Revisitando o tema da Obrigação Tributária

“Revisitando o tema da obrigação tributária”, in “DIREITO TRIBUTÁRIO – Homenagem a Alcides Jorge Costa”, Vol I, São Paulo, Quartier Latin, 2003, p. 96-116, obra coletiva coordenada por Luís Eduardo Schoueri.

 

1. Introdução

A História do Direito Tributário, como a parcela do ordenamento jurídico que contempla as normas que disciplinam o poder do Estado de exigir prestações pecuniárias dos cidadãos submetidos ao seu império, pode ser compreendida a partir da análise da evolução das idéias acerca da natureza do vínculo estabelecido pela norma jurídica tributária entre Estado e contribuinte (em sentido lato). A presente reflexão objetiva demonstrar ainda que em ligeiras linhas um pouco da evolução destas idéias e a sua influência em algumas normas do Direito Tributário Brasileiro.

2. Obrigação tributária e orçamento.

A idéia de tributo como prestação pecuniária compulsória regulada pelo direito e devida em favor do Estado decorre do processo de construção histórica do Estado Moderno. Com efeito, com a afirmação do Estado nacional – resultado do processo de centralização do poder até então distribuído durante o período feudal entre uma multiplicidade de agentes – emerge a idéia de soberania. O Estado Moderno operou, assim, a unificação do poder e atribuiu ao seu exercício as características da soberania: indivisibilidade, independência e superioridade.

No primeiro momento o poder centralizado coube ao Soberano o qual o exercia sob um fundamento de origem divina. No século XVIII com a explosão do Iluminismo ganhou força a idéia segundo a qual a divisão das funções estatais entre diversos agentes (ou corpos, ou poderes) seria a melhor forma de proteger as liberdades individuais, tarefa última da construção de um Estado unitário dotado de soberania. Da mesma forma, o crescimento do racionalismo levou à derrubada da crença no fundamento divino do poder real.

A perda da crença no fundamento divino do poder trouxe o debate acerca das origens do poder soberano estatal, no bojo do qual surgiu, até como decorrência natural do pensamento racionalista, o dogma da soberania popular,segundo o qual o poder estatal não se apóia em entidades divinas, em figuras carismáticas ou tradicionais como o Soberano, mas no povo e na nação.

Neste sentido, Fernando Sainz de Bujanda afirma que a construção do Estado nacional se fundamenta em dois pilares: a) o princípio da soberania popular, segundo o qual o supremo poder do Estado reside no povo e na nação e b) o princípio da separação de poderes que postula uma atribuição a órgãos distintos e independentes dentro do Estado, das atividades fundamentais em que este desenvolve a ação política.[1]

Importante lembrar que o processo de construção do Estado Moderno e da idéia de Direito como instrumento de regulação do convívio social foi marcado pelo ideal liberal segundo o qual o Direito e o Estado têm como missão precípua e inelutável a proteção das liberdades individuais. Neste sentido, o Estado não poderia jamais utilizar-se do Direito como instrumento de opressão.

O tributo constitui essencialmente uma retirada de patrimônio do indivíduo em favor do Estado.  Dentro do ideal liberal (sobretudo a partir das idéias de John Locke), uma das tarefas primordiais do Estado é assegurar o livre gozo do direito de propriedade, logo, indispensável que o poder tributário fosse contido sob pena de esvaziamento deste direito fundamental. Estavam assim assentadas as bases ideológicas para a consagração do princípio do consentimento popular como pré-requisito para o exercício do poder tributário por parte do Estado. A legitimidade do tributo não mais nasceria como expressão de um ato de vontade do titular do poder, mas como o produto de uma deliberação dos destinatários da norma tributária: o povo.

Para controlar os gastos estatais bem como autorizar o Estado a arrecadar receita tributária suficiente para fazer face àquelas despesas foi criado o instituto do orçamento, o qual é dotado de relevantes significados político e jurídico.[2]

O significação política deriva da supremacia política que a aprovação do orçamento revela. Historicamente a aprovação do orçamento sempre foi de competência das assembleias parlamentares, como expressão do princípio da soberania popular, do princípio do autoconsentimento da tributação e da separação de poderes. Reservar ao Parlamento o poder de aprovar o orçamento politicamente sempre significou a submissão do Poder Executivo à vontade dos representantes do povo em matéria da mais alta relevância, qual seja a definição acerca do montante de recursos de que este dispõe para buscar as finalidades estatais.

Episódio histórico relevante para retratar o significado político do orçamento foi o conflito constitucional entre a Coroa e o Parlamento da Prússia entre 1861-1866, motivado pela negativa deste em aprovar o orçamento apresentado pelo Poder Executivo, o qual previa um aumento de gastos com reformas militares e campanhas de guerra. O Rei Guilherme I recém empossado no trono da Prússia propôs ao Parlamento um projeto de lei contemplando aumento de gastos com reformas militares. Contudo, os liberais, maioria naquela Casa Parlamentar, manifestaram a sua insatisfação com o projeto e pretenderam introduzir modificações no mesmo porque consideravam-no excessivamente dispendioso. Insatisfeito com a reação dos parlamentares, o Rei retirou o projeto de lei do Parlamento e pôs em execução as reformas militares pretendidas sem a concordância dos parlamentares. Como reação à atitude real, os liberais negaram-se a aprovar no orçamento os gastos que o Rei pretendia ter com a área militar. O Rei então dissolveu o Parlamento e convocou novas eleições, nas quais os liberais aumentaram a sua superioridade parlamentar. Estava estabelecido o conflito institucional.

