Direito Tributário sancionador e o princípio da proporcionalidade

“Direito Tributário sancionador e o princípio da proporcionalidade”, in “TEMAS DE DIREITO PÚBLICO – Estudos em homenagem ao Ministro José Augusto Delgado”. Curitiba, Juruá editora, 2005, p. 225-251, obra coletiva coordenada por Cristiano Carvalho e Marcelo Magalhães Peixoto.

 

O estudo da sanção perpassa a Teoria Geral e a Filosofia do Direito. Um dos aspectos centrais do debate doutrinário acerca da natureza e do significado da sanção encontra-se na importância que ela assume para a ordem jurídica, o que leva Norberto Bobbio a afirmar que se poderia quase distinguir os filósofos do Direito do passado e do presente em dois grandes grupos: os sancionistas (sanzionisti) e os não-sancionistas (non-sanzionisti).[1]

Não pretendemos recapitular os diferentes argumentos expostos pela Teoria Jurídica para o tema sanção. A preocupação que nos move é tão-somente estabelecer uma concepção estipulativa mínima acerca do fenômeno da sanção, das modalidades que esta assume contemporaneamente no Direito positivo e, principalmente, demonstrar que o princípio da proporcionalidade constitui fundamental instrumento de seu controle. A imposição de penalidades tributárias, seja na definição abstrata dos textos normativos, seja na formulação in concreto da norma jurídica sancionatória, encontra substancial limite no princípio da proporcionalidade.

Segundo Norberto Bobbio, o que caracteriza a sanção jurídica, diferindo-a da sanção moral (interna) ou da mera sanção social (externa), é a sua institucionalização. A sanção institucionalizada pressupõe três elementos, a saber: i) a previsão de uma sanção relativa como conseqüência da violação de uma norma primária; ii) a definição concreta da medida desta sanção; e iii) a previsão da autoridade encarregada de executar tal sanção. Com o primeiro elemento se assegura a certeza da resposta do ordenamento a uma ação contrária aos objetivos por ele buscados, com o segundo, se impõe a proporcionalidade de tal resposta, e com o terceiro a imparcialidade do aplicador da sanção. Estes três elementos têm o escopo comum de reforçar a eficácia do ordenamento jurídico.[2]

O termo “sanção” é polissêmico, pois denota aprovação (por exemplo, a sanção presidencial a projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo), desaprovação (a sanção penal, civil etc.), bem como estímulo (as sanções positivas ou premiais). Este trabalho se ocupa do estudo da sanção tão-somente no sentido de desaprovação institucional a uma conduta contrária ao Direito positivo. Contudo, mesmo no que tange à idéia de sanção como ato desaprovador ainda permanece uma certa ambigüidade na utilização desse termo.

Com efeito, a noção de sanção, em sentido lato, remete imediatamente à idéia de resposta à violação de uma regra que deveria ser observada ou executada, isto é, uma resposta à inobservância de uma regra proibitiva, portanto de imperativo negativo, ou uma resposta à inexecução de um dever, logo, de um imperativo positivo.[3] Sanção, contudo, também designa a medida da resposta institucionalizada imposta a quem descumpre uma regra proibitiva ou um dever. Em outras palavras, o termo sanção tanto pode designar a resposta do ordenamento jurídico a uma ação contrária aos seus objetivos, como a própria qualidade e intensidade desta resposta (as específicas medidas repressivas ou intimidatórias).

A identificação da sanção jurídica com a coerção é fruto da doutrina kelseniana. Para Kelsen, as sanções jurídicas consistem em “atos de coerção que são estatuídos contra uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica, como, por exemplo, a pena de prisão prevista para o furto”; todavia, alerta aquele autor que nem todos os atos de coerção consubstanciam sanções jurídicas e exemplifica tal afirmação com o internamento compulsório de indivíduos atacados por doença perigosa, já que em tal hipótese não terá havido uma violação voluntária a um dever jurídico preestabelecido.[4]

Embora considerada apenas como coerção, pode-se cogitar de um sentido lato e um sentido estrito para o termo sanção; o primeiro representa a conseqüência prevista pelo ordenamento jurídico para o descumprimento de quaisquer de seus comandos, e o segundo as específicas medidas (penas e castigos) que este prevê para instrumentar os seus desideratos. Enquanto o primeiro sentido refere-se apenas a uma conseqüência necessária do descumprimento de algo “desejado” pelo ordenamento jurídico (dado a ação A, tem-se a conseqüência B), no segundo sentido, o termo sanção designa concretamente qual a modalidade e medida da conseqüência imposta a quem agiu em sentido contrário ao “desejado” pelo ordenamento, a saber, qual a pena, o castigo efetivamente previsto e imposto.

Todavia, como lembra Raffaello Lupi, mais do que sustentar a ausência de rigor e correção do termo “sanção”, necessário precisar, em cada contexto específico, o sentido em que o termo é utilizado.[5] A nossa preocupação girará em torno do termo sanção em sentido estrito e como o princípio da proporcionalidade pode consistir em eficiente e necessário instrumento de controle jurídico do poder estatal de prever e impor sanções tributárias.

Todavia, não se pode olvidar que o Direito positivo, ao lado das sanções negativas (castigos pelo descumprimento de um dever ou inobservância de uma proibição), alberga também sanções positivas (estímulos para quem age no sentido desejado pelo ordenamento), como ensinou Norberto Bobbio.[6]

As sanções jurídicas estão inelutavelmente ligadas ao papel reservado ao Direito na vida social. Como até o início do século XX coube ao Direito o principal papel de instrumento protetivo de valores sociais julgados relevantes (liberdade, propriedade etc.), as sanções jurídicas marcavam-se, e até confundiam-se, com o desejo institucional de reprimir, de castigar toda e qualquer conduta ofensiva a qualquer dos valores protegidos pelo Direito. Todavia, conforme acentua Bobbio, contemporaneamente, além do controle social, o Direito desempenha inegável papel de transformação e de conformação social, isto é, o Direito não desempenha apenas o papel passivo de atuar, se e apenas quando desatendido um valor por ele protegido, mas compromete-se ativa e preventivamente com a alteração da realidade social, através de sanções positivas, prêmios (estímulos) às condutas que viabilizam o alcance das finalidades juridicamente desejadas. O Direito contemporâneo não se limita a castigar os comportamentos a ele desconformes, mas também a estimular aqueles a ele conformes. Vale dizer, “enquanto o castigo é uma reação a uma ação ruim, o prêmio é uma reação a uma ação boa”.[7]

O Direito contemporâneo, além de protetivo, é fundamentalmente funcional e finalístico, isto é, não se contenta apenas em proteger os valores sociais que julga relevantes, mas compromete-se ativamente com o alcance de finalidades sociais, econômicas, políticas etc. Sob essa perspectiva, o fenômeno jurídico não se reduz mais à mera repressão à conduta que desatende aos comandos normativos, antes, consubstancia um instrumento de alteração da realidade social, segundo as finalidades assumidas  e reconhecidas pelo ordenamento jurídico positivo. O Direito já não se “preocupa” apenas com as condutas a ele ofensivas, castigando-as, mas também com as condutas a ele conformes, estimulando-as e premiando-as. As sanções positivas representam a resposta jurídica às condutas conformes às finalidades a cujo alcance o ordenamento jurídico está comprometido institucionalmente.

O Direito Tributário é campo fértil para a previsão de sanções positivas. Basta ver, por exemplo, o número de atos normativos cujo objeto é a disciplina de incentivos e benefícios fiscais aos sujeitos passivos que enquadram a sua conduta às finalidades almejadas pelo Estado. Através dos incentivos fiscais o sujeito passivo que preenche as condições legais ao gozo do benefício, as quais nada mais são do que instrumentos para o alcance de uma finalidade de interesse público, é premiado com a redução de sua carga tributária.

Contudo, as sanções positivas podem e devem ser controladas pelo princípio da proporcionalidade já que o alcance de uma finalidade de interesse público não pode chegar ao extremo de comprometer a eficácia dos demais interesses protegidos pelo ordenamento constitucional. Apenas para exemplificar, o prêmio representado pelo incentivo fiscal regional não pode resultar no comprometimento da efetividade do princípio da capacidade contributiva, cujo núcleo determina que todos devem concorrer para o custeio das despesas públicas na medida de sua capacidade. Embora a medida desta capacidade seja dada pela lei, esta não pode, a pretexto de incentivar, exonerar completamente um determinado sujeito passivo do ônus de concorrer para o custeio das despesas públicas. A rigor, assim procedendo, o legislador estará negando inclusive a essência do princípio republicano que veda a concessão imotivada de benesses com o dinheiro público.

