O bem e o mal

Ninguém duvida da assertiva segundo a qual o Estado – síntese da representação dos interesses gerais – deve produzir leis que tragam o bem para a população. Só que no Brasil curiosamente o Poder Público editou recentemente uma Medida Provisória (espécie de lei temporária) e a batizou de MP do Bem, porquanto concederia uma séria de desonerações tributárias a certos setores de contribuintes.

A primeira perplexidade gerada por tal MP foi permitir a conclusão de que se esta é, de fato, uma lei do bem, por razões lógicas, todas as outras já editadas seriam leis do mal. Se considerarmos que, via de regra, as leis tributárias no Brasil, assim como as Emendas Constitucionais, de há muito somente restringem direitos individuais, aumentam carga tributária e oprimem a sociedade, de fato, o Governo tem razão: pelo menos em tese, aquela MP poderia ser considerada do bem.

Triste constatação: o Estado, concebido pelos homens para fazer leis do bem, deve ser saudado no momento em que produz ao menos uma com esta qualidade.

Ocorre que o tempo do bem (ou da bonança) foi curto, pois na última semana a MP do Bem perdeu a eficácia, desaparecendo da ordem jurídica. Explico: segundo a Constituição Federal, as medidas provisórias têm força de lei desde a sua publicação, mas devem ser convertidas em lei no prazo máximo de cento e vinte dias. Não houve consenso entre Congresso Nacional e Governo e a MP do Bem não foi aprovada no prazo constitucional. A não-aprovação da Medida Provisória leva ao desaparecimento jurídico de todo o bem por ela veiculado, cabendo ao Congresso Nacional regular as relações jurídicas instauradas com base em suas disposições.

Apesar da sua rejeição pelo Congresso Nacional a MP do Bem revelou alguns detalhes da forma como o Governo Federal trata o tema da tributação.

Primeiro, a justificativa da MP do Bem foi a desoneração da carga tributária, sensivelmente majorada com as últimas medidas governamentais, que incluíram a criação de um novo e relevante tributo: ICMS Federal (pouco percebido pela sociedade brasileira) com a alíquota de 9,76% sobre o faturamento das empresas e sobre as importações realizadas do exterior. Como ficaria feio admitir que o Brasil tem dois ICMS, manteve-se o nome de PIS/COFINS, acrescentando-se a designação “não-cumulativo”.

Com isso, atendeu-se ao pleito do ingênuo empresariado nacional, que ainda não aprendeu que tributação é tema muito sério para ser objeto de bravatas, como a tão alardeada de que “o problema do Brasil é a cumulatividade dos tributos”. O  Governo de uma tacada só resolveu o seu problema de arrecadação, atendeu ao empresariado, criando um tributo em tese não-cumulativo, mas que na prática é extremamente cumulativo e ainda de quebra fixou a alíquota em 9,76% do faturamento das empresas. Resultado: estrondoso aumento de arrecadação de PIS/COFINS.

Mas a tal desoneração da MP do Bem, ao contrário das medidas de  majoração, não são para todos, mas apenas para alguns setores localizados da sociedade (seriam aqueles com maior poder de pressão sobre o Governo Federal?). Desoneração para pessoa física de menor poder aquisitivo, através da correção da tabela do imposto de renda da pessoa física, ampliação da faixa de isenção ou permissão para dedução de despesas com saúde e educação? Nem pensar, respondem os entendidos, tais “benefícios tributários” quebrariam o equilíbrio fiscal.

Lição do episódio: o aumento de tributos é sempre para todos. A desoneração apenas para alguns. De preferência, poucos. Nunca, para as pessoas físicas mais pobres.

E porque caiu a MP do Bem? Lição número dois: porque o Congresso Nacional resolveu melhorar um pouco a vida de aposentados e pequenos empresários.

O Governo pretendia alterar de sessenta dias para 2007 o prazo para pagamento de dívidas judiciais até o valor de 18 mil reais, quase todas referentes a vitórias dos aposentados contra a Previdência Social. O Congresso não aceitou e a MP caiu. Por outro lado, o Congresso incluiu dispositivo que ampliava o regime tributário do Simples (colocava mais gente pagando segundo este regime tributário), “benefício fiscal” que os líderes governistas consideram incompatível com o equilíbrio fiscal. Na falta de acordo, faleceu o MP do bem.

Resta a pergunta: quem ganhou com a queda da MP do Bem? As grandes empresas que continuam com a possibilidade legal de fazer um planejamento tributário que permite a reavaliação de ativos para posterior venda sem pagamento de imposto de renda sobre os ganhos auferidos no negócio, possibilidade legal que era revogada pela MP do Bem.

Este triste episódio da vida nacional revela o que venho dizendo já há algum tempo: os governos não se preocupam em sequer elaborar uma política tributária, limitando-se a adotar medidas rotineiras e gerais de aumento de arrecadação e episódicas e localizadas de desoneração. É triste, mas é a realidade.