Em 1862, o Rei nomeia como Chefe de Governo Otto von Bismarck, o qual declara o seu compromisso de governar atendendo ao Rei ainda que contra a vontade do Parlamento. Bismarck dá início às guerras que levaram à unificação do Estado alemão, embora sem autorização do Parlamento para a realização de gastos militares e em meio a debates e dissoluções do Parlamento sempre diante da constante negativa deste de aprovar o orçamento contemplando gastos militares. A crise constitucional somente foi resolvida com a anexação da Áustria pela Prússia e o grande prestígio da Coroa em face de tal realização o que permitiu desarmar politicamente os liberais.[3]

O importante é que um debate aparentemente de natureza política assumiu uma relevante dimensão jurídica pois trouxe em seu bojo a discussão acerca da natureza da lei orçamentária. A obra de Paul Laband (Das Budgetrecht) escrita alguns anos mais tarde (1871) tentou justificar e buscar fundamentação constitucional à atitude real de governar alguns anos (1861-1866) sem aprovação do orçamento pelo Parlamento, arrecadando tributos e promovendo gastos sem autorização parlamentar. A teoria do orçamento construída por Laband assenta-se na distinção entre lei em sentido material e lei em sentido em sentido formal, o que permite divisar o orçamento como ato administrativo consubstanciador de uma previsão de gastos e autorização de receitas e a lei material que o aprova, efetiva norma jurídica. A teoria de Laband  influenciou decisivamente a doutrina que se ocupou no tema do orçamento na França (Gaston Jéze e Leon Duguit e A. Esmein) e na Itália (Orlando e Oreste Renelletti).

Portanto, fundamental a importância política do orçamento para o desenvolvimento e a organização do Estado Moderno.

Por outro lado, o orçamento é dotado ainda de inegável relevância jurídica. Neste sentido, registre-se todo o debate doutrinário acerca da natureza jurídica do orçamento e o significado da inclusão da autorização para o Estado gastar e arrecadar em uma lei de vigência temporária. No seu nascedouro o orçamento representava limitações jurídicas de três ordens: a) limitação objetiva, segundo a qual somente poderiam ser arrecadados os tributos aprovados pelas Cortes e Parlamentos; b) limitação temporal, a qual exigia que a arrecadação de tributos somente poderia ocorrer durante o período autorizado pelo orçamento, o qual coincidia com a vigência da lei orçamentária, normalmente de um exercício financeiro e uma c) limitação quantitativa segundo a qual a arrecadação não deveria superar o estritamente indispensável para a cobertura das necessidades financeiras estatais.[4] Logo, a lei orçamentária representava uma autêntica “lei de limites” à atuação financeira do Estado.

A partir dessas limitações o dever tributário passou a ser protegido pelo princípio da anualidade tributária, como conseqüência da vinculação do tributo ao orçamento, fato que permitiu cogitar-se de uma “legalidade tributária ânua”, isto é, de uma legalidade tributária limitada temporalmente pela anualidade orçamentária.

Ocorre que com o crescimento e a mudança do perfil das funções estatais houve uma desvinculação entre a lei orçamentária e o poder tributário. Com efeito, a necessidade de financiamento dos serviços públicos cada vez mais complexos, dispendiosos e numerosos não se demonstrou compatível com regras tributárias temporárias, cujo respectivo poder arrecadatório precisava ser anualmente confirmado ou reforçado através da lei orçamentária. Estava aberto o caminho para a consagração de uma legislação tributária permanente, desvinculada da temporalidade característica da lei orçamentária.

O novo perfil da obrigação tributária não mais se submeteria às limitações derivadas da sua ligação com orçamento. O Estado a partir deste momento pode arrecadar tanto quanto consiga dentro dos limites legais traçados pelas normas jurídicas que definem as diferentes incidências tributárias. O papel do Parlamento nesta nova fase não é mais o de fixar limites objetivos, quantitativos ou temporais à arrecadação tributária, mas tão somente de definir abstratamente as bases imponíveis sobre as quais recairão o poder tributário estatal.

3. Obrigação tributária e poder tributário (Finanzgewalt).

O Direito Tributário nasceu do Direito Administrativo. Nos primórdios da evolução da tributação (tal como modernamente se afigura) entendia-se que o dever tributário era o mero resultado de uma relação de poder entre Estado e indivíduo e, portanto, deveria seguir os princípios gerais que norteiam o exercício da atuação administrativa estatal quando relacionada com os indivíduos. O Estado seria titular da potestade tributária como decorrência natural da sua soberania (assim como seria natural titular do poder de polícia administrativa, por exemplo). A única limitação imposta ao Estado era a necessidade de que o dever tributário estivesse previsto em lei. Portanto, vigorava apenas uma limitação formal necessária para conferir legitimidade racional à imposição tributária.

Neste momento histórico, final do século XIX e primeiras décadas do século XX, o dever tributário era concebido fundamentalmente como uma expressão do poder estatal, uma relação entre o titular do poder e os indivíduos. Otto Mayer, um dos pais do Direito Administrativo Moderno, por exemplo, sustentava que “o dever geral de pagar tributos é uma fórmula destituída de valor jurídico”.

Com efeito, a obra de Otto Mayer constitui autêntica manifestação desta forma de conceber a relação jurídica tributária. Para este autor, “o poder tributário (Finanzgewalt) é a força pública dirigida às rendas do Estado” e “o imposto é um pagamento em dinheiro que o poder tributário impõe ao sujeito com base em uma regra permanente.” Por outro lado, reconhecia que “a imposição é um ataque à propriedade, por isso necessita de um fundamento legal” e “a lei do imposto deve conter o objeto da imposição, a alíquota do imposto e a forma de arrecadação”. A similitude entre poder tributário e poder de polícia resta clara no pensamento de Otto Mayer quando afirma que “o poder tributário constitui a noção superior que reúne toda uma série de instituições jurídicas que o colocam junto ao poder de polícia como uma instituição de natureza essencialmente análoga e com a qual tem grande afinidade.” [5]

As idéias de Otto Mayer eram próprias do momento histórico vivido pelas sociedades da Europa ocidental onde então vigoravam os princípios do chamado “Estado de Polícia” caracterizado pelo reforço da autoridade estatal na disciplina das condutas sociais dos indivíduos e no poder de fato titularizado pelo soberano. Vale registrar que o Estado de polícia não abdicou da legalidade. Pelo contrário, conferiu-lhe especial significado.