Neste sentido, o princípio da proporcionalidade permite ao intérprete-aplicador do Direito verificar concretamente a constitucionalidade também das sanções positivas. Contudo, o objetivo central deste trabalho é analisar somente a validade das sanções negativas em face do princípio da proporcionalidade. Logo, o termo sanção jurídica será utilizado adiante apenas no sentido de “sanção jurídica negativa”.

2. O problema do controle

O grande problema quando se discute as sanções tributárias é o tema do controle. Vários autores do Direito Tributário pátrio já se ocuparam deste problema, tendo sido elaborados diferentes critérios para o controle da previsão e da aplicação das sanções tributárias.

Sacha Calmon Navarro Coêlho cogita de limites qualitativos (quais os tipos de sanções possíveis) e quantitativos (até que ponto pode o sujeito passivo tributário ser responsabilizado pelo descumprimento do dever tributário).[8]

Quanto aos limites qualitativos, segundo aquele autor, as sanções fiscais somente podem ser pecuniárias (multas), nunca privativas de liberdade ou privativas de direitos, notadamente no Brasil onde a Constituição Federal (artigo 5º, LXVII) veda a prisão por dívida e garante a liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais previstas em lei (artigo 5º, XIII), bem como garante o direito de propriedade (artigo 5º, XXII). Todos os direitos, direta ou indiretamente, relativos à defesa do sujeito passivo perante o Estado (ampla defesa, contraditório, legalidade, tipicidade, motivação) também se situam entre os limites qualitativos.[9]

No que tange aos limites quantitativos, Sacha Calmon entende que as multas tributárias não podem chegar ao perdimento ou ao confisco de bens. Afirma ainda que o confisco é genericamente vedado pela Constituição Federal brasileira, somente sendo admitido nos casos expressamente autorizados pelo constituinte e pelo legislador complementar, a saber, nas hipóteses de danos causados ao Erário, enriquecimento ilícito no exercício do cargo, função ou emprego na Administração Pública e utilização de terra própria para cultivo de ervas alucinógenas. Conclui aquele autor que uma multa excessiva, ultrapassando o razoável, para dissuadir ações ilícitas e para punir os transgressores, caracteriza uma forma indireta de burlar o dispositivo constitucional que veda o confisco. Assim sendo, Sacha Calmon prevê duas fórmulas para evitar as multas escorchantes: uma legislativa, mediante uma norma geral limitando a ação dos legisladores ordinários, quando do estabelecimento das multas tributárias, e uma jurisprudencial, através de súmulas jurisprudenciais que constituiriam standards restritivos e norteadores da ação do legislador ordinário.[10]

Ives Gandra da Silva Martins, partindo do pressuposto de que o tributo já constitui, a rigor, uma penalidade, entende que o parâmetro divisor entre a penalidade legítima e a sanção inconstitucional encontra-se na base de cálculo da obrigação tributária plena (tributo e penalidade), a qual não pode superar dois limites essenciais: a) não pode ser superior ao valor da operação ou bem que serviu de base de cálculo ao tributo ou penalidade; ou b) no caso de valor superior ao bem ou operação, possível no campo dos tributos indiretos, a penalidade, necessariamente, deveria se limitar ao valor do próprio bem ou operação. Conclui aquele autor que “o princípio reside na idéia de que o bem ou operações geradoras podem, por ocorrência de infrações tributárias, ser perdidos, mas não os bens ou valores de outras operações, pois nessa hipótese haveria um ultrapassar os limites das forças pertinentes à incidência tributária, configurando-se o confisco”.[11]

Para Angela da Motta Pacheco, o legislador deve atender ao princípio da proporcionalidade, representado pelo princípio do não-confisco, ao prever as sanções tributárias. Conclui aquela autora que, em atendimento ao princípio da proporcionalidade, “as sanções devem ser proporcionais ao valor do tributo. Este é o valor que deve ser a sua base de cálculo e não o valor da base de cálculo do tributo, como o valor da operação”.[12]

Antonio Roberto Sampaio Dória afirma que o princípio da capacidade contributiva e a vedação constitucional ao confisco constituem limitações ao poder estatal de impor sanções tributárias, e ressalta a necessidade que exista conexão entre a penalidade imposta e a infração cometida, e que a pena seja proporcional ao delito ou infração praticados.[13]

A vedação constitucional à utilização do tributo com efeito de confisco representa, de fato, um limite à previsão e imposição de sanções tributárias.[14] Contudo, a simples vedação constitucional à utilização de sanções confiscatórias não resolve todos os problemas relativos ao controle da graduação das sanções tributárias, pois: i) alcança somente as sanções tributárias de caráter pecuniário (multas), cuja exacerbação pode levar ao confisco, deixando fora do seu âmbito as sanções tributárias que consubstanciam limitações a outros direitos e garantias individuais, como as limitações impostas à livre iniciativa econômica, e as penas restritivas do direito de liberdade; e ii) não alcança as sanções que, embora não-confiscatórias, revelam-se desproporcionais à finalidade que norteia sua previsão e imposição concreta.

O princípio da proporcionalidade constitui o adequado instrumento jurídico para o controle das sanções tributárias que escapam à vedação constitucional à utilização do tributo com efeito de confisco, comando constitucional que, não obstante refira-se somente a “tributo com efeito de confisco”, alcança também a regra tributária de natureza sancionatória.

3. O princípio da proporcionalidade e as sanções tributárias

Antes de mais nada, cumpre deixar claro o caráter instrumental da  sanção jurídica, isto é, ela não constitui um fim em si mesma, mas um instrumento para alcançar uma finalidade de interesse público, consubstanciada na busca de concretização de uma regra ou princípio protegidos pela ordem jurídica.

As sanções tributárias, em regra, objetivam prevenir a consumação de um dano ao Erário e desempenham tal tarefa mediante técnicas de intimidação e retribuição ou ressarcimento. A intimidação ocorre através da ameaça da aplicação de penas pecuniárias ou de medidas restritivas de liberdade, em função do descumprimento do dever tributário. A previsão de um castigo funciona como uma intimidação a quem pretende descumprir o dever tributário. A sanção desempenha também uma função ressarcitória (ou retributiva) consubstanciada na efetiva imposição de conseqüências negativas ao autor da violação da lei tributária (castigos ou penas).[15]

Além das funções intimidatória e ressarcitória ou retributiva, presente de resto nas demais sanções jurídicas, penais, administrativas etc., Augusto Fantozzi lembra que a peculiar estrutura do sistema tributário sancionatório permite que as sanções tributárias desempenhem uma função ulterior e, para ele, talvez mais importante, qual seja, a de assegurar ao Erário uma arrecadação até superior ao valor do montante do tributo devido.[16]

De fato, com as penas pecuniárias, o Estado, ao fim e ao cabo, termina por conduzir aos cofres públicos valores superiores àqueles devidos como conseqüência da realização da hipótese de incidência tributária prevista legalmente. Nem se diga que a arrecadação deste montante estaria a consubstanciar mera função ressarcitória, pois estaria objetivando recompor o prejuízo sofrido pelo Estado com o recolhimento a destempo do tributo devido. Tal afirmação somente teria sentido se houvesse uma relação razoável, pelo menos aproximada, entre o nível da sanção imposta e o tempo havido entre o descumprimento do dever tributário e o efetivo recolhimento aos cofres públicos do tributo devido, o que, pelo menos no Brasil, não ocorre. Ademais, a exigência de juros, a rigor, já preenche a função retributiva que deve ser desempenhada pelas sanções tributárias. De todo modo, como lembrou Fantozzi, este é um particular aspecto das sanções tributárias de natureza pecuniária.

As sanções tributárias são instrumentos de que se vale o legislador para buscar o atingimento de uma finalidade desejada pelo ordenamento jurídico. A análise da constitucionalidade de uma sanção deve sempre ser realizada considerando o objetivo visado com a sua criação legislativa. De forma geral, como lembra Régis Fernandes de Oliveira, “a sanção deve guardar proporção com o objetivo de sua imposição”.[17] O princípio da proporcionalidade constitui um instrumento normativo-constitucional através do qual pode-se concretizar o controle dos excessos do legislador e das autoridades estatais em geral na definição abstrata e concreta das sanções.

