Os convênios em matéria de ICMS na atual ordem constitucional

“Os convênios em matéria de ICMS na atual ordem constitucional”, in “GRANDES TEMAS TRIBUTÁRIOS DA ATUALIDADE – 10º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário”, São Paulo, IOB, 2001, p. 89-99, obra coletiva.

 

1.Introdução.

O Direito é um plano da realidade social, um modo, uma perspectiva sob a qual a mesma pode ser analisada, razão pela qual as normas jurídicas, os conceitos e institutos jurídicos estão em permanente e inexorável processo de renovação e atualização.

É a partir desta pré-compreensão que pretendo analisar o tema dos convênios estaduais em matéria de ICMS sob a atual ordem constitucional. Tal tema está longe de representar qualquer novidade para os operadores do Direito Tributário, já tendo sido, no passado, objeto de vários textos de renomados tributaristas, mas que, no meu entender, merece uma nova reflexão, nem que seja para referendar as conclusões já assentadas sobre a matéria.

Admitindo que a realidade do Direito Tributário de hoje não é a mesma de ontem, sobretudo em função da inflação normativa que grassa no país, permito-me fazer uma breve reflexão sobre o tema proposto.

2. Histórico

A Constituição pretérita em seu artigo 23, § 6º estabelecia que “as isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos fixados em convênios, celebrados e ratificados pelos Estados, segundo o disposto em lei complementar”.

Prima facie, cumpre registrar que o campo normativo para a faculdade dos Estados e do Distrito Federal de celebrarem convênios em matéria de ICMS estava restrita constitucionalmente à concessão de isenções deste imposto. Logo, matérias estranhas à concessão de isenções não poderiam ser objeto de convênios. Cabia à Lei Complementar, como deixa claro o citado dispositivo constitucional, apenas regular os procedimentos para a celebração e ratificação dos referidos convênios.

Com supedâneo em tal dispositivo constitucional foi editada a Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, dispondo sobe os procedimentos para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, o antigo ICM.

A disciplina do ICM por convênios, restrita constitucionalmente à concessão de isenções, foi ampliada pela citada Lei Complementar para alcançar também (art. 1º, parág. único) a redução de base de cálculo (inc. I), a devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo (inc. II), a concessão de créditos presumidos (inc. III), quaisquer outros incentivos do imposto que representassem redução ou eliminação direta ou indireta do respectivo ônus (inc. IV), e as prorrogações e extensões das isenções então vigentes (inc. V).

Desde logo, que se observa que a lei Complementar formulando uma interpretação extensiva, funcional e teleológica do termo “isenção”, previsto no art. 23, § 6º da Constituição então vigente, ampliou o campo de atuação normativa dos Estados mediante Convênios.

Entre outros disposições, a referida Lei Complementar estabeleceu que os Convênios seriam celebrados por representantes dos Estados e do Distrito Federal em reunião presidida por representante do Governo Federal, e em seguida ratificados expressa ou tacitamente, pelo Poder Executivo do Estado e do Distrito Federal.

Em outras palavras, a Lei Complementar 24/75, ao estabelecer que o Poder Executivo seria a autoridade competente para celebrar os Convênios e em seguida ratificá-los através de Decretos Estaduais, sem oitiva das Assembléias legislativas, retirou da “lei estadual” a primazia de veículo formal adequado para dispor sobre incidências e não-incidência em matéria de ICM, causando, assim uma fenda no princípio da legalidade, de resto uma limitação constitucional ao poder de tributar então constitucionalmente vigente (art. 19, I).

Esse menosprezo ao princípio da legalidade tributária não passou despercebido pelos doutrinadores da época.