Conforme lembra Perez de Ayala, o Estado de Polícia conhecia leis de duas ordens: leis civis ou de justiça e leis de polícia. As primeiras eram estabelecidas pelo soberano, mas não eram por ele aplicadas;  uma vez editadas, tornavam-se invioláveis para o Poder Público e sua aplicação dependia apenas do juiz. As leis de polícia, por outro lado, eram ditadas e aplicadas pelo Príncipe, através de funcionários a ele vinculados e obrigados a obedecer às suas ordens. Logo, o Príncipe decidia e controlava a aplicação das leis de polícia; diferentemente das leis civis que uma vez publicadas eram obrigatórias inclusive para o Príncipe, as leis de polícia tinham sua aplicação submetidas ao arbítrio do Príncipe. Portanto, as leis civis ou de justiça eram obrigatórias para o governo, e as leis de polícia não. Somente as leis civis ou de justiça constituíam autêntico Direito. As leis de polícia não eram consideradas regras de direito e concretamente não continham autênticas normas jurídicas, embora fossem regularmente publicadas. A publicação das leis de polícia se dava somente por razões de pura utilidade prática, mas não constituía requisito para a sua vigência.[6]

A idéia de uma relação jurídica tributária onde preponderava a autoridade estatal vigorou sobretudo na Alemanha na segunda metade do século XIX haja vista o fato de que foi impulsionada pelo movimento de glorificação do Estado e de que serviu como instrumento para a unificação e consolidação do Estado Alemão, sob o comando de Bismarck.

4. Obrigação tributária e relação jurídica.

Aos poucos a doutrina evoluiu para identificar no vínculo obrigacional, instaurado pela lei, a raiz do dever tributário. A lei aos poucos passa a assumir o lugar antes ocupado pelo poder estatal de exigir tributos. Passa-se a cogitar de uma “relação jurídica de imposto” fundada da igualdade dos sujeitos ativo e passivo nela participantes. O dever tributário deixa de ser uma expressão do poder estatal para se afirmar como uma consequência da realização fenomênica de um fato previsto hipoteticamente na lei. A relação de poder transforma-se fundamentalmente em relação “ex lege”.

Para Ernst Blumenstein, a lei constituiria o fundamento e a causa da obrigação tributária, de modo que “o cidadão deve o imposto porque o mesmo está previsto em lei e na forma em que ele (o imposto) é por esta regulado”. Blumenstein chama a atenção para a importância da “relação jurídica de imposto” a qual se subdividiria em uma “relação de débito de imposto” cujo conteúdo alberga o dever de prestação patrimonial a ser cumprido pelo indivíduo em favor do Estado e uma “relação jurídica de accertamento” cujo conteúdo contemplaria os momentos e as situações jurídicas nascidas durante o procedimento para determinação do tributo devido. Interessante ressaltar que para Blumenstein a participação do indivíduo na relação jurídica de accertamento teria a natureza de autêntico direito de cooperação no procedimento de definição do tributo devido, o que lhe colocaria não só em uma situação de sujeição, mas também de titularidade de um direito oponível à Administração tributária. Embora atribua à relação jurídica tributária o caráter de obrigação de direito público, Blumenstein expressamente deixa claro que para ele as normas jurídicas de direito privado acerca do nascimento desta relação jurídica não teriam qualquer aplicação.[7]

Hans Nawiasky, em obra publicada em 1926, designa por obrigação tributária a relação jurídica decorrente da realização do pressuposto de fato legalmente previsto e que tem por objeto não apenas o dever de recolher certa quantia aos cofres públicos, mas também o conjunto de comportamentos relativos a obrigações de fazer ou de não fazer. Para Nawiasky, a obrigação tributária contempla o Estado, como sujeito ativo (credor) e o contribuinte, como sujeito passivo (devedor), em regime de igualdade diante da lei. A soberania estatal, na esfera tributária, extingue-se com a positivação da lei tributária a qual, uma vez promulgada, coloca Fisco e contribuinte em situação de igualdade, razão pela qual, segundo aquele autor, é equivocado caracterizar a obrigação tributária como uma relação de poder e não como uma relação jurídica creditícia.[8]

Nawiasky se opõe à doutrina então dominante na Alemanha, especialmente através da obra de Otto Mayer, segundo a qual a obrigação tributária revelava uma relação de poder, esvaziada de qualquer conteúdo jurídico. Segundo Nawiasky, Fisco e contribuinte estão em posição de igualdade formal diante da lei, isto é, inexiste uma supremacia natural do interesse financeiro estatal ante o interesse individual. A relação jurídico-tributária deve obedecer aos estritos limites do que resta previsto pela lei. Nawiasky entende por relação de poder a faculdade reconhecida a um sujeito de, a seu exclusivo arbítrio, determinar o que outro sujeito deve fazer ou deixar de fazer.

Nawiasky chama a atenção para a necessidade de se distinguir a relação de poder que existe entre os indivíduos de forma geral e o Estado, de uma suposta relação de supremacia do Estado, quando este comparece como sujeito ativo em uma relação jurídica tributária, e o indivíduo quando assume o papel de sujeito passivo desta relação. É evidente que a própria existência do Estado pressupõe uma relação de poder entre este e a generalidade das pessoas, o que não significa transplantar esta prerrogativa para a relação tributária concreta, na qual o poder estatal comparece como sujeito ativo dotado apenas do direito que o ordenamento jurídico (a lei) especialmente lhe reconhece. Nas palavras de Nawiasky, “igualdade ou equiparação significam igualdade ante o ordenamento jurídico e, portanto, negação a que um dos sujeitos tenha uma posição de proeminência frente ao outro.”[9]

Nawiasky vai além ao afirmar que a obrigação tributária não se esgota apenas na relação jurídica cujo conteúdo se limita ao pagamento de determinada quantia pelo contribuinte ao Estado, embora este seja o centro do dever obrigacional tributário. Segundo aquele autor, existem outras relações jurídicas que se sobrepõem ao dever de pagar formando “círculos concêntricos” cujos efeitos parciais possibilitam a realização deste dever. A partir deste pressuposto, Nawiasky relata a existência de obrigações financeiras (Finanzpflichten) ou obrigações auxiliares (Hilfspflichten) as quais recaiem não apenas sobre os sujeitos obrigados ao dever de recolher o tributo, mas alcançam também terceiros que de alguma forma possam tornar possível o procedimento impositivo e assegurar a sua integral realização.[10]

Importante considerar a contribuição doutrinária de Nawiasky para o estudo da obrigação tributária pois este autor a par de ressaltar a natureza jurídica da relação Administração tributária – contribuintes, realçou a inexistência de superioridade formal daquela perante estes e a necessidade de se contemplar no bojo da relação obrigacional tributária também o conjunto de outras relações jurídicas acessórias ao dever central de recolher o tributo aos cofres públicos, consubstanciadores do que Nawiasky denominou “obrigações financeiras ou auxiliares”, tema até objeto objeto de reflexões por parte da doutrina do Direito Tributário.