O primeiro passo para o controle da constitucionalidade de uma sanção, através do princípio da proporcionalidade, consiste na perquirição dos objetivos imediatos visados com a previsão abstrata e/ou com a imposição concreta da sanção. Vale dizer, na perquirição do interesse público que valida a previsão e a imposição da sanção.

As sanções tributárias quase sempre objetivam realizar o interesse público consistente na arrecadação das receitas indispensáveis ao custeio dos serviços e investimentos públicos.[18] Neste sentido, as sanções tributárias constituem nada mais do que um instrumento de busca da concretização do princípio da capacidade contributiva, consubstanciado no comando normativo segundo o qual todos devem concorrer para o custeio dos gastos públicos na medida das suas respectivas possibilidades, medida esta que é dada pela lei tributária. O princípio da capacidade contributiva é o objetivo constitucional que norteia a previsão e a imposição das sanções tributárias em geral e que permite, exige e valida as funções intimidatória e ressarcitória presentes na regra tributária sancionatória. Portanto, a sanção tributária, de forma geral, justifica-se e fundamenta-se no princípio da capacidade contributiva.[19]

Todavia, os Estados ocidentais contemporâneos, marcados pela intervenção no e sobre o domínio econômico e comprometidos juridicamente com a justiça social, utilizam as hipóteses de incidências tributárias com outros objetivos, além daqueles meramente arrecadatórios. É o que se convencionou denominar função extrafiscal da tributação. A Constituição Federal brasileira, na linha dessa tendência mundial, caracteriza-se como uma Constituição de natureza dirigente, em que ao Estado é imposta a tarefa de transformação da realidade e de realização de justiça social, através de todo o rol de instrumentos de que ele dispõe, notadamente no desempenho da potestade tributária.

Exemplo típico de norma tributária com função extrafiscal é aquela que estabelece o dever tributário decorrente da realização de operação de importação de mercadorias do exterior. O sujeito passivo, que descumpre o dever de recolher o imposto de importação por ele devido, não está descumprindo, pelo menos diretamente, o princípio da capacidade contributiva, já que o objetivo imediato daquela imposição tributária, em regra, não é a concretização desse princípio, mas o atingimento de uma finalidade de política econômica (proteção do mercado interno contra a entrada de determinados produtos estrangeiros, por exemplo). Logo, a sanção pela inobservância do dever tributário de recolher o imposto de importação não se funda diretamente no princípio da capacidade contributiva, mas no objetivo que justificou a criação daquela incidência tributária; daí porque o juízo acerca da constitucionalidade da sanção tributária, diante do princípio da proporcionalidade, deve, neste caso, considerar o nível da penalidade imposta, não em relação à lesão sofrida pelo princípio da capacidade contributiva, mas em relação ao grau de frustração sofrido pelo objetivo extrafiscal buscado com aquela incidência tributária.

Esta é a razão subjacente a todo o raciocínio judicial que inspirou a criação e a consolidação do princípio da insignificância e a sua utilização como excludente da punibilidade nos crimes de contrabando e descaminho. Entendem os Tribunais que estes crimes não são puníveis quando o grau de lesão sofrido pelo interesse público que justifica o sancionamento das condutas tipificadas naqueles crimes não assume um nível tão considerável que permita ao Estado impor uma sanção privativa de liberdade aos indivíduos que tenham provocado aquela lesão.[20]

Contudo, a averiguação do objetivo visado pela ordem jurídica com a previsão do dever tributário e da razão jurídica que justifica a sanção correspondente nem sempre constitui tarefa fácil, já que uma mesma regra tributária pode buscar atingir objetivos diversos; logo, a conduta que a contraria pode vir a comprometer princípios e objetivos de diferentes naturezas, dependendo da perspectiva em que seja analisada. No mesmo sentido, Sacha Calmon afirma que “um mesmo fato dependendo do ângulo em que é enfocado e dos fins pretendidos pela ordem jurídica, pode ser qualificado, valorado, de diferentes maneiras, de modo a provocar diversas conseqüências jurídicas.[21]

A imposição de uma sanção consiste em uma limitação à esfera juridicamente protegida (prima facie) do infrator, quase sempre concernente à sua liberdade e propriedade; daí porque o juízo de compatibilidade da lei que instituiu uma sanção em face do princípio da proporcionalidade supera a mera consideração da adequação (relação meio-fim) entre a pena imposta e o objetivo visado pela regra inobservada, e deve, sempre (e esta talvez seja a maior contribuição do princípio da proporcionalidade para o controle do poder e para a afirmação das liberdades individuais), considerar o grau de limitação sofrido pela esfera jurídica do infrator.

O efetivo controle da constitucionalidade da previsão e da imposição de uma sanção tributária, sob a ótica do princípio da proporcionalidade, deve considerar não apenas a razoável compatibilidade entre o objetivo visado com a regra tributária inobservada e o nível de sanção previsto para esta inobservância, mas, sobretudo, a extensão da limitação sofrida pelo indivíduo que deve suportar a sanção. O princípio da proporcionalidade exige que a constitucionalidade da sanção seja verificada também sob o ponto de vista do indivíduo infrator, isto é, impõe ao intérprete-aplicador do Direito o dever de considerar o alcance que a sanção tributária concretamente assume relativamente à esfera jurídica do indivíduo infrator.

A abstrata previsão legal de uma multa pecuniária pode observar o princípio da proporcionalidade quando exista razoável compatibilidade entre o que se busca com a regra tributária que tenha sido inobservada e a sanção prevista como conseqüência para essa violação. Contudo, a aplicação desta sanção pode afigurar-se inválida, por ofensa ao princípio da proporcionalidade, se, considerando as características peculiares do indivíduo infrator, a efetiva imposição daquela sanção acaba resultando, por exemplo, no completo aniquilamento da sua atividade econômica.

O princípio da proporcionalidade é regra cogente não apenas para o legislador, no desempenho da tarefa institucional de prever abstratamente as sanções tributárias, mas também para a autoridade administrativa encarregada de concretamente aplicá-las. Desta, aliás, é exigida a maior prudência para, considerando as condições individuais do infrator, dentro da moldura traçada legalmente, definir concretamente a sanção a ser imposta. No mesmo sentido,  Geraldo Ataliba reconhece o caráter constitucional da necessária proporcionalidade entre os delitos e as penas a ele atribuídos, enfatizando a necessidade de moderação e prudência do legislador, ao formular as regras punitivas, e do aplicador, na delicada tarefa de accertamento, isto é, na definição da pena aplicável in concreto.[22]

Neste particular, o princípio da proporcionalidade consubstancia meio de concretização do princípio da individualização da pena, garantido pelo artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal brasileira. Para a concretização ótima deste direito fundamental indispensável que o intérprete-aplicador, observando os comandos normativos emanados do princípio da proporcionalidade, considere, ao lado da razoável compatibilidade entre a gravidade da inobservância da regra jurídica e a correspondente graduação da sanção imposta, as condições individuais do agente infrator; tal juízo, contudo, deve sempre ser realizado dentro do marco legal disponível ao intérprete-aplicador do Direito.

O legislador, objetivando melhor atender aos comandos constitucionais do princípio da individualização da pena e do princípio da proporcionalidade, deve, portanto, estabelecer uma graduação legal das penas de modo a permitir que a autoridade administrativa, ao definir concretamente a sanção aplicável, possa efetivamente, considerando as condições individuais do infrator, chegar a uma concretização ótima daqueles princípios constitucionais.

O princípio da individualização da pena aliado ao princípio da proporcionalidade impedem que uma sanção pecuniária que, a rigor, deveria somente constituir apenas uma ameaça no sentido de induzir os sujeitos passivos tributários ao recolhimento do tributo devido, termine por aniquilar completamente o direito de propriedade ou mesmo o princípio da livre iniciativa econômica, igualmente garantidos constitucionalmente.

A função bloqueadora do princípio da proporcionalidade exige que a constitucionalidade das sanções concretamente impostas sejam avaliadas, sobretudo, diante do nível de limitação que elas impõem à esfera jurídica do indivíduo infrator, isto é, o objetivo buscado com a aplicação da sanção deve ser considerado também sob o ponto de vista do indivíduo infrator. Esta é uma imposição que vincula em primeiro lugar o legislador e, em segundo plano, a autoridade administrativa, a quem compete concretamente atingir a finalidade objetivada pelo comando legal sancionatório sem negligenciar o atendimento às condições individuais do infrator. Em suma, a autoridade administrativa deve, dentro do marco legal que lhe é disponível, procurar buscar a máxima concretização do objetivo legal sancionatório, impondo a menor restrição possível à esfera jurídica do indivíduo infrator, tarefa que, por óbvio, não é de fácil execução, mas que deve nortear a atividade daquela autoridade.