Ricardo Lobo Torres então afirmou que “os convênios interestaduais devem se aperfeiçoar segundo os mesmos mecanismos criados para os tratados internacionais: assinados pelos Executivos estaduais, seriam submetidos à ratificação das Assembléias Legislativas. As reuniões de Governadores ou de Secretários de fazenda promovidas para a celebração dos convênios não poderiam se transformar em assembléias legiferantes.”[1]

O procedimento de celebração e ratificação dos Convênios pelo próprio Poder Executivo, para Geraldo Ataliba era “inconstitucional e ridículo, porque propõe que o secretário da Fazenda (auxiliar do governador) celebre o convênio e o Governador o ratifique. Ora, se o secretário é órgão do Executivo e age em nome do Governador, não tem cabimento tal ratificação.”[2]

Antes mesmo da edição da Lei Complementar nº 24/75, José Souto Mario Borges afirmava que “a ratificação é o ponto terminal do processo legislativo. O convênio é materialmente ato normativo. Por isso mesmo, a sua ratificação compete às Assembléias Legislativas Estaduais e não ao Governador do Estado. Após ratificadas, as normas isentantes que integram os convênios valem internamente, para cada Estado participante, como lei estadual ordinária estadual concessiva ou revogatória de isenções do ICM.”[3]

Apesar da firme posição doutrinária no sentido da flagrante inconstitucionalidade da ratificação dos Convênios pelo Chefe do Poder Executivo, a jurisprudência nunca chegou a reconhecer tal invalidade constitucional. Em precedente onde se julgava matéria anterior à Lei Complementar nº 24/75,[4] o Supremo Tribunal Federal, ratificando decisão de Tribunal de Justiça Estadual, exigiu que o Convênio assinado pelo Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul fosse ratificado pela Assembléia Legislativa Estadual, pois assim exigia a Constituição daquele Estado. Ora, como lembra Ricardo Lobo Torres, “se a CF autorizasse a homologação pelos próprios Executivos, a Constituição gaúcha não poderia dizer o contrário, sob pena de manietar os instrumentos do federalismo fiscal.[5]

A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra precedentes[6], analisados sob a égide da ordem constitucional pretérita, onde reconhece como válidas revogações de isenções de ICM através de Convênios.

Os precedentes jurisprudenciais limitam-se a aplicar o disposto na Lei Complementar 25/75, à luz do artigo 23, § 6º da Constituição pretérita, sem um debate aprofundado acerca da natureza jurídica dos convênios, e o alcance que o princípio da legalidade tributária teria no âmbito da disciplina do ICM, tributo que também sempre esteve submetido à normatividade deste princípio, autêntica limitação constitucional ao poder de tributar.

Talvez a posição um “tanto dúbia” (para usar a expressão de Ricardo Lobo Torres) do Supremo Tribunal Federal em torno da matéria, deva-se ao fato de que o objeto dos processos submetidos à apreciação da Corte nos precedentes acima citados limitava-se à discussão acerca da validade de Convênios que revogavam isenções de ICM e não tangenciava a inconstitucionalidade tout court da Lei Complementar nº 24/75, quando esta despreza a participação do Poder Legislativo Estadual na ratificação dos Convênios firmados pelo Poder Executivo.

Por outro lado, como as isenções consubstanciam favores fiscais não era de se esperar que os sujeitos passivos obrigados ao recolhimento do ICM procurassem o Poder Judiciário para verem declarados a inconstitucionalidade do veículo normativo que lhes concedia tais favores. A inconstitucionalidade – se havia – sempre vinha em benefício do sujeito passivo, salvo, como registram os precedentes, quando os Convênios revogavam as isenções. O prejuízo existente era sofrido pelos legisladores estaduais, tolhidos em suas atribuições institucionais de deliberar acerca da tributação estadual.[7]

3. Atual disciplina constitucional.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu (art. 150, § 6º), como limitação constitucional ao poder de tributar da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que “qualquer anistia ou remissão que envolva matéria previdenciária ou previdenciária só poderá ser concedida através de lei específica, federal, estadual ou municipal.”

Tal limitação constitucional ao poder de tributar foi alterada – e ampliada – pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, ficando redigida: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.”