A doutrina legalista da obrigação tributária também foi corroborada por Albert Hensel, devendo-se ressaltar o relevo que este autor atribui à legalidade como necessidade inelutável de um ordenamento jurídico construído segundo os princípios basilares de um Estado de Direito. Para Hensel, “toda coletividade ordenada como Estado de Direito vem necessariamente integrada com o seguinte princípio jurídico fundamental: toda arrecadação de imposto somente pode ser efetuada com base em uma lei” e “toda norma jurídica tributária deve respeitar as limitações jurídicas fixadas na Constituição enquanto lei suprema.”[11]

Hensel destaca a substancial diferença existente entre a obrigação tributária, inspirada pelos princípios de direito público, e a obrigação de direito privado: “enquanto nas relações de direito privado o conteúdo e a medida da prestação em regra são determinados entre devedor e credor, através de um acordo bilateral de vontade, o conteúdo e a medida da prestação devida no bojo de uma relação tributária obrigatória (rapporto obbligatorio d’imposta) são definidos pela lei.” E conclui Hensel “a fattispecie legal substitui no direito tributário obrigatório (diritto obbligatorio d’imposta”) a vontade do direito privado.”[12] Restava, assim, definitivamente, estabelecida a linha divisória entre obrigação de direito privado e obrigação tributária “ex lege”, notadamente no que tange ao papel da lei e da vontade na construção do vínculo jurídico das respectivas relações jurídicas.

É inegável o papel que a doutrina legalista da obrigação tributária exerceu no Brasil, especialmente através das obras de Rubens Gomes de Sousa e Amílcar de Araújo Falcão, vindo a ser refletida na elaboração do Código Tributário Nacional cujo artigo 114 estabelece que “o fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.”

Amílcar de Araújo Falcão afirmou que “a obrigação tributária nasce, cria-se, instaura-se por força de lei; na lei estão todos os seus fatores germinais. O chamado fato gerador marca, apenas, o momento o pressuposto, a fattispecie normativa para que o vinculum juris legalmente previsto se instaure.”[13]

No mesmo diapasão, Rubens Gomes de Sousa definiu a obrigação tributária como “o poder jurídico por força do qual o Estado (sujeito ativo) pode exigir de um particular (sujeito passivo) uma prestação positiva ou negativa (objeto da obrigação) nas condições definidas pela lei tributária (causa da obrigação).”[14] Resta nítido no pensamento desse autor o enfoque estrutural que o tema da obrigação recebia, chegando inclusive a afirmar que a obrigação é um conceito geral, comum a todos os ramos do direito, seja do privado, seja do público.

Consagrada no Código Tributário Nacional o caráter eminentemente obrigacional da relação jurídica tributária é amplamente aceita na Doutrina do Direito Tributário brasileiro. Esta linha teórica, todavia, não fica isenta de críticas. Ricardo Lobo Torres, por exemplo, afirma que a concepção legalista da obrigação tributária afastava o dever tributário das suas vinculações constitucionais, ao acentuar demasiadamente o aspecto formal do vínculo obrigacional e desconsidera o fato de que o sujeito ativo da relação jurídica é o mesmo que produz a norma que está na origem do nascimento desta relação, vale dizer, o titular da prestação obrigacional é a mesmo sujeito que produz a lei.[15] Em outras palavras, a concepção legalista da obrigação tributária se apóia sobre uma igualdade de partes – sujeito passivo e sujeito ativo – absolutamente fictícia. Ao se apegar excessivamente ao aspecto formal da relação jurídica obrigacional, a teoria legalista esconde as desigualdades reais existentes entre Estado – sujeito ativo  – e contribuinte – sujeito passivo.

6. Obrigação tributária como relação complexa

Merece destaque especial, até pela influência que exerceu sobre a construção do Direito Tributário Brasileiro, o pensamento de A.D Giannini, sobretudo no que tange às sua concepção de relação jurídica tributária (rapporto giuridico d’imposta).

Segundo Giannini a relação jurídica tributária (rapporto giuridico d’imposta) possui um conteúdo complexo (complesso) pois dela derivam não apenas obrigação de recolher certa quantia aos cofres públicos, mas também poderes (poteri), direitos (diritti) e também deveres (obblighi) das autoridades tributárias, aos quais correspondem deveres (obblighi) positivos ou negativos, ou ainda direitos, das pessoas submetidas à potestade tributária. Contudo, o conteúdo essencial e fundamental da relação jurídica tributária consiste no vínculo entre devedor e credor em torno de uma prestação pecuniária (debito d’impsota).[16]

Giannini acentuou a distinção entre a relação jurídica tributária nuclear ou principal e as demais relações jurídicas também de natureza tributária, porque de certo modo ligados ao dever principal de recolher tributo aos cofres públicos, que estão alcançadas pelo complexo de situações jurídicas que o exercício da potestade tributária faz surgir. Daí o caráter complexo da relação jurídica tributária.

Aquele autor ressalta a importância do caráter complexo da relação jurídica tributária pois ajuda a compreender alguns aspectos ligados nascimento e à extinção da obrigação tributária e exemplifica afirmando que embora o pagamento extinga a obrigação tributária principal (debito d’imposta) não faz desaparecer o direito da Administração tributária de exigir a prestação de informações ou o preenchimento de declarações, independentemente da liquidação ou não do dever principal. Vale dizer, o obblighi do contribuinte quanto ao atendimento destas exigências fiscais independem da obbligazione tributária principal na qual tem o dever de recolher tributo aos cofres públicos.