O objetivo da regra tributária sancionatória, conforme observado retro, por vezes, não se resume à mera concretização do princípio da capacidade contributiva que, no caso das sanções, revela-se na previsão de uma ameaça da imposição de um castigo, que busca induzir todos a cumprirem os seus respectivos deveres de concorrer para o gasto público, na proporção de suas disponibilidades materiais, na forma da lei tributária. Logo, a verificação da constitucionalidade da regra sancionatória, diante do princípio da proporcionalidade, supera o mero juízo formal e abstrato de compatibilidade entre o nível de imposição sancionatória e a gravidade da lesão sofrida pelo princípio da capacidade contributiva, ou do objetivo extrafiscal buscado pela regra tributária; antes, exige a consideração do grau da limitação sofrida pelo indivíduo infrator com a aplicação da sanção.

Esta premissa conduz a uma conclusão inexorável: a verificação da constitucionalidade de uma sanção tributária exige a consideração de toda a ordem jurídica e do conjunto de objetivos e princípios por ela albergados. A imposição de uma sanção tributária, embora quase sempre implique uma limitação ao direito de propriedade, mediante a imposição de penas pecuniárias, pode, por outro lado, conduzir a substanciais e espúrias limitações a outros direitos e garantias, cujo atingimento também constituem objetivos constitucionalmente assumidos. Logo, para a perfeita compreensão do tema das sanções vale lembrar a lição de Fábio Konder Comparato, para quem “a estrutura de qualquer norma ou instituto jurídico deve ser interpretada em vista das funções, próprias ou impróprias, do conjunto de seus elementos ou disposições: e toda função é limitada pela estrutura do conjunto”.[23]

Com efeito, assim como a finalidade buscada com a previsão e  aplicação de uma sanção tributária pode ser encontrada em diversas regras e princípios do ordenamento jurídico, o alcance dessa finalidade pode concretamente lesar, desproporcionalmente, outros direitos e garantias protegidos pela ordem jurídica. Assim, o exame da constitucionalidade da imposição de uma sanção não prescinde, antes exige, a consideração dos efeitos concretos que a sanção acarreta sobre a esfera jurídica do infrator. O princípio da proporcionalidade, em sua tríplice dimensão, constitui inigualável instrumento apto a viabilizar o controle dessa atividade estatal.

A máxima concretização do princípio da proporcionalidade exige a consideração dos três comandos que este alberga: adequação, necessidade e conformidade ou proporcionalidade em sentido estrito. Indispensável que a aplicação do princípio da proporcionalidade se realize sempre através da verificação do cumprimento dos seus três aspectos, uma vez que uma sanção pode atender a um ou dois dos aspectos do princípio, e revelar-se inconstitucional pelo descumprimento do terceiro. Vale dizer, a validade de uma sanção, diante do princípio da proporcionalidade, depende do preenchimento simultâneo de seus três aspectos.

Neste sentido, Clèmerson Merlin Clève considera inconstitucional, por ofensa ao princípio da proporcionalidade, o tipo legal consistente na criminalização da conduta de mero não recolhimento de tributo devido (crime omissivo próprio), pois tal previsão legal impõe uma restrição desnecessária e desproporcional, em sentido estrito, ao direito fundamental de não privação da liberdade em razão de dívida, garantido no artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal. Clèmerson Clève, considerando a regra legal que tipifica aquele crime diante dos três aspectos do princípio da proporcionalidade em sentido lato, reconhece que tal medida restritiva de liberdade é adequada à finalidade pretendida (realização do interesse público arrecadatório), contudo desnecessária, já que existem outros meios menos gravosos para os indivíduos, e que demonstram-se igualmente aptos ao alcance daquele interesse público, e desproporcional em sentido estrito, haja vista o completo aniquilamento do direito fundamental de não-sujeição à privação de liberdade por dívida, garantido constitucionalmente, provocado por aquela sanção penal.[24]

O estudo de Clèmerson Clève demonstra à saciedade a indispensabilidade da averiguação dos três aspectos do princípio da proporcionalidade, como instrumento de controle da previsão e aplicação concreta das sanções tributárias, e de forma geral, de toda e qualquer restrição à esfera jurídica individual imposta pelos agentes estatais. A riqueza e a valia do princípio da proporcionalidade para a afirmação dos postulados do constitucionalismo contemporâneo e do Estado Democrático de Direito estão exatamente na sua tríplice dimensão que a um só tempo impede o arbítrio do agente estatal submetido ao controle do Poder Judiciário (em última instância) e exige que o controle jurisdicional também seja estritamente fundamentado diante daqueles três aspectos, em nome da presunção de constitucionalidade dos atos estatais e do princípio da motivação das decisões judiciais.

Segundo a concepção adotada neste trabalho, o princípio da proporcionalidade, em seu aspecto adequação (Geeignetheit), exige que a sanção tributária seja adequada à finalidade buscada com a sua previsão e aplicação concreta. Deve haver uma relação de meio-fim entre a sanção e o objetivo que justifica a existência da limitação jurídica imposta pela regra sancionatória. Como afirmado retro, em regra, as sanções tributárias objetivam realizar, em escala maximizada, o princípio da capacidade contributiva. A sanção tributária, neste sentido, é o meio de que dispõe o Estado para, mediante intimidação, induzir os indivíduos a cumprir o seu dever de concorrer com o custeio dos gastos públicos na medida de suas disponibilidades, segundo o disposto na lei tributária. Sob o aspecto da adequação, atendem ao princípio da proporcionalidade todas as sanções tributárias que conduzam razoavelmente ao objetivo visado pela regra jurídica que prevê o dever tributário.

A proporcionalidade, em seu aspecto necessidade (Erforderlichkeit), consubstancia a regra da menor limitação possível, ou do meio menos lesivo (das mildeste Mittel). Para atender ao princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, a medida restritiva imposta pelo Estado deve representar a menor limitação possível à esfera individual juridicamente protegida, e que concretamente é atingida pela imposição da sanção. Vale dizer, a limitação imposta à esfera jurídica do indivíduo deve ser estritamente indispensável ao atingimento do interesse público que justifica tal restrição.

A sanção tributária nada mais é do que a imposição de uma limitação à esfera jurídica do infrator (protegida prima facie) e para cumprir o princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, deve ser graduada de modo a impor a menor limitação possível àquela esfera. Neste sentido, revela-se absolutamente inconstitucional, por infringência ao princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, a limitação da liberdade pela simples impontualidade no cumprimento de deveres tributários (crime omissivo próprio), através das chamadas sanções penais tributárias ou sanções tributárias penais. A autorização para o legislador limitar este direito de liberdade, nos quadrantes da ordem constitucional brasileira, é absolutamente excepcional, sendo permitida apenas em situações de indisfarçável exigência de ordem pública. O legislador não é livre para criminalizar toda e qualquer conduta, ao seu inteiro arbítrio. A lesão ao interesse público causada pela conduta criminalizada deve ser de tal monta que justifique a sua tipificação penal.

Por essa razão, justifica-se a criminalização da fraude, do conluio e da falsidade documental presentes nas condutas praticadas com o objetivo de suprimir ou reduzir o montante e a dimensão do dever tributário. Neste caso, o legislador penal não está criminalizando a conduta relativa ao mero descumprimento de um dever tributário, mas o meio ardiloso utilizado pelo infrator para fraudar a Administração Tributária. A sanção tributária de caráter penal mais do que o princípio da capacidade contributiva, objetiva ver resguardado o dever de boa-fé que deve nortear todas as ações sociais.[25]

O princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, torna inconstitucional também grande parte das sanções indiretas ou políticas impostas pelo Estado sobre os sujeitos passivos que se encontrem em estado de impontualidade com os seus deveres tributários. Com efeito, se com a imposição de sanções menos gravosas, e até mais eficazes (como a propositura de medida cautelar fiscal e ação de execução fiscal), pode o Estado realizar o seu direito à percepção da receita pública tributária, nada justifica validamente a imposição de sanções indiretas como a negativa de fornecimento de certidões negativas de débito, ou inscrição em cadastro de devedores, o que resulta em sérias e graves restrições ao exercício da livre iniciativa econômica, que vão da impossibilidade de registrar atos societários nos órgãos do Registro Nacional do Comércio até a proibição de participar de concorrências públicas.