A limitação constitucional ao poder de tributar constante do art. 150, § 6º foi substancialmente alterada, tendo em vista a circunstância de que: i) ampliou o conceito de exoneração tributária nele regulado, para alcançar, além de anistia ou remissão, também qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo e concessão de crédito presumido; ii) deixou claro que a exoneração tributária ali regulada abrangia impostos, taxas e contribuições, afastando eventual dúvida acerca do significado normativo do termo  “matéria tributária ou previdenciária”, previsto do Texto Constitucional alterado; iv) também didaticamente, definiu o sentido normativo do termo “lei específica”, como aquela que regula exclusivamente qualquer das formas de exoneração tributária ou discipline o tributo ou contribuição objeto do benefício fiscal; e finalmente, na sua parte final, ao prever a expressão “sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g deixou evidente que a referida limitação constitucional também se aplica ao ICMS, como se verá melhor adiante.

4. Hermenêutica inercial.[8]

O ICMS, surgido com a Constituição Federal de 1988, é sistematicamente entendido pela doutrina e jurisprudência como um sucessor do antigo ICM, razão pela qual as normas, institutos e conceitos relativos ao novo tributo em grande parte ainda são heranças daqueles construídos ao tempo do antigo ICM. Esta hermenêutica inercial muitas vezes desconsidera alterações ocorridas no direito positivo ou na própria realidade.

Com base nesta hermenêutica inercial, e considerando que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a recepção da Lei Complementar 24/75, mesmo após a entrada em vigor do novo Sistema Tributário Nacional, os Estados e Distrito Federal continuaram concedendo favores fiscais no âmbito do ICMS através de Convênios (tal qual faziam com o antigo ICM).

Sem pretender apelar a uma interpretação topográfica da Constituição Federal, inegável é registrar que o artigo 150, § 6º foi alçado pelo constituinte à condição de limitação constitucional ao poder de tributar. As limitações constitucionais, como lembra Marco Aurélio Greco,[9] por constituírem restrições ao exercício do poder de tributar, são imediatamente executáveis.

Ora, a Constituição de 1988, além de garantir o princípio da legalidade tributária (art. 150, I) cujo conteúdo alcança tanto a exigência como a dispensa de tributo, passou a contemplar como limitação constitucional ao poder de tributar, a necessidade de que as exonerações fiscais, antes e depois da Emenda Cosntitucional nº 3/93, fossem objeto de lei específica.

Desde logo, se observa duas diferenças em relação ao regime constitucional anterior.

Primeiro, a necessidade de lei como requisito constitucional indispensável à exigência e dispensa de tributos, de resto garantia já assegurada por força do princípio da legalidade tributária (art. 150, I), é reforçada por norma especial no que tange às exonerações tributárias. Vale dizer, não satisfeito com o princípio da legalidade tributária, o constituinte ainda o reafirmou no art. 150, § 6º especificamente no que tange à dispensa de tributos, regra inexistente na ordem constitucional pretérita.

Segundo, ainda no que tange à dispensa de tributos através de remissões a anistias, além de regular a forma do veículo normativo (necessidade de lei formal), o constituinte de 1988 ainda regulou a sua substância, ao exigir que tal lei seja específica, isto é, regule exclusivamente a exoneração tributária. Tal limitação também constitui uma novidade da atual ordem constitucional.

Logo, a atual ordem constitucional contemplou, desde a sua entrada em vigor, substancial alteração na disciplina da concessão de anistia e remissões fiscais, suficientes para uma reflexão acerca da validade da hermenêutica existente ao tempo da Constituição pretérita.

5. As exonerações de ICMS (art. 155, § 2º, XII, g).

Especificamente no que tange ao ICMS, a atual Constituição Federal (art. 155, § 2º, XII, g) reservou à lei complementar a tarefa de regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.”

A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconheceu que a reserva normativa prevista no artigo 155, § 2º, XII, g da Constituição Federal foi preenchida pela recepção da Lei Complementar nº 24/75. Logo, a forma a ser adotada pelos Estados e Distrito Federal para a concessão e revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais deveria permanecer aquela prevista na referida Lei Complementar.