A concepção da relação jurídica tributária como fenômeno complexo, de certa forma, também é referendada por Antonio Berliri. Para este autor, a obrigação tributária é apenas uma das relações jurídicas reguladas pela lei tributária no bojo da complexa “rapporto giuridico d’imposta”. Vale dizer, esta não se exaure na obrigação tributária. Berliri estabelece a distinção entre obblighi e obbligazione. Para este autor, a diferença entre os dois institutos deve estar no conteúdo da respectiva relação jurídica, se o mesmo tiver conteúdo patrimonial se estará na presença de uma obbligazione, se, por outro lado, o dever obrigacional não for dotado de patrimonialidade, trata-se de mero obbligo. Logo, pode existir obbligo sem que exista obbligazione.[17] De fato se o que caracteriza a relação obrigacional é o conteúdo patrimonial da prestação que a mesma encerra é inapropriado denominar-se obrigação a relações jurídicas cuja prestação seja apenas um dever de prestar ou de fazer algo.

Berliri critica a doutrina de Pugliese acerca da obrigação tributária – segundo o qual a mesma é unitária, consubstanciadora de uma simples obrigação de dar, sem prejuízo da existência de deveres colaterais do contribuinte e de terceiros de natureza administrativa – sustentando a impropriedade de tal afirmação pois há deveres de natureza tributária impostos a terceiros que não têm vínculo com uma obrigação tributária determinada (nascida ou ainda por nascer), ou seja, são deveres independentes do vínculo obrigacional, razão pela qual não podem ser enquadradas no conceito de “obrigação tributária”.

Berliri toca, assim, em um ponto pouco debatido na doutrina, qual seja, a natureza jurídica dos deveres acessórios impostos sobre terceiras pessoas que não figuram na posição de sujeito passivo da obrigação principal (de pagar o tributo) e que não têm vinculação com o fato gerador desta obrigação, mas que por terem conhecimento de fatos importantes para o exercício da potestade tributária têm o dever de atender às intimações fiscais.

Embora faça algumas ressalvas à doutrina da obrigação tributária que lhe antecedeu, Berliri termina por aceitar o caráter complexo da relação jurídica tributária definindo-a como uma “relação complexa resultante do conjunto das obrigações tributárias, atuais ou eventuais, a favor de um mesmo sujeito ativo tributário e derivada direta ou indiretamente de uma determinada situação-base e de direitos, podres e deveres com ela conexos.”[18]

O Código Tributário Brasileiro (art. 113) preferiu classificar sob a rubrica de obrigação tributária tanto o dever principal de recolher o tributo devido como os deveres instrumentais ou acessórios ligados àquele dever principal, notadamente o preenchimento de formulários, livros e declarações fiscais, bem como a prestação de informações necessárias à aplicação da lei tributária. Na linguagem da lei brasileira, a obrigação tributária é principal ou acessória. A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento do tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. A obrigação acessória, por outro lado, decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

A denominação “obrigação acessória” deu azo a duras críticas da doutrina pátria, na linha do que havia afirmado Antonio Berliri acerca da ausência de patrimonialidade de alguns deveres que cercam a obrigação tributária, mas que com esta não se confundem. Paulo de Barros Carvalho doutrina que a expressão “obrigações acessórias” constitui “nome impróprio, uma vez que não apresentam o elemento caracterizador dos laços obrigacionais, inexistindo nelas prestação passível de transformação em termos pecuniários. São liames concebidos para produzirem o aparecimento de deveres jurídicos, que os súditos do Estado hão de observar, no sentido de imprimir os efeitos práticos à percepção dos tributos.” Este autor prefere a designação “deveres instrumentais ou formais” pois têm “o intuito de mostrar, de pronto, que não têm essência obrigacional, isto é, seu objeto carece de patrimonialidade. E instrumentais ou formais porque, tomados em conjunto, é o instrumento de que dispõe o Estado-Administração para o acompanhamento e consecução dos seus desígnios tributários.”[19]

A incongruência do termo obrigação acessória resta ainda mais evidente quando se observa que a causa jurídica do dever supostamente “acessório” é fundamentalmente diferente da causa jurídica do dever principal. Com efeito, enquanto o dever principal tem como causa uma relação obrigacional cuja prestação consiste no dever de recolher o tributo, a causa da suposta “obrigação acessória” consiste no dever de prestar informações ou praticar certo ato no interesse da arrecadação, independentemente da existência do dever principal. Vale dizer, nada há de acessório ligando as causas jurídicas dos respectivos deveres.

Conforme ensina Ricardo Lobo Torres, o termo “obrigação acessória” deveria ser reservado para aquelas obrigações que juridicamente são acessórias à obrigação tributária principal, tais como as penalidades pecuniárias, os juros e acréscimos moratórios.[20]

Alcides Jorge Costa ensina que a linguagem do Código Tributário Brasileiro, no que tange à terminologia obrigação principal e obrigação acessória, deve-se à influência que o pensamento de Ezio Vanoni exerceu sobre Rubens Gomes de Sousa, autor do anteprojeto que veio a originar o atual Código Tributário Nacional. Com efeito, segundo Alcides Jorge Costa, Rubens Gomes de Sousa teria, na redação no texto que resultou no Código Tributário Nacional,  adotado a posição de Vanoni segundo o qual as obrigações tributárias podem classificar-se em obrigações de dar, de fazer, de não fazer e de suportar.[21] Vale ressaltar que esta afirmação resta corroborada quando se considera a circunstância de que Rubens Gomes de Sousa foi o responsável pela tradução para o português da clássica obra de Vanoni “Natureza e Interpretação das leis Tributárias”.

Assim, embora a moderna teoria do Direito Tributário visualize a obrigação tributária como uma relação jurídica complexa na qual encontram-se uma série de situações jurídicas de distinto caráter, nem sempre assimiláveis ao conceito clássico de obrigação, o direito positivo brasileiro preferiu designar sob o expressão “obrigação tributária” todo este complexo de fenômenos jurídicos, qualificando de acessórias todas as prestações que não se enquadrem no simples dever de recolher tributos aos cofres públicos (obrigação de dar).

7. Obrigação tributária e procedimento administrativo

A doutrina da obrigação tributária sofreu o influxo da doutrina processualista italiana e do enorme desenvolvimento que o Direito Processual viveu na Itália em meados da metade do século XX.