O Estado brasileiro, talvez em exemplo único em todo o mundo ocidental, exerce, de forma cada vez mais criativa, o seu poder de estabelecer sanções políticas (ou indiretas), objetivando compelir o sujeito passivo a cumprir o seu dever tributário. Tantas foram as sanções tributárias indiretas criadas pelo Estado brasileiro que deram origem a três Súmulas do Supremo Tribunal Federal.[26]

Enfim, sempre que houver a possibilidade de se impor medida menos gravosa à esfera jurídica do indivíduo infrator, cujo efeito seja semelhante àquele decorrente da aplicação de sanção mais limitadora, deve o Estado optar pela primeira, por exigência do princípio da proporcionalidade em seu aspecto necessidade.

Por último, o princípio da proporcionalidade em sentido lato exige que a sanção tributária seja conforme ou proporcional em sentido estrito aos objetivos que pretende alcançar, e que pretendem validar a sua previsão e aplicação concreta. Através deste aspecto, o intérprete-aplicador do Direito deve verificar se a finalidade de interesse público buscada pela regra sancionatória supera o grau de limitação jurídica decorrente da imposição concreta da sanção. Vale dizer, o objetivo buscado com a sanção deve concretamente justificar a restrição imposta à esfera jurídica do infrator. A conformidade ou proporcionalidade em sentido estrito impede que, a pretexto de alcançar uma finalidade de interesse público, o Estado acabe por anular completamente o âmbito de eficácia de outros direitos e garantias individuais.

As sanções tributárias podem revelar-se inconstitucionais, por desatendimento à proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit im engeren Sinne), quando a limitação imposta à esfera jurídica dos indivíduos, embora arrimada na busca do alcance de um objetivo protegido pela ordem jurídica, assume uma dimensão que inviabiliza o exercício de outros direitos e garantias individuais, igualmente assegurados pela ordem constitucional.

O atingimento do conjunto de finalidades previstas pela ordem constitucional exige que o intérprete-aplicador do Direito (a começar pelo legislador) efetue contínuas operações de sopesamento entre os diferentes princípios jurídicos constitucionais, através de um apurado exercício de prudência. Obviamente que o alcance dos desideratos constitucionais requer, muitas vezes, uma certa restrição à esfera jurídica dos indivíduos, também protegida constitucionalmente prima facie. Contudo, esta restrição, além de ser adequada e necessária, deve estar em perfeita conformidade com o objetivo perseguido pela regra limitadora, e jamais deve aniquilar por completo o direito ou garantia individual protegido prima facie pelo ordenamento jurídico e que concretamente sofre a limitação.

O princípio da proporcionalidade talvez represente a mais solene garantia constitucional de concretização dos direitos individuais, ao limitar e nortear a atuação estatal em todos os seu níveis, sobretudo no que tange à disciplina de direitos relativos à liberdade e propriedade. No âmbito tributário, Roque Antonio Carraza conclui que “As garantias constitucionais limitam o poder de tributar e sancionar. O propósito de abastecer de dinheiro os cofres públicos não pode chegar, num Estado de Direito como o nosso, ao ponto de lesar direitos subjetivos das empresas e dos particulares que delas participam.”[27]

Exemplo de sanção tributária claramente desproporcional em sentido estrito é a interdição de estabelecimento comercial ou industrial motivada pela impontualidade do sujeito passivo tributário relativamente ao cumprimento de seus deveres tributários. Embora contumaz devedor tributário, um sujeito passivo jamais pode ver aniquilado completamente o seu direito à livre iniciativa em razão do descumprimento do dever de recolher os tributos por ele devidos aos cofres públicos. O Estado deve responder à impontualidade do sujeito passivo com o lançamento e a execução céleres dos tributos que entende devidos, jamais com o fechamento da unidade econômica.

Neste sentido, revelam-se flagrantemente inconstitucionais as medidas aplicadas, no âmbito federal, em conseqüência da decretação do chamado “regime especial de fiscalização”.[28] Tais medidas, pela gravidade das limitações que impõem à livre iniciativa econômica, conduzem à completa impossibilidade do exercício desta liberdade, negligenciam, por completo, o verdadeiro papel da fiscalização tributária em um Estado Democrático de Direito e ignoram o entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca das sanções indiretas em matéria tributária. Esta Corte, aliás, rotineiramente afasta os regimes especiais de fiscalização, por considerá-los verdadeiras sanções indiretas, que se chocam frontalmente com outros princípios constitucionais, notadamente com a liberdade de iniciativa econômica.[29]

Se a utilização do poder político, mediante a criação e a exigência de tributos, não pode chegar ao ponto de impossibilitar o exercício da livre iniciativa econômica, a fortiori é vedado ao Estado, utilizando-se do poder sancionatório, superar tal barreira, transformando a sanção tributária em mecanismo de destruição daquela liberdade constitucionalmente assegurada.[30]

A proporcionalidade em sentido estrito permite a verificação dos efeitos concretos que a imposição da sanção gera sobre a esfera jurídica do sujeito infrator. É precisamente no âmbito deste juízo de proporcionalidade que o intérprete-aplicador do Direito verifica, atendendo também ao comando constitucional da individualização das penas (artigo 5º, XLVI), se a limitação à esfera jurídica do infrator, como conseqüência da aplicação da sanção, é proporcional à gravidade da lesão sofrida pela ordem jurídica com a prática daquela determinada infração. Para tanto, indispensável a consideração da situação pessoal do infrator, bem como das condições fáticas e jurídicas em que a conduta infracional foi praticada. Uma sanção tributária pode ser adequada e necessária à finalidade que com ela se pretende alcançar, mas a sua aplicação pode ser afastada, por inconstitucionalidade, quando, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto, conduza ao aniquilamento de outros direitos e garantias individuais. Portanto, torna-se indispensável a concretização do princípio constitucional da individualização das penas.

Outrossim, o juízo de proporcionalidade em sentido estrito de uma sanção tributária deve ser norteado pela análise da sua conformidade jurídica, não apenas diante do interesse estatal que a justifica (concretização do princípio da capacidade contributiva e/ou repressão de uma conduta contrária aos desideratos protegidos pelo Direito), mas também perante o conjunto de princípios, regras e normas-objetivo do sistema jurídico.

Esta é a razão subjacente ao raciocínio judicial que afasta a punibilidade do crime tributário em função do não recolhimento de contribuições previdenciárias, nas hipóteses de comprovadas e sérias dificuldades financeiras do sujeito passivo tributário, por configurar inexigibilidade de conduta diversa. Com efeito, o mero interesse estatal na arrecadação dos tributos pode ser afastado nas hipóteses em que o sujeito passivo, em dificuldades financeiras, tenha optado pelo pagamento de salários e de outras dívidas indispensáveis à manutenção da empresa, mantendo-se inadimplente com o Erário. Ao assim entender, conforme afirma Hugo de Brito Machado, o Poder Judiciário prestigia o interesse dos empregados na manutenção do emprego, e do próprio Fisco na manutenção da fonte dos tributos.[31]

concretização da proporcionalidade em sentido estrito não poderia restar mais clara, haja vista o sopesamento, formulado pelo intérprete-autêntico, entre o peso específico do interesse estatal no recolhimento do tributo (fundamento nuclear da sanção) e os demais interesses protegidos pelo ordenamento (proteção do trabalho e do emprego, da livre iniciativa econômica), prima facie, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto.

4. O Poder Judiciário, o princípio da proporcionalidade e as sanções tributárias

Existe um certo consenso doutrinário quanto à necessária proporcionalidade das sanções tributárias. Todavia, a dificuldade é, primeiro, definir um critério, ainda que teórico, para a aferição desta proporcionalidade, já que esta consubstancia sempre um juízo relacional: algo é (ou não) proporcional em relação a alguma outra coisa; e segundo, estabelecer o grau que este controle pode assumir dentro do quadro geral de distribuição das funções estatais; em outras palavras, qual o papel que o Poder Judiciário, último intérprete do Direito, deve desempenhar no controle da previsão e da imposição das sanções tributárias, em face do princípio da proporcionalidade.

