Estatuto da Liberdade

No momento em que o Poder Público atropela seguidamente direitos e garantias individuais em matéria tributária, é importante refletir sobre o significado da Constituição Federal como limite ao exercício do poder.

No Direito brasileiro, a Constituição Federal constitui um sistema de limites ao poder tributário. O Sistema Tributário Nacional contempla princípios e regras de competência cujo núcleo e objetivo primordial consistem em delimitar o mais objetivamente possível a atividade impositiva estatal.

O caráter analítico do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro constitui uma peculiaridade do Direito positivo brasileiro que deve ser considerada em qualquer atividade interpretativa que tenha por objeto situações por ele disciplinadas.

Diante desta indiscutível constatação, a interpretação do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro deve ter como ponto de partida o fato de que os princípios e regras ali constantes representam limitações objetivas ao exercício do poder impositivo estatal, o qual nasce e tem a sua dimensão e alcance nos estreitos limites do que lhe reconhece a disciplina constitucional. A “Constituição tributária” constitui uma “Carta de Liberdades”, um autêntico “Estatuto do Contribuinte”, um instrumento de “Cidadania Fiscal”.

Estas afirmações mais do que meras figuras de retórica, têm uma conseqüência jurídica prática: reconhecer que não pode haver no contexto constitucional competência tributária sem limites objetivos, isto é, área onde o Poder Público seja absoluto para decidir acerca da forma, do modo e da intensidade de imposição tributária. O núcleo do Direito Constitucional Tributário está nas limitações impostas ao poder impositivo estatal. Em outras palavras, se a Constituição Federal, em matéria tributária, configura um sistema de limites, não pode haver competência tributária aberta.

Outra conseqüência objetiva de considerar a Constituição Federal como um sistema de limites é a de tomar o sujeito passivo tributário como ponto central da intelecção das normas constitucionais, o núcleo em torno do qual deve se buscar o sentido normativo das previsões constitucionais em matéria tributária. Vale dizer, o ponto de partida, a razão última, a “ratio juris” das dicções constitucionais tributárias é a proteção do interesse individual perante o interesse estatal (na sua acepção impositiva).

Os limites constitucionais ao poder impositivo podem estar expressos em texto normativo ou podem constituir normas jurídicas implícitas decorrentes do conjunto articulado dos dispositivos constitucionais. Vale dizer, nem sempre os limites à competência tributária (ou melhor, a delimitação objetiva desta) decorrem expressamente do texto constitucional. É possível, e até necessário, o reconhecimento de que existem normas limitadoras da atividade impositiva que são extraídos do conjunto, do articulado constitucional, enfim, das razões e princípios fundantes do Estado Democrático de Direito.

Exemplo mais contundente de limite objetivo da atividade impositiva que não se encontra expressamente em nenhum dispositivo do texto constitucional brasileiro é a proteção ao mínimo existencial. O Estado não pode utilizar o seu poder impositivo a ponto de invadir e retirar do homem (como sujeito de direito) as condições materiais que lhe assegure padrões mínimos de existência digna.

O poder tributário é constituído no espaço aberto pela autolimitação da liberdade, é o preço da liberdade e não pode ser utilizado legitimamente a ponto de negar as condições mínimas de  existência humana. Esta é uma conquista da humanidade, que nem o positivista formalista e nem o fiscalista mais apaixonado pode negar

Por outro lado, o direito positivo constitucional assegura também inúmeros limites formais à atividade impositiva; a própria definição constitucional de competência tributária é construída segundo parâmetros formais. Limite formal por excelência é a legalidade, entendida como exigência inafastável de que o dever tributário decorra de expressa previsão em texto votado, aprovado e promulgado pelos representantes legais do povo e segundo os procedimentos previamente previstos pelo próprio direito positivo.

Interessante observar que a legalidade, embora constitua uma limitação ao poder tributário, pode se transformar em instrumento de opressão quando for utilizada pelos detentores do poder como ameaça à liberdade individual. Ricardo Lobo Torres afirma que “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo. Quem não percebe a bipolaridade da liberdade acaba por recusar legitimidade ao próprio tributo.”

Se a Constituição Tributária representa um sistema de limites, expressos e implícitos, referidos ao sujeito passivo tributário, a definição e o desenho das competências constitucionais deve ser feita a partir deste limites e não a partir do vetor impositivo. Em outras palavras, a eficácia protetiva do interesse individual, expressa no conjunto de limitações constitucionais, deve representar o ponto de partida da validade de qualquer incidência tributária.

Diante do exposto, conclui-se que é dever do intérprete do Direito brasileiro interpretar as limitações constitucionais ao poder de tributar de modo a conferir-lhes a máxima efetividade, o que, em outros termos, significa conceber a Constituição como um “Estatuto da Liberdade” e não como um instrumento do poder político. A razão da existência e da legitimidade da Constituição repousa na sua condição de garantia da liberdade individual e as limitações constitucionais ao poder de tributar são veículos que operam esta garantia.