A chamada “teoria procedimentalista” reconhece que a obrigação tributária consubstancia um autêntica relação jurídica, todavia não se realiza nos moldes descritos pela teoria legalista da obrigação tributária, isto é, segundo um esquema de simples subsunção de um fato jurídico de conteúdo econômico à regra previamente prevista na lei. Vale dizer, para esta doutrina, a obrigação tributária não é o simples resultado da realização de uma fattispecie prevista legalmente, fenômeno que tem o condão de atribuir um direito subjetivo ao Estado consistente na pretensão de exigir certa prestação em dinheiro do sujeito passivo obrigado por lei a tal pagamento. Para tal doutrina, o nascimento do vínculo obrigacional deve necessariamente considerar o procedimento de imposição da norma, isto é, a atuação administrativa consistente em transformar em “ato” os comandos jurídicos presentes apenas “em potência” nos textos legais. Esta teoria desloca o eixo da compreensão do fenômeno da obrigação tributária do momento da realização da fattispecie tributária legal para o momento da atuação administrativa consistente na liquidação ou efetiva exigência do crédito tributário correspondente

Enrico Allorio sustenta que a afirmação segundo a qual a obrigação tributária nasceria sempre e de forma imediata do fato que justifica economicamente o tributo, sem a mediação de um ato da administração tributária ou sequer da tramitação administrativa da declaração do sujeito obrigado ao pagamento do tributo, consubstancia uma confusão entre o aspecto econômico e jurídico do problema da obrigação tributária. Ainda segundo aquele autor, o ato da Administração tributária reconhecendo a realização de uma fattispecie tributária prevista legalmente tem eficácia não declaratória, mas constitutiva no que tange ao surgimento da obrigação tributária.[22]

Para Allorio, o ato administrativo de imposição não se junta (s’aggiunga), como elemento posterior integrativo, à situação-base tributária para juntos (insieme) determinarem o nascimento da obrigação tributária, pelo contrário, o ato d’imposizione representa o único fato constitutivo da relação jurídica tributária. Em outras palavras, o lançamento tributário não declara, mas efetivamente constitui a obrigação tributária.

Allorio adota a distinção entre normas materiais e instrumentais para explicar a disciplina jurídica da situação existente entre o momento de realização da fattispecie (por ele denominada situação-base) e o momento do ato de imposição praticado pela Administração tributária. Normas materiais são aquelas que dirimem diretamente os conflitos de interesses, transformando os interesse protegidos em autênticos direitos. As normas instrumentais, por outro lado, organizam as funções (funzioni), isto é, constituem os poderes que devem ser exercidos no interesse geral de modo a resolver os conflitos de interesses individuais que são objeto das normas materiais. Em outras palavras, as normas instrumentais auxiliam a realização das normas materiais. A partir deste pressuposto, Allorio conclui que a realização da situação-base tributária tem o condão de gerar para a Administração o poder jurídico de exercer a função impositiva, necessariamente vinculada pela lei, destinada à aplicação da norma tributária material, cujo produto constituirá a obrigação tributária.[23]

Posteriormente Gian Antonio Micheli aprofundou a importância do procedimento administrativo para a fenomenologia da obrigação tributária. Segundo este autor, “a tradicional correlação entre direito de crédito e obrigação de pagar o tributo não exaure o fenômeno da atuação da norma tributária e portanto não se pode reduzir este último à noção de relação jurídica tributária, como tem feito grande parte da doutrina e da jurisprudência acolhendo o esquema de direito privado.” Micheli considera que o Direito Tributário incorreu em um erro de perspectiva (errore di prospettiva) ao considerar como relevante juridicamente somente o momento final da seqüência de atos cujo cumprimento (pelo sujeito passivo, pelo ente tributante, por terceiros, etc) determinam situações subjetivas de proeminência ou de sujeição que não podem ser reduzidas sic et simpliciter à obrigação, assim como não se pode atribuir todos os poderes de iniciativa da autoridade pública ao direito de crédito a favor do ente público.[24]

Micheli chama a atenção para o fato de que o legislador tributário cria não raras vezes diferentes situações e instrumentos jurídicos no intuito de tornar concreta a norma tributária, o que exige a consideração das características procedimentais relativas a cada tributo em particular e torna inadequadas afirmações doutrinárias categóricas acerca do caráter inelutavelmente declaratório ou constitutivo do lançamento tributário. Segundo aquele autor, para se entender a estrutura e as várias modalidades através das quais ocorre a atuação da norma tributária, é necessário estudar, sem preconceitos dogmáticos o desenrolar-se da seqüência de atos (procedimento), de diferentes naturezas e origens, e que redundam no lançamento tributário, resultado da constatação histórica de um certo evento (fattispecie) e das dimensões deste. A partir destes pressupostos, Micheli divide o procedimento de imposição tributária em fases, identificando em cada fase as diferentes qualificações jurídicas para a posição dos agentes nela participantes.

A teoria procedimentalista da obrigação tributária, especialmente a partir do pensamento de Micheli, influenciou no Brasil a obra de Marco Aurélio Greco “Dinâmica da Tributação e Procedimento”, onde são adotados alguns pressupostos da teoria de Micheli. Marco Aurélio Greco, à luz do Direito Brasileiro, entende que a atuação da norma tributária ocorre em quatro fases: a) normação, onde são editadas as normas gerais em matéria tributária, b) imposição, na qual a administração aplica aos casos concretos os comandos previstos nas normas gerais, pronunciando-se sobre a existência ou não de débito, c) integração, onde ocorre o aparelhamento do crédito tributário pela criação do título jurídico hábil para que o credor (sujeito ativo) possa alcançar o patrimônio do devedor (sujeito passivo) e d) compulsão, última etapa que se caracteriza pelo efetivo atingimento do patrimônio do devedor.[25]