O critério para tratar a primeira dificuldade já foi retro-exposto, isto é, a proporcionalidade de uma sanção tributária somente pode ser aferida quando se considera a sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ao princípio (ou interesse público) visado pela regra inobservada. Tal juízo, contudo, deve ser realizado sempre diante do grau de limitação concretamente imposto à esfera jurídica do sujeito infrator. Este, a nosso entender, é o critério que permite aferir a constitucionalidade das sanções tributárias em face do princípio da proporcionalidade. A seguir, tentaremos estabelecer os critérios a serem observados pelo Poder Judiciário no desempenho da tarefa de controlar as normas sancionatórias.

As sanções tributárias, como de resto as demais sanções jurídicas, sujeitam-se aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade, direitos fundamentais constitucionalmente assegurados (artigo 5º, XXXIX). Assim, tanto as infrações, como as penas devem estar tipificadas previamente na lei, de forma clara e induvidosa, sendo desaconselhável, para a concretização deste direito fundamental, a veiculação de tipos abertos. Por força do princípio da tipicidade, a lei deve prever pormenorizadamente a sanção aplicável a cada infração.

O legislador, ao estabelecer a sanção aplicável à conduta infratora, pode e deve prever uma graduação da mesma, de modo a permitir que a autoridade encarregada da sua concreta imposição possa atender às peculiaridades da infração ocorrida e do sujeito que a praticou, como exige o princípio constitucional da individualização das penas. Assim, as penas, não obstante tipificadas legalmente, devem ser fixadas entre um mínimo e um máximo, consoante os critérios utilizados pelo legislador para agravá-las ou reduzi-las; todavia, a definição concreta da pena aplicável deve ser realizada considerando as características fáticas e jurídicas da infração concretamente praticada, bem como da condição subjetiva do infrator.

Afaste-se, desde logo, a  afirmação de que o artigo 136 do Código Tributário Nacional dotaria a sanção tributária de um caráter objetivo que impediria a consideração das condições pessoais do infrator, na determinação da sanção concretamente aplicável.[32]

Primeiro, pela óbvia razão de que se tal artigo infraconstitucional assim devesse ser interpretado colidiria com o direito fundamental à individualização das penas consagrado constitucionalmente, logo, seria absolutamente incompatível com a Constituição Federal, devendo ser desconsiderado pelo intérprete-aplicador do Direito brasileiro.

Segundo, aquele artigo não se situa no âmbito da aplicação concreta da pena, mas da atribuição potencial da responsabilidade. O que estabelece aquela regra infraconstitucional é que o descumprimento do dever tributário (de natureza patrimonial) faz surgir de imediato a responsabilidade do agente infrator, ficando este, desde logo, sujeito às conseqüências moratórias de tal ato, independentemente de qualquer ato posterior da Administração Pública; aquela regra infraconstitucional assume para a relação jurídica tributária sentido equivalente àquele assumido pelo artigo 960, primeira parte, do Código Civil para as relações obrigacionais de Direito privado, isto é, de determinar a constituição do devedor em mora, desde que ocorrido o inadimplemento da obrigação, no seu termo, independentemente de posterior interpelação, notificação ou protesto.

Ultrapassada a fase de constatação da infração, e instaurado o processo de definição concreta do conteúdo, medida e alcance da responsabilidade, surgida potencialmente com a infração, pode e deve a autoridade aplicadora considerar o comando constitucional de individualização das penas. Esta é a única exegese que permite conformar aquele dispositivo com a Constituição Federal. Caso contrário, deve ser pronunciada a sua inconstitucionalidade.

O princípio da proporcionalidade constitui fundamental instrumento de controle da constitucionalidade dos atos estatais. Neste sentido, cumpre ao Poder Judiciário, em última instância, zelar pelo seu cumprimento. Ocorrendo o desatendimento, por um ato estatal, de qualquer dos aspectos do princípio da proporcionalidade, resta ao Poder Judiciário pronunciar a inconstitucionalidade daquele ato. Não cumpre ao Poder Judiciário substituir o ato perante ele impugnado por outro que, a seu juízo, melhor atenda ao conjunto de regras e princípios constitucionalmente garantidos. O Poder Judiciário formula apenas um juízo de exclusão (ou de manutenção) daquele ato.

Em regra, tal pressuposto também se aplica ao controle judicial das sanções tributárias. Demonstrada perante o Poder Judiciário a inconstitucionalidade da previsão e/ou da aplicação concreta de uma sanção tributária, cumpre a esse Poder pronunciar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato sancionatório. Em regra, portanto, não pode o Poder Judiciário substituir a sanção imposta pela autoridade estatal por outra que os membros deste Poder julgam mais conveniente.[33]

Como regra geral, através do princípio da proporcionalidade o Poder Judiciário simplesmente pronuncia a validade ou invalidade do ato sancionatório perante ele sindicado. Régis Fernandes de Oliveira ensina que “descumprida a aplicação proporcional das sanções, legítimo é ao Judiciário anular não apenas o excesso, mas a própria imposição, por incompatível com o sistema jurídico brasileiro. À Administração Pública restará a possibilidade de, se ainda não ocorrida decadência ou prescrição, impor nova sanção, já então adequada à disposição legal”.[34]

Todavia, o juízo de proporcionalidade formulado pelo Poder Judiciário é sempre pautado pelo conteúdo da lei que prevê a sanção aplicada pela autoridade estatal, e cuja validade é questionada judicialmente. A previsão legal das sanções deve sempre buscar a maximização da eficácia do princípio da individualização das penas e do princípio da proporcionalidade. O alcance deste desiderato somente é possível mediante a discriminação legal das circunstâncias de agravamento e redução das sanções atreladas a uma escala gradativa destas sanções.

O juízo exercido pelo Poder Judiciário recai, em primeiro lugar, sobre os critérios utilizados pelo legislador para buscar maximizar o princípio da individualização das penas através do princípio da proporcionalidade. O Poder Judiciário verifica se as circunstâncias atenuantes e agravantes guardam proporcionalidade com a respectiva escala sancionatória. Vale dizer, observa o Poder Judiciário, por exemplo, se a conduta eleita legalmente como agravante de uma determinada sanção justifica o respectivo grau de aumento previsto para essa sanção em função da realização daquela conduta.

Verificada a desproporcionalidade entre a gravidade da conduta e o aumento da respectiva sanção, cumpre ao Poder Judiciário tão-somente pronunciar a inconstitucionalidade da regra legal sancionatória, jamais alterar a sanção concretamente imposta pela autoridade administrativa, substituindo o critério eleito pelo legislador ao ponderar a gravidade da conduta lesiva, quando da graduação da sanção, por outro que lhe pareça mais conveniente. Este é um típico juízo de controle de constitucionalidade dos atos estatais através do princípio da proporcionalidade que, a rigor, é formulado sobre o critério eleito pelo legislador para prever a sanção agravada. Pronunciada a inconstitucionalidade da lei que estabelece a sanção, o ato administrativo sancionatório, por conseqüência, deve ser anulado.

Contudo, o conteúdo e o alcance do controle judicial das sanções dependem sempre do marco legal existente, isto é, da forma como o legislador as previu. Podem ocorrer situações em que o legislador estipule as sanções entre um mínimo e um máximo, devendo tal graduação obedecer às características pessoais do infrator (grau de inadimplência, por exemplo) e/ou da infração objetivamente considerada (nível de sofisticação dos meios utilizados para fugir do dever tributário, como notas calçadas, por exemplo). Nestas hipóteses, constatada a infração e imposta a pena aplicável, poderá o Poder Judiciário reduzir a sanção administrativamente aplicada, todavia dentro do marco legalmente traçado, em nome do princípio da proporcionalidade, desde que o infrator comprove judicialmente a existência de circunstâncias fáticas e jurídicas que autorizam, segundo a previsão legal, a redução da pena imposta. Assim agindo, o Poder Judiciário não está substituindo o critério utilizado pela autoridade administrativa que impôs a sanção, mas está, tão-somente, cumprindo o seu dever institucional de aplicar a lei que prevê aquela determinada sanção, em conformidade com o que determina o princípio da proporcionalidade. Em outras palavras, está definindo o Direito aplicável ao caso concreto.[35]

Para que o Poder Judiciário possa controlar eficazmente a imposição das sanções tributárias, indispensável é que o legislador, cumprindo o que lhe determina a Constituição Federal, no que tange ao princípio da individualização das penas, preveja as circunstâncias atenuantes e agravantes, diante das quais poderá a sanção ser agravada ou reduzida pela autoridade encarregada de aplicar a regra legal. A concretização ótima do princípio da individualização da pena é diretamente proporcional ao grau de detalhamento legislativo das circunstâncias agravantes e atenuantes das sanções, pois permitirá à autoridade administrativa a avaliação concreta do grau da lesão sofrida pela ordem jurídica com a prática do ato infracional, a medida proporcional da sanção a ser aplicada ao infrator e, simultaneamente, um eficaz controle do ato sancionatório perante o Poder Judiciário, o qual poderá verificar se a sanção aplicada, embora dentro da moldura legal traçada, atende às exigências do princípio da proporcionalidade, sobretudo diante do aspecto conformidade.

