Represália Fiscal

As mazelas do sistema tributário brasileiro não se encontram apenas na irracional carga tributária e no draconiano regime de penalidades, mas também em algumas regras aparentemente simples mas que são de uma descomunal injustiça para o contribuinte brasileiro.

Refiro-me à possibilidade legal de renovação de lançamentos fiscais após terem sido originariamente cancelados administrativamente pelas próprias autoridades administrativas de julgamento, no bojo do controle de legalidade representado pelo processo administrativo fiscal, instaurado pela defesa do contribuinte.

Não raro assistimos a situações em que lançamentos fiscais são lavrados pelas autoridades fiscais e após impugnados administrativamente pelo contribuinte são cancelados ainda na esfera administrativa, pelos órgãos responsáveis pelo controle de legalidade dos atos de imposição tributária. A legislação brasileira autoriza que fatos já fiscalizados e autuados possam novamente sofrer a averiguação fiscal, e se for o caso, ser objeto de nova imposição tributária.

Vale dizer, o contribuinte é fiscalizado e autuado pelo Poder Público, despende recursos para contratar um profissional habilitado para promover a sua defesa e após o cancelamento da imposição fiscal ainda pode sofrer nova investida fiscal sobre os mesmos fatos já investigados e fiscalizados pelas autoridades fiscais.

A prevalecer esta iníqüa possibilidade legal, deve-se seriamente pensar em responsabilizar o Estado, ou o agente administrativo conjuntamente, nos casos de flagrante ilegalidade, pelos prejuízos que o contribuinte tiver sofrido com a lavratura de lançamentos fiscais eivados de manifesta ilegitimidade. Não é razoável e nem justo que o contribuinte sofra imposição fiscal ilegal, gaste recursos para promover a sua defesa e, reconhecida a ilegalidade, receba nova represália fiscal, às vezes da mesma autoridade que lavrou o lançamento primitivo sobre os mesmos fatos já fiscalizados e autuados.

A responsabilidade dos agentes públicos constitui o conceito fundamental em que se apóia o regime republicano e é sempre bom lembrar que o Brasil constitui uma República, por expressa declaração constitucional (art. 1º, CF). Assim, diante de situações de manifesta ilegalidade, a ordem jurídica reconhece ao indivíduo o direito de acionar judicialmente o Estado e/ou os seus agentes públicos, quando for o caso, para ver ressarcidos os prejuízos derivados de uma atuação estatal fora dos quadrantes da legalidade.

A possibilidade legal de renovação da fiscalização, a fortiori pelo mesmo agente fiscal, na prática representa, em alguns caos, manifesta vingança de autoridades fiscais contra o contribuinte, contrariadas pelo cancelamento de seu ato de imposição pelos órgãos incumbidos do controle de legalidade internos à própria Administração Tributária.

O contribuinte que simplesmente exercita o direito constitucional de se defender administrativamente de lançamentos ilegais e consegue demonstrar tal ilegalidade, além de ter que arcar com o ônus patrimonial de tal defesa, ainda sofre a vendeta da autoridade fiscal que viu todo o seu trabalho ser cancelado por manifesta ilegalidade.

Diante de tal situação, deve-se lutar pela imediata revogação da possibilidade de renovação de fiscalização, cujo produto já tenha sido revisado pelos órgãos administrativos de julgamento, responsáveis pelo controle de legalidade dos lançamentos fiscais. Lavrado e cancelado o lançamento em função de defesa administrativa protocolada pelo contribuinte não poderia mais o Poder Público pretender fiscalizar os mesmos fatos.

A manutenção da regra que possibilita a renovação da fiscalização deveria ser acompanhada de dispositivos que estabelecessem a punição administrativa ao servidor público que agiu fora da legalidade – exigência natural do princípio republicano da responsabilidade –  bem como a  impossibilidade definitiva de este mesmo servidor público conduzir outros procedimentos de fiscalização contra o contribuinte que se insurgiu contra o seu ato e viu reconhecida ainda administrativamente a ilegalidade da sua atuação.

Não é possível que um Estado Democrático, pautado por princípios republicanos, ainda tenhamos regras que possibilitem a represália fiscal contra contribuintes que simplesmente exercem o seu direito de defesa. A permanecer esta possibilidade, é hora de os prejudicados pleitearem junto ao Poder Judiciário a responsabilidade patrimonial do Estado e/ou dos seus agentes pelos prejuízos decorrentes de autuações manifestamente ilegais.