Salvo a faculdade extraordinária e provisória prevista no artigo 34, § 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, a Constituição Federal somente autoriza a disciplina do ICMS por convênios interestaduais na hipótese em que estes constituem veículos para a concessão e revogação de isenções, incentivos fiscais. Salvo estas hipóteses, revela-se flagrantemente inconstitucional a disciplina do ICMS por convênios, como acontece nos dias de hoje, onde os Estados utilizam-se deste veículo normativo para  regular praticamente todos os temas de ICMS (de concessão de créditos, até interpretação da lei tributária, com suposto efeito vinculante para o sujeito passivo).

O artigo 100, IV do Código Tributário Nacional, quando admite a celebração de convênios entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, alçando-os à condição de normas complementares há de ser interpretado em consonância com a Constituição Federal. Ora, se o mandamento constitucional regulou a faculdade dos Estados de celebrarem convênios em matéria de ICMS, limitando-os à concessão de exonerações fiscais, não há sentido admitir que os Estados possam regular matérias estranhas a essa, com pretenso apoio em norma infraconstitucional, cujo alcance restou reduzido pela disciplina constitucional superveniente.

A Constituição Federal (art. 155, § 2º, XII, g), assim como o ordenamento constitucional anterior, remete à Lei Complementar a disciplina da forma como as isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS serão deliberados pelos Estados e Distrito Federal. Em nenhum momento, a Constituição autoriza os Estados a concederem isenções, incentivos e benefícios fiscais de ICMS diretamente através de convênios, sem necessidade de lei.

Vale dizer, não há qualquer dispositivo constitucional ressalvando as exonerações de ICMS do princípio da legalidade tributária prevista no art. 150, I do Texto Constitucional.

Pelo contrário, o legislador constituinte, cujo estilo excessivamente analítico por vezes é criticado, não satisfeito de garantir o princípio da legalidade tributária, ainda contemplou como limitação constitucional ao poder de tributar (art. 150, § 6º), a necessidade de que anistia e remissões tributárias e previdenciárias somente pudessem ser outorgadas por “lei”; não qualquer lei, mas “lei específica”.

Como a redação originária do Texto Constitucional ainda dava alguma margem de dúvida, a Constituição Federal foi alterada pela EC nº 3/93 para que, entre outras comandos, através de expressão remissão ao art. 155, § 2º, XII, g, ficasse registrado o desígnio constitucional que as exonerações de ICMS (reguladas pelo dispositivo objeto da remissão) também deveriam se submeter àquela limitação constitucional.

Logo, pode-se perguntar: como conjugar a nova redação do artigo 150, § 6º, trazida pela EC 3/93, com o disposto no art. 155, § 2º, XX, g. Teria a remissão constante da parte final do novo artigo 150, § 6º trazido alguma novidade na disciplina constitucional da concessão de favores fiscais de ICMS pelos Estados e Distrito Federal?

6. Art. 150, § 6º da CF : “sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g”.

Inicialmente, pode-se argumentar que o artigo 155, § 2º, XII, g ao prever que as isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS seriam deliberados nos termos da Lei Complementar 24/75 (haja vista a recepção desta Lei Complementar), teria o condão de excepcionar aquele tributo do âmbito de eficácia da limitação constitucional ao poder de tributar veiculada pelo art. 150, § 6º da Constituição Federal. Esta, de fato, não é uma interpretação desprezível, e que talvez até justifique a hermenêutica inercial que reinou no entendimento da questão. Todavia, a mesma não guarda sintonia constitucional, por várias razões.

Primeiro. A Constituição não autoriza a concessão de isenções, incentivos e benefício fiscais de ICMS através de convênios, exclusivamente. Se assim o fizesse, estaria, pragmaticamente, excepcionando tal matéria do âmbito do princípio da legalidade tributárias (art. 150, I) e expressamente contemplando dispositivos constitucionais contraditórios, na medida em que a limitação constitucional constante do art. 150, § 6º (que inclusive se remete ao art. 155, § 2º, XII, g, supedâneo constitucional doa convênios em matéria de exoneração de ICMS) expressamente exige lei (e mais: “lei específica”) para a concessão de quaisquer exonerações fiscais.