Previstas na lei as circunstâncias atenuantes e agravantes da sanção tributária, o Poder Judiciário poderá e deverá verificar se a sanção imposta atende àquelas hipóteses legais, podendo deste juízo resultar uma redução da sanção aplicável. Trata-se, neste caso, de um juízo de subsunção que requer a apreciação dos fatos. Exemplo de tal situação pode ocorrer nos casos em que a lei tributária prevê uma multa, por exemplo, de vinte por cento do tributo devido, pela mera impontualidade no seu recolhimento, e uma multa agravada de cem por cento, para as hipóteses em que o não recolhimento ocorre mediante fraude. Aplicada a multa de cem por cento, e levada a questão ao Poder Judiciário, cabe a este formular, fundamentalmente, juízos de duas ordens.

Primeiro, o Poder Judiciário verifica se uma conduta fraudulenta justifica a majoração da sanção de vinte para cem por cento do valor do tributo devido, isto é, o juiz analisa se tal agravamento não se revela, desde logo, confiscatório, e se atende às exigências do princípio da proporcionalidade, considerando-se as três dimensões deste princípio. Assim procedendo, está o Poder Judiciário verificando a constitucionalidade da sanção diante do princípio da proporcionalidade.

Superado o juízo abstrato de constitucionalidade da medida sancionatória, o juiz verifica se ocorreu o suporte fático eleito legislativamente como causa de agravamento da pena, isto é, o juiz, apreciando a motivação do ato administrativo sancionatório e as razões a ele levadas pelo indivíduo infrator, formula um juízo de subsunção entre os fatos ocorridos e o conceito legal de ação fraudulenta. Analisando os fatos, o juiz poderá concluir se, como afirmado pela autoridade administrativa, ocorreu a agravante fraude, ou se, conforme sustentado pelo sujeito infrator, inexistiu fraude. Concluindo pela existência de fraude, cabe ao juiz, negando provimento à pretensão do sujeito infrator, confirmar a validade da sanção imposta. Caso entenda que inexistiu a agravante fraude e tendo o sujeito infrator confessado a prática da infração, negando, contudo, a prática de tal agravante, pode o juiz excluir a sanção correspondente à agravante, mantendo a sanção aplicável à infração tout court, que, no exemplo, equivaleria a vinte por cento.

A rigor, neste caso, o Poder Judiciário não está fixando a sanção cabível, mas apenas aplicando a lei dentro dos limites do pedido que lhe foi formulado pelo infrator, no bojo de uma relação jurídica processual concreta. Não se trata de aplicação do princípio da proporcionalidade, mas de mero juízo de subsunção exercido no estrito controle da legalidade. Da mesma forma, o Poder Judiciário não está substituindo o critério da autoridade administrativa na fixação das penas, mas tão-somente excluindo a sanção na dimensão que equivale à prática de uma conduta eleita legalmente como agravante, e que judicialmente foi reconhecida como inexistente. Em uma palavra, ao assim proceder, o Poder Judiciário está tão-somente aplicando a lei aos fatos que reconhece como existentes.

Para dar efetividade a outros princípios constitucionais, como o princípio da retroatividade da lei sancionatória mais benéfica, pode o Poder Judiciário, formulando o juízo de exclusão que lhe cabe institucionalmente, invalidar a sanção imposta em nível superior àquele posteriormente previsto pela ordem jurídica para a mesma conduta infratora. Ao assim proceder, o Poder Judiciário não está substituindo a sanção perante ele questionada, mas somente retirando, excluindo, tornando inválido o castigo imposto, no nível que supera aquele previsto posteriormente pela ordem jurídica para a mesma infração. Logo, não se trata de juízo de substituição, mas mero juízo de exclusão, exigido pelo princípio da retroatividade da lei sancionatória menos gravosa. Ademais, neste caso, não se trata de aplicação do princípio da proporcionalidade, mas de concretização do princípio da retroatividade da lex mitior.

Portanto, o Poder Judiciário, no exercício da função de analisar os conflitos de interesses que são levados à sua apreciação, termina por fixar pautas de proporcionalidade, através do afastamento de sanções por ele julgadas inconstitucionais. Em outras palavras, o Poder Judiciário afirma concretamente quais são as sanções desproporcionais, jamais quais são as sanções proporcionais ou a sanção que melhor atende à necessidade de regulação do caso.

O Supremo Tribunal Federal historicamente tem se demonstrado muito cauteloso no que tange aos pedidos de redução de sanções tributárias. De forma geral, o Supremo Tribunal analisa a juridicidade da sanção sempre diante dos parâmetros legais com base nos quais a mesma foi aplicada, isto é, aquela Corte verifica, sempre analisando as características do fato concreto, se a sanção imposta atendeu aos desideratos e à graduação previstos pelo legislador tributário.[36] A prática da infração com as agravantes do dolo, má-fé ou fraude tem sido elemento importante na decisão daquela Corte no que tange à verificação da excessividade da sanção imposta.[37]

O Supremo Tribunal Federal também tem se mantido firme na tendência de afastar, por inconstitucionais, as sanções de caráter confiscatório. O confisco, de fato, constitui um limite claro na jurisprudência do Supremo Tribunal quanto à liberdade dos Poderes Legislativo e Executivo para prever e impor sanções, respectivamente.[38]

Portanto, impõe-se distinguir as hipóteses em que o Poder Judiciário formula um mero juízo (de confirmação ou de negação) da constitucionalidade das sanções tributárias diante do princípio da proporcionalidade, das hipóteses em que o Poder Judiciário, mediante simples juízo de subsunção dos fatos à lei, pode reduzir a sanção perante ele questionada. A aplicação do princípio da proporcionalidade, em regra, não permite ao Poder Judiciário reduzir, a seu exclusivo arbítrio, a sanção imposta pela autoridade administrativa, a pretexto de procurar “a melhor pena” ou o “menor castigo”. A redução da sanção somente é permitida ao Juiz quando o marco legal de previsão das sanções assim permitir; por outro lado, o juízo de subsunção, mero juízo de legalidade, poderá concretamente conduzir à redução da sanção aplicada, caso o Poder Judiciário, no bojo de uma relação jurídica processual individual e atndendo ao requerimento do sujeito infrator, conclua, por exemplo, pela inocorrência fática da causa legalmente eleita como agravante (dolo, má-fé, fraude).

 

[1] BOBBIO, Norberto. Teoria della norma giuridica. Torino : G.Giappichelli, 1958. p. 201-202.

[2] Idem, ibidem. p. 199.

[3] Tal distinção entre inobservância e inexecução é exposta por Norberto Bobbio (Teoria … Op. cit.  p. 187).

[4] Teoria pura do Direito, trad. Baptista Machado, São Paulo : Martins Fontes, 1987, p. 121.

[5] Diritto Tributario, Milano : Giuffrè, 1998, p. 258.

[6] BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzioni – nuovi studi di teoria del diritto. Milano : Edizioni di Comunitá, 1977. p. 33-42.

[7] Idem, ibidem.

[8] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1992. p. 51 passim.

[9] Idem, ibidem.

[10] Idem, ibidem.

[11] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. São Paulo : Saraiva, 1998. p. 70-71.

[12] PACHECO, Angela da Motta. Sanções tributárias e sanções penais tributárias. São Paulo : Max Limonad, 1997. p. 260.

[13] DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Direito Constitucional Tributário e o “due process of Law”. Rio de Janeiro : Forense, 1986. p. 201-204.

[14] Há, todavia, quem assim não entenda, como Hugo de Brito Machado (Curso de Direito Tributário. 16. ed. São Paulo : Malheiros, 1999. p. 392): “A pena pecuniária, para ser eficaz, deve implicar sacrifício para quem a suporta. Não está sujeita ao limite do art. 150, inciso IV, da Constituição Federal, que veda a tributação confiscatória”.

