A interpretação do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro deve ter como ponto de partida o fato de que os princípios e regras ali constantes representam limitações objetivas ao exercício do poder impositivo estatal, o qual nasce e tem a sua dimensão e alcance nos estreitos limites do que lhe reconhece a disciplina constitucional. Vale dizer, a “Constituição tributária” constitui uma “Carta de Liberdades”, um autêntico “Estatuto do Contribuinte”, um instrumento de “Cidadania Fiscal”.

Estas afirmações mais do que meras figuras de retórica, têm uma conseqüência jurídica prática: reconhecer que não pode haver no contexto constitucional competência tributária sem limites objetivos, isto é, área onde o Poder Público seja absoluto para decidir acerca da forma, do modo e da intensidade de imposição tributária. O núcleo do Direito Constitucional Tributário está nas limitações impostas ao poder impositivo estatal.[20] Em outras palavras, se a Constituição Federal, em matéria tributária, configura um sistema de limites, não pode haver competência tributária aberta.

Outra conseqüência objetiva de considerar a Constituição Federal como um sistema de limites é a de tomar o sujeito passivo tributário como ponto central da intelecção das normas constitucionais, o núcleo em torno do qual deve se buscar o sentido normativo das previsões constitucionais em matéria tributária. Vale dizer, o ponto de partida, a razão última, a “ratio juris” das dicções constitucionais tributárias é a proteção do interesse individual perante o interesse estatal (na sua acepção impositiva).

Os limites constitucionais ao poder impositivo podem estar expressos em texto normativo ou podem constituir normas jurídicas implícitas decorrentes do conjunto articulado dos dispositivos constitucionais. Vale dizer, nem sempre os limites à competência tributária (ou melhor, a delimitação objetiva desta) decorrem expressamente do texto constitucional. É possível, e até necessário, o reconhecimento de que existem normas limitadoras da atividade impositiva que são extraídos do conjunto, do articulado constitucional, enfim, das razões e princípios fundantes do Estado Democrático de Direito.

Exemplo mais contundente de limite objetivo da atividade impositiva que não se encontra expressamente em nenhum dispositivo do texto constitucional brasileiro é a proteção ao mínimo existencial. O Estado não pode utilizar o seu poder impositivo a ponto de invadir e retirar do homem (como sujeito de direito) as condições materiais que lhe assegure padrões mínimos de existência digna. O poder tributário é constituído no espaço aberto pela autolimitação da liberdade, é o preço da liberdade (Ricardo Lobo Torres) e não pode ser utilizado legitimamente a ponto de negar as condições mínimas de  existência humana. Esta é uma conquista da humanidade, que nem o positivista formalista mais apaixonado pode negar.[21]

Por outro lado, o direito positivo constitucional assegura também inúmeros limites formais à atividade impositiva; a própria definição constitucional de competência tributária é construída segundo parâmetros formais. Limite formal por excelência é a legalidade, entendida como exigência inafastável de que o dever tributário decorra de expressa previsão em texto votado, aprovado e promulgado pelos representantes legais do povo e segundo os procedimentos previamente previstos pelo próprio direito positivo. Interessante observar que a legalidade, embora constitua uma limitação ao poder tributário, pode se transformar em instrumento de opressão quando for utilizada pelos detentores do poder como ameaça à liberdade individual. Ricardo Lobo Torres afirma que “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo. Quem não percebe a bipolaridade da liberdade acaba por recusar legitimidade ao próprio tributo.”[22]

Se a Constituição Tributária representa um sistema de limites, expressos e implícitos, referidos ao sujeito passivo tributário, a definição e o desenho das competências constitucionais deve ser feita a partir deste limites e não a partir do vetor impositivo. Em outras palavras, a eficácia protetiva do interesse individual, expressa no conjunto de limitações constitucionais, deve representar o ponto de partida da validade de qualquer incidência tributária.

Diante do exposto, conclui-se que é dever do intérprete do Direito brasileiro interpretar as limitaçõess constitucionais ao poder de tributar de modo a conferir-lhes a máxima efetividade, o que, em outros termos, significa conceber a Constituição como um “Estatuto da Liberdade” e não como um instrumento do poder político. A razão da existência e da legitimidade da Constituição repousa na sua condição de garantia da liberdade individual e as limitações constitucionais ao poder de tributar são veículos que operam esta garantia.

 

[1] TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR. Introdução do estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994, p. 199-200.