No atual quadro constitucional, admitir que os Convênios pudessem, por si só, concederem isenções, incentivos e benefícios fiscais, seria romper com o postulado de coerência das disposições constitucionais, haja vista a exigência de “lei específica” para a concessão das referidas exonerações fiscais previstas no art. 150, § 6º do Texto Constitucional.

TÉRCIO

Segundo. Ao exigir convênios interestaduais para a concessão de exonerações fiscais em matéria de ICMS (art. 155, § 2º, XII, g), a Constituição Federal apenas reconhece a necessidade de uniformização da disciplina do ICMS, como decorrência inelutável da regulação de um tributo circulatório de competência estadual no bojo de um Estado Federal. É evidente que as exonerações em tema de ICMS, sobretudo em face da natureza não-cumulativa deste tributo, exigem um pacto prévio entre os Estados.

Todavia o pacto prévio entre os Estados, longe está de representar menosprezo pela lei, como veículo normativo dotado, por excelência, do atributo de inovar a ordem jurídica.

As exonerações fiscais de ICMS na atual ordem constitucional revelam, sob o ponto de vista da teoria do Direito, um “ato complexo”, isto é, o ato jurídico que para se completar, para gerar efeitos, requer a conjugação de duas vontades concorrentes e sucessivas, emanadas de pessoas diferentes. Vale dizer, a lei exonerativa de ICMS exige a emanação de duas vontades institucionalizadas: do Poder Executivo ao celebrar o convênio com os demais Estados, e do Poder Legislativo ao ratificar tal convênio.[10]

Nem  o convênio sozinho pode conceder ou revogar exonerações fiscais em tema de ICMS, nem pode fazê-lo isoladamente a lei estadual. A Constituição Federal exige a prática de um ato complexo que conjugue as duas vontades (do Poder Executivo através do Convênio), e do Poder Legislativo (através da ratificação do Convênio).

Justamente por assumir a natureza jurídica de um ato complexo, cabe ao Poder Legislativo estadual ratificar ou não o convênio exonerativo, sem possibilidade de alterar os seus termos, de modo a evitar que o texto aprovado pelo Poder Legislativo provoque os  problemas com os demais Estados que o legislador constituinte pretendeu evitar com a exigência do pacto prévio através dos convênios. Caso a Assembléia Legislativa Estadual não aprove o convênio celebrado pelo Poder Executivo, deve este comunicar tal fato aos demais Estados, para que estes possam deliberar acerca do tema. A não-aprovação, no âmbito estadual interno, gera a inaplicabilidade da exoneração, podendo os demais Estados mantê-los no âmbito de seus respectivos territórios, desde que tal fato na cause distorções no regime federativo, fundamento último em que se apóia a técnica de deliberação através de convênios interestaduais.

Terceiro. Admitir que o Poder Executivo possa através dos convênios conceder, sem oitiva do Poder Legislativo, exonerações de ICMS seria transferir ao Poder Executivo o poder de inovar a ordem jurídica (reservada constitucionalmente à lei).

Ora, nem o Poder Legislativo pode renunciar à tarefa de inovar a ordem jurídica através do exercício da função legislativa, exceto nas hipóteses de delegação legislativa (em situações excepcionais e que, de resto, revelam uma manifestação da função legislativa).

O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de julgar caso paradigmático onde lei estadual autorizava o Poder Executivo a, mediante decreto específico, conceder benefícios ou incentivos fiscais relativos aos “tributos estaduais”, a determinada categoria econômica de contribuintes, sendo que tais benefícios poderiam inclusive consubstanciar concessão de isenção, de crédito presumido e prorrogação de prazo de recolhimento dos “tributos estaduais”, pelo período considerado necessário. A autorização legislativa abrangia, portanto, todos os tributos estaduais consubstanciando por parte da Assembléia Legislativa autêntica renúncia ao poder de legislar em matéria tributária.