A teoria procedimentalista sofre críticas da doutrina italiana. Pasquale Russo sustenta a impropriedade da utilização do instituto do procedimento tal como construído no Direito Administrativo para explicar o fenômeno de atuação da norma tributária e do surgimento da obrigação que esta veicula. Segundo este autor, no Direito Administrativo o termo procedimento designa uma série fixa e concatenada de atos na qual cada um constitui o pressuposto de legitimidade dos que lhe sucedem e todos concorrem para a produção de um único efeito jurídico, somente verificável após o último ato da série; no Direito Tributário, por outro lado, a atuação da norma tributária se realiza através de uma seqüência de atos de composição variável entre si (por exemplo, nos impostos diretos, tal seqüência poderia se constituir apenas da declaração do sujeito passivo; da declaração e da inscrição na dívida; da declaração, do aviso de lançamento e da inscrição na dívida; enfim, na falta de declaração, do lançamento e da inscrição na dívida).[26]

O Código Tributário Nacional (art. 142) definiu o lançamento tributário como o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Tal definição recebeu acerbas críticas por parte da doutrina.[27] A referência à expressão “procedimento administrativo” levou alguns doutrinadores a encarar o lançamento sob as luzes da teoria procedimentalista, todavia a grande maioria da doutrina considera o lançamento como autêntico ato jurídico precedido ou não precedido ou não de prévio procedimento administrativo. Vale dizer, o lançamento consiste no ato (jurídico) final de um processo de atuação administrativa, o qual pode assumir diferentes configurações dependendo das características concretas de realização da norma tributária relativas a cada tributo em particular.

Neste sentido, as palavras de Paulo de Barros Carvalho resumem à saciedade o pensamento da maioria da doutrina acerca do tema: “Lançamento é ato jurídico e não procedimento, como expressamente consigna o art. 142 do Código Tributário Nacional. Consiste, muitas vezes, no resultado de um procedimento mas com ele não se confunde. É preciso dizer que o procedimento não é imprescindível para o lançamento, que pode consubstanciar ato isolado, independente de qualquer outro. Quando muito, o procedimento antecede e prepara a formação do ato, não integrando com seus pressupostos estruturais, que somente nele estarão contidos.”[28]

8. Obrigação tributária “ex constitutionis”

Modernamente, com a evolução dos sistemas constitucionais pautados pela crescente defesa dos direitos fundamentais perante o Estado, a relação jurídica tributária tem sido concebida segundo parâmetros e limites constitucionais. A lei já não é soberana na definição dos deveres tributários: deve obediência estrita aos comandos constitucionais, notadamente àqueles representativos de defesa de direitos e garantias individuais.

Evidentemente que a lei ainda exerce a sua função de fonte normativa próxima do dever tributário, todavia o seu conteúdo deve ser iluminado pelo conjunto de disposições constitucionais que limitam a atuação do legislador na seara tributária. O mesmo se diga da atividade administrativa de imposição, a qual também deve ser desenvolvida seguindo os ditames constitucionais. A relação jurídica tributária, segundo esta concepção constitucional, acompanha e sofre o influxo do avanço das teorias constitucionais que afirmam a crescente eficácia dos direitos fundamentais e da defesa da dignidade da pessoa humana, como fundamentos últimos do Estado de Direito.

Contemporaneamente, assiste-se ao fenômeno da “constitucionalização da relação jurídica tributária”, na medida em que também no campo do Direito Tributário não se pode negar as inúmeras possibilidades de o Estado invadir direitos e garantias individuais protegidos constitucionalmente.

O dimensão constitucional das regras e princípios próprios do Estado de Direito invadem a seara do Direito TrIbutário exigindo uma alteração de perspectiva no tema da obrigação tributária. Com efeito, até este momento o tema era analisado sobretudo a partir de uma visão estrutural norteada pelos postulados do Direito Civil, o que redundava em uma concepção segundo a qual a obrigação tributária é o mero sucedâneo no âmbito do Direito Público do instituto da obrigação construído no Direito Privado, isto é, vínculo obrigacional entre sujeito ativo (credor) e sujeito passivo (devedor) em torno de uma prestação com conteúdo patrimonial. Após a constitucionalização da relação jurídica tributária o tema passa a assumir uma dimensão axiológica, decorrente dos postulados de igualdade, justiça e respeito pelos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.

A doutrina germânica construída após a Lei Fundamental de 1949 liderou o processo de constitucionalização da relação tributária ao reforçar a eficácia e a necessária observância dos princípios do Estado de Direito em todos os campos da vida social, sobretudo no que tange à relação Estado-indivíduos.

Klaus Tipke é um dos doutrinadores de destaque nesta nova fase da doutrina tributária. Para este autor as normas tributárias devem ser compreendidas a partir dos postulados do Estado de Direito formal e material.[29]

O Estado de Direito formal caracteriza-se pelo predomínio da lei, pela legalidade da atuação administrativa e pela proteção jurídica contra atos ilegais do poder público perante tribunais independentes. O Estado de Direito formal realiza sobretudo a segurança jurídica (Rechtssicherheit). A influência do Estado de Direito formal assegura no Direito Tributário o princípio da tributação conforme a lei (Grundsatz der Gesetzmässigkeit der Besteurung) concretizado através do princípio da determinação das leis tributárias (Prinzip der Bestimmtheit von Steuergesetzen) e da proibição de leis tributárias retroativas (Verbot rückwirkender Steuergesetze).

O Estado de Direito material, além das garantias asseguradas pelo Estado de Direito formal, outro lado, postula a concretização “ordem jurídica constitucional d valores” (Wertordnung des Grundgesetzes), onde assumem lugar de destaque a justiça, os direitos fundamentais, a igualdade e a liberdade dos indivíduos. Com a consagração do Estado de Direito material a ciência do direito tributário (Steuerrechtswissenschaft) se transforma na ciência da justiça tributária (Steuergerechtigkeitswissenschaft). A justiça tributária é definida através da tributação igual (Gleichmässigkeit) e conforme a lei (Gesetzmässigkeit). No Estado de Direito material a lei tem que preencher uma função de justiça, não apenas de segurança jurídica.

Enfim, o Direito constitucional penetrou de forma indelével a relação jurídica-tributária. Impossível se afigura conceber a obrigação tributária apenas sob uma dimensão estrutural, retirando-lhe o conteúdo axiológico. A norma tributária não é mais o mero instrumento jurídico que permite que o Estado obtenha os recursos indispensáveis ao custeio das atividades públicas, obrigando os indivíduos a recolherem aos cofres públicos certa parcela de sua riqueza. No Estado de Direito contemporâneo a norma tributária é um instrumento de realização de justiça e dos demais valores constitucionais.