[2] JOSÉ CARLOS FRANCISCO. Emenda constitucionais e limites flexíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 78 e ss.

[3] RODRIGO PEREIRA DE MELLO. Conselho de Contribuintes e recurso hierárquico. Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 51, p. 104 e ss.

[4] ROMS 11.275-RJ, 2ª T do STJ, Rel. Min. Franciulli Netto.

[5] MS 8.810-DF, 1ª seção do STJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 109, p. 180-188.

[6] J.M. OTHON SIDOU Fundamentos do direito aplicado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 124.

[7] TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, vol. 65, p. 125.

[8] ANTONIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA.Da lei tributária no tempo. São Paulo, 1968, p. 104-105.

[9] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Anterioridade … Op. loc. cits.

[10] MISABEL ABREU MACHADO DERZI. A irretroatividade do direito no direito tributário. In: BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio (Org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário. Malheiros: São Paulo, 1997. vol. 1, p. 199-217.

[11] REINHOLD ZIPPELIUS. Rechtsphilosophie. 3. ed. München: C.H.Beck, 1994. p. 161.

[12] ZIPPELIUS, Reinhold. Op. loc. cits.

[13] LUIS RECASÉNS SICHES. Introdución al estudio del derecho. Ciudad del Mexico: Porrúa, 1985. p. 54.

[14] GUSTAV RADBRUCH. Filosofia do direito. Trad. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1997. p. 180. Este autor anota que: “O direito não obriga só porque consegue impor-se eficazmente. Obriga quando, conseguindo impor-se eficazmente, o consegue porque garante a segurança e a ordem. O fundamento da obrigatoriedade do direito positivo reside na segurança que só ele pode dar, ou – se nos é lícito empregar uma expressão mais enérgica – na paz que só ele pode estabelecer entre as diferentes concepções jurídicas em luta, ou ainda na ordem que põe termo à guerra de todos contra todos.”

[15] EROS ROBERTO GRAU. O direito posto e pressuposto. São Maulo: Malheiros, 1996, p. 20-21. Este autor afirma que “Produto cultural, o direito é, sempre, fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal”. E adiante conclui, “Este pois, o aspecto que ora importa enfaticamente pontualizar: não há que falar, concretamente, no direito, senão nos direitos, ainda que se lhes possa reconhecer um papel marcado, enquanto qualificados pela função ideológica que cumprem, e se possa apontar características que alinham o desenho de um modelo de direito próprio ao modo de produção capitalista”.

[16] ANTONIO-HENRIQUE PEREZ-LUÑO. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1991. p. 17.

[17] ZIPPELIUS, Reinhold. Op. cit. p. 162.

[18] Gustav Radbruch (Op. cit. p.180) sustenta que “se a justiça é a segunda grande preocupação do direito, a primeira não pode deixar de ser a da segurança, da paz e da ordem social”.

[19] J.J. GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª ed. Almedina, p. 256-265. Entre nós, ALMIRO DO COUTO E SILVA. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos no prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista de Direito Administrativo, vol. 237, p. 274.

[20] Albert Hensel (Diritto Tributário, Trad. Dino Jarach, Milano Giuffrè, 1956, p. 32) afirmava que “Il diritto tributário costituzionale si occupa dunque meno del potere tributario in sè, che delle sue limitazioni, allo scopo di costituire um metodico sistema tributario complessivo”.

[21] Sobre o mínimo existencial, afirma Ricardo Lobo Torres (O mínimo existencial e os direitos fundamentais, RDA 179/40), “A proteção positiva do mínimo existencial se realiza de diversas formas. Primeiramente pela entrega de prestações de serviço público específico e divisível, que serão gratuitas pela atuação do mecanismo constitucional da imunidade das taxas e dos tributos contraprestacionais, como vimos a propósito da prestação jurisdicional, da educação primária, da saúde pública. O status positivus libertatis pode ser garantido também pelas subvenções e auxílios financeiros a entidades filantrópicas e educacionais, públicas ou privadas, que, como dissemos, muitas vezes se compensam com as imunidades. A entrega de bens públicos (roupas, remédios, alimentos, etc) especialmente em caso de calamidade pública ou dentro de programas de assistência à população carente (merenda escolar, leite, etc), independentemente de qualquer pagamento, é outra modalidade de tutela do mínimo existencial.”

[22] RICARDO LOBO TORRES. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 5-6.