A ementa do julgado daquela Corte, da lavra do Ministro Celso de Mello, apesar de extensa resume, a não mais poder, o valor normativo da “lei” no sistema constitucional tributário, e por tal razão merecer ser lembrada:

Ora, se nem o Poder Legislativo pode delegar ao Poder Executivo a tarefa de deliberar acerca de exonerações fiscais, por força sobretudo da limitação constitucional do artigo 150, § 6º da Constituição Federal, como se pode interpretar a contrario sensu este dispositivo para retirar o ICMS do âmbito de sua eficácia. Se o ICMS estivesse fora do alcance desta limitação constitucional, teria o Supremo Tribunal Federal, no julgamento supra citado, através da técnica da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, ressalvado que a autorização legislativa seria legítima no que tange ao ICMS, já que o Constituição federal autorizaria o Poder Executivo a mediante convênios deliberar isoladamente acerca de renúncias fiscais no que tange a este imposto.

Todavia, assim não procedeu o Supremo Tribunal Federal. Preferiu aquela Corte reafirmar o princípio da legalidade tributária, reforçando o alcance normativo da limitação constitucional constante do artigo 150, § 6º da Carta. Interpretação que implique retirar o ICMS do alcance desta limitação constitucional caminha em sentido inverso à literalidade do texto constitucional e diretriz traçada pelo Supremo Tribunal Federal.

Quarto. Precedente ELIANA CALMON

7. Conclusão.

A remissão final constante do art. 150, § 6º da Constituição Federal (“sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g”) tornou explícita a necessidade de que as isenções, incentivos e benefícios fiscais deliberadas pelos Estados e Distrito Federal através de convênios sejam ratificados por “lei estadual específica”.

Os convênios interestaduais em matéria de ICMS são parte de um ato complexo, tendo em vista a circunstância de que para gerarem efeitos jurídicos necessitam da prática de um outro ato que lhe complete, qual seja, a manifestação do Poder Legislativo Estadual.

 

[1] Tratado de Direito Tributário Brasileiro – Sistemas Constitucionais Tributários. Tomo I, Forense, Rio de Janeiro, 1986, p. 509.

[2] Convênios interestaduais. Revista de Direito Público, vol. 67, p. 61.

[3] Lei Complementar Tributária, RT, São Paulo, 1975, p. 173.

[4] RE 83.310. Revista de Direito Administrativo, vol. 128, p. 78-80.

[5] Ob. cit., p. 510.

[6] RE 106965/SP, RE 106456/SP e 140249/RJ.

[7] Fábio Fanucchi afirmava que “o Legislativo brasileiro concordou, pacificamente, que se lhe retirasse uma das suas funções indelegáveis, garantida pela Constituição. Mas, fez ainda mais: admitindo que as reuniões de onde sairão os convênios sejam presididas por representantes do Governo Federal (art. 2º da Lei Complementar n. 24, de 1975) e estabelecendo na Lei Complementar regras de aprovação tácita dos convênios por Estado que não ratifique o convênio em certo prazo, quebrou a estrutura fundamental do federalismo, retirando dos Estados a autonomia de decisão em matéria que é (ou deveria ser) de sua exclusiva competência. Desde o instante em que a unidade da Federação não possa decidir com autonomia em matéria de suas finanças, fica certo que não gozará também de autonomia política, visto como esta depende estreitamente daquela.” (Convênios para isenção de ICM, Revista de Direito Tributário, vol. 1, p.44).

[8] Expressão utilizada por Marçal Justen Filho, a propósito de análise de outro tema (O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-Lei nº 406, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 3, p. 66).

[9] Nota iii ao Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário de Victor Uckmar, 2ª ed., Malheiros, 1999, p. 131.

[10] Ricardo Lobo Torres (ob. cit., p. 511) afirma que os convênios constituem “requisitos de eficácia do favor fiscal concedidos pela legislação estadual, mas não representam eles mesmos fonte autônoma do direito, a meio caminho entre o direito estadual e o federal. Representam instrumentos de cooperação interestadual, indispensáveis ao federalismo cooperativo, de grande similitude com os tratados internacionais, que desempenham o mesmo papel no Direito Internacional Cooperativo dos tempos modernos.”