[15] Hector Villegas (Direito penal tributário. São Paulo : Resenha Tributária/EDUC, 1974. p. 286) afirma que “cometida uma infração tributária, o Estado pode recorrer a diversas espécies de sanções. Geralmente entende que a conduta do infrator deve ser castigada com sanções de caráter repressivo ou retributivo, que constituem penas. Às vezes o conteúdo das penas esgota-se com a pura repressão, como sucede, por exemplo, com a pena privativa de liberdade. Em outras ocasiões, trata-se de penas que, por um lado, reprimem, porquanto constituem um castigo, que é ‘algo mais’ que uma simples reparação, embora, por outro lado, e ao mesmo tempo, compensem pecuniariamente o fisco pelos danos suportados em razão das violações às suas normas tributárias. Assim, sucede, por exemplo, com a multa fiscal”.

[16] Diritto … Op. cit. p. 482.

[17] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo : RT, 1985. p. 71.

[18] Interesse público que não se confunde com interesse fazendário, mas, pelo contrário, sobrepõe-se a este, como lembra Roque Antonio Carraza (A extinção da punibilidade no “parcelamento” de contribuições previdenciárias descontadas, por entidades beneficentes de assistência social, dos seus empregados, e não recolhidas, à Previdência, no prazo legal. Questões conexas. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo : Malheiros, vol. 13, p. 16, 1996).

[19] Ives Gandra da Silva Martins (Da sanção … Op. cit. p. 26) é contundente ao concluir que “as sanções aos delitos e infrações tributárias têm sempre a mesma finalidade, qual seja, de forçar o pagamento do crédito público”.

[20] Apenas para ilustrar tal sólido entendimento jurisprudencial, vale lembrar o decidido pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na Apelação Criminal nº 96.01.12201-0-DF, relatada pela Juiz Mário César Ribeiro:

“PENAL. AÇÃO PENAL. MERCADORIAS CONTRABANDEADAS. SACOLEIRO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

A intervenção punitiva do Estado só se justifica quando está em causa um bem ou um valor social importante. Assim, deve-se excluir do sistema penal a chamada criminalidade de bagatela e os fatos puníveis que se situam puramente na ordem moral.” (Diário da Justiça, 03.09.99, p. 320).

[21] Teoria e prática … p. 66. E conclui o autor: “Assim, o fato de dado contribuinte alterar a verdade dos fatos fraudando documentos ou livros fiscais, com a intenção de omitir receitas tributáveis, redundando em não pagar ou pagar tributo a menor, pode caracterizar: a) um ilícito tributário, pelo que poderá ficar sujeito a uma multa prevista na legislação fiscal específica; b) um ilícito penal, em razão do que ficará sujeito a uma pena privativa de liberdade, devidamente prevista em lei criminal; c) uma hipótese de fato ilícito causadora de outra conseqüência aflitiva prevista como confisco perdimento (sic) de bens, obtidos em razão da atividade ilícita.”

[22] ATALIBA, Geraldo. Inconstitucionalidade de punições permanentes. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo : RT, vol. 95, p. 19-20, 1994.

[23] COMPARATO, Fábio Konder. Direito Empresarial. São Paulo : Saraiva, 1994. p. 4.

[24] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Contribuições previdenciárias. Não-recolhimento. Art. 95, d, da Lei 8.212/91. Inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, São Paulo : RT, vol. 736, p. 524-525, 1997.

[25] No mesmo sentido afirma Carlos da Rocha Guimarães (Sanções tributárias. Revista de Direito Tributário, São Paulo : RT, vol. 23/24, p. 81, 1983) acerca da criminalização de condutas concernentes ao descumprimento de deveres tributários: “Não se trataria mais da proteção a um crédito, da punição a um devedor por usar de certos métodos para não pagá-lo, mas de punir diretamente tais métodos que assumiriam periculosidade autônoma”.

[26] Súmula nº 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributos”; Súmula nº 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”; e Súmula nº 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

[27] A extinção … Op. cit. p. 16.

[28] Segundo dispõe a Lei 9.430/96:

“Art. 33.

  • 2º. O regime especial pode consistir, inclusive, em:

I – manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo;

II – redução à metade, dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimentos dos tributos;

III – utilização compulsória de controle eletrônico das operações realizadas e recolhimento diário dos respectivos tributos;

IV – exigência de comprovação sistemática do cumprimento das obrigações tributárias;

V – controle especial da impressão e emissão de documentos comerciais e fiscais e da movimentação financeira”.

[29] Ver, por exemplo, o decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RExt nº 115.452-SP (Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo : Malheiros, vol. 20, p. 216, 1997): “O ‘regime especial do ICM’ autorizado em lei estadual, porque impõe restrições e limitações à atividade comercial do contribuinte, viola a garantia constitucional da liberdade de trabalho (CF/67, art. 153, § 23; CF/88, art. 5º, XIII), constituindo forma oblíqua de cobrança do tributo, assim execução política, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre repeliu (Súmulas ns. 70, 323, 547)”.

[30] No mesmo sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal no RExt nº 18.331, relatado pelo Ministro Orozimbo Nonato (Revista Forense, Rio de Janeiro : Forense, vol. 145, p. 164), assim ementado: “O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, exercido dentro dos limites que o tornem incompatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o Direito de propriedade. É um poder, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do ‘détournement de pouvoir’”.

[31] Tal entendimento jurisprudencial é defendido por Hugo de Brito Machado (op. cit. p. 389): “Não se venha argumentar com o interesse público na arrecadação do tributo, que afastaria a legitimidade da opção por outros pagamentos. Em relação aos salários, a própria lei estabelece expressamente a preferência destes em relação aos tributos (CTN, art. 186). E o pagamento de outras dívidas, quando indispensável para que a empresa continue funcionando, a legitimidade é fora de dúvida, em face do interesse dos empregados na manutenção do emprego, e do próprio fisco, na manutenção da fonte dos tributos”.

[32] Estabelece o artigo 136 do Código Tributário Nacional: “Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.

[33] Este também é o ensinamento de Régis Fernandes de Oliveira (Infrações … Op. cit. p. 73-74): “Interessante questão que se coloca é de se saber se ao Judiciário é permitido efetuar redução do valor da sanção pecuniária imposta. Os tribunais têm admitido tal procedimento. Entendemos inadmissível tal orientação. Ao Judiciário não é dado efetuar dosagem da pena administrativa. O enquadramento realizado pela autoridade administrativa ou é legal –  e eventual pretensão desconstitutiva da sanção será recusada – ou a adequação é ilegal e, pois, incumbe ao Judiciário anular o castigo imposto. Vedado lhe é reduzir o montante da sanção pecuniária, porque estaria substituindo o critério administrativo pelo judicial e haveria infração ao disposto no art. 6º da CF”.

[34] Infrações … Op. cit. p. 74.

[35] Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 8. ed., São Paulo : Malheiros, 1996,  p. 66), no mesmo sentido, ensina: “Donde, atos desproporcionais são ilegais e por isso fulmináveis pelo Poder Judiciário, que, em sendo provocado, deverá invalidá-los quando impossível anular unicamente a demasia, o excesso detectado”. Logo, a forma como as sanções estão tipificadas na lei é que definirá, concretamente, a margem de liberdade do juiz para, concretizando o princípio da proporcionalidade, eventualmente reduzir a sanção imposta pela autoridade administrativa.

[36] Decidiu o Supremo Tribunal Federal no RExt nº 66.906 (RTJ 33/647) que o Juiz pode reduzir a multa imposta pelo Fisco, desde que tal redução se atenha aos limites legais.

[37] Conforme se observa, por exemplo, nos RExt ns. 78.921 (RTJ 73/549) e 60.964 (RTJ 41/55), ambos relatados pelo Ministro Aliomar Baleeiro.

[38] Julgando medida cautelar requerida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.075-DF, relatada pelo Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal suspendeu liminarmente a execução e a aplicabilidade do artigo 3º, parágrafo único, da Lei nº 8.846/94 que prevê, na hipótese de o contribuinte não haver emitido a nota fiscal relativa a venda de mercadorias, prestação de serviços ou operações de alienação de bens móveis, multa de trezentos por cento sobre o valor do bem objeto da operação  ou do serviço prestado. O fundamento de tal decisão foi o caráter confiscatório da sanção tributária prevista legalmente (Informativo do STF, nº 115, jun, 98).