Neste sentido, veja-se, por exemplo, a analítica disciplina constitucional que a relação jurídica tributária recebe no Brasil. O Texto Constitucional, talvez em exemplo único em todo o mundo, contempla um imenso rol de regras e princípios norteadores da atividade impositiva ao lado de um outro elenco de direitos fundamentais de alcance geral, epigrafados “Direitos e Garantias Individuais”. Com efeito, a Constituição Federal brasileira constitui um autêntico sistema de limites em matéria de tributação, autorizando inclusive que nela se enxergue um “Estatuto do Contribuinte”, haja vista a evidente finalidade de proteção do indivíduo contra o exercício desmesurado do poder tributário.

Neste contexto jurídico-constitucional, a obrigação tributária também deixa de ser o mero resultado da realização fenomênica de uma fattispecie tributária nela prevista, o que justificou a célebre declaração de que a obrigação tributária é “ex lege”. Evidente que a lei continua desempenhando importante papel na definição da origem da obrigação, mas esta mais do que “ex lege”, transforma-se em obrigação “ex constitutionis”.

O parâmetro de avaliação da juridicidade da obrigação tributária e de todas as relações jurídicas intermediárias com ela conexas (círculos concêntricos, na linguagem de Nawiasky) encontra-se neste novo momento da Constituição e no conjunto de regras e princípios por ela protegidos e buscados.

A dimensão constitucional assumida pelo Direito Tributário exige uma visão axiológica da obrigação tributária. O vínculo jurídico obrigacional entre sujeito ativo (Estado) e sujeito passivo (contribuinte) deve ser iluminado e contrastado com o conjunto de limites constitucionais que condicionam a validade da atuação dos agentes estatais, seja quando estes desempenham a tarefa de elaboração legislativa, seja quando executam os comandos legais. O  poder tributário não é mais concebido como um poder cuja titularidade é naturalmente reconhecido ao Estado para ser exercido contra os indivíduos que se submetem a sua soberania;  no moderno Estado de Direito o poder impositivo é apenas mais um instrumento que a Constituição reconhece ao Estado para que este utilize na busca da realização dos desideratos nela contemplados e tem a sua juridicidade reconhecida somente e na medida em que o seu exercício corresponde estritamente ao conjunto da ordem constitucional de valores.

Em outras palavras, o poder tributário não pertence ao Estado, mas à Constituição, a qual lhe empresta o exercício apenas enquanto esta se revelar a forma mais adequada para a realização dos anseios constitucionais. O poder tributário é, portanto, um produto da Constituição e a obrigação tributária nascida do seu exercício deve guardar compatibilidade com o Texto Maior, sob pena de desvirtuamento da sua razão de ser.

Esta concepção de obrigação tributária desloca e enobrece o vínculo jurídico existente entre Estado (Fisco) e indivíduo (contribuinte). Com efeito, o sujeito passivo tributário encontra-se nesta condição não apenas porque a lei o qualificou de tal forma, mas porque a Constituição assim o exige e permite. O vínculo jurídico obrigacional, portanto, tem sede mais do que legal, constitucional. Por outro lado, o regime jurídico que norteia a disciplina deste vínculo não se resume às deliberações do legislador, mas tem sede constitucional, o que implica trazer para o bojo da relação jurídica tributária todo o rol de direitos fundamentais e aspirações de justiça e igualdade contemplados no Texto Constitucional, o que claramente enche de substância a obrigação tributária, antes analisada apenas sob o ângulo formal estrutural do vínculo jurídico entre sujeito ativo e passivo em torno de uma prestação patrimonial.

Com a obrigação tributária “ex constitutionis” a relação jurídica tributária ganha dimensão axiológica, revelando as aspirações de justiça e igualdade almejadas pelo conjunto de regras e princípios presentes na ordem constitucional.

 

[1] Hacienda y Derecho, Instituto de Estudios Políticos : Madrid, 1975, p. 314.

[2] Sainz de Bujanda, ob. cit., p. 320-332.

[3] Sobre o desenrolar da crise prussiana, ver o Prefácio de Álvaro Rodrigues Bereijo ao livro El Derecho Pressupuestario de Paul Laband, Instituto de Estudios Fiscales : Madrid, 1919.

[4] Sainz de Bujanda, ob e loc. cits.

[5] Derecho Administrativo Alemán, tomo II, Depalma : Buenos Aires, 1982, p. 185-196, tradução do original francês Le droit administrativ allemand, Edit. V. Giard et E. Brière, Paris, 1904, por Horacio H. Heredia e Ernesto Krotoschin.

[6] José Juiz Pérez de Ayala. Montesquieu y el Derecho Tributario Moderno. Dykinson : Madrid, 2001, p. 57-58.

[7] Sistema di diritto delle imposte, Giuffrè : Milano, 1954, tradução de Francesco Forte, p. 1-31

[8] Cuestiones Fundamentales de Derecho Tributario. Instituto de Estudios Fiscales : Madrid, 1983, p. 51-71, trad. Juan Ramallo Massanet.

[9] Ob. cit., p. 53. Afirma Nawiasky: “É falso considerar que o Estado como titular do crédito tributário tem uma posição superior ao devedor. Sua vontade frente a este (devedor) não é uma vontade decisória de caráter autônomo: pelo contrário, o Estado somente pode exigir o que o ordenamento jurídico lhe concedeu.”

[10] Ob. cit., p. 54-55.

[11] Diritto Tributario, Giuffrè : Milano, 1956, p. 50-70, tradução de Dino Jarach.

[12] Ob. cit., , p. 71-72.

[13] Fato gerador da obrigação tributária. 2ª ed. Revista dos Tribunais : São Paulo, 1971, p. 29.

[14] Compêndio de Legislação Tributária. Resenha Tributária : São Paulo, 1982, p. 83-84.

[15] Curso de Direito Financeiro e Tributário, 9a. ed., Renovar : Rio de Janeiro, 2002, p. 208.

[16] Istituzioni di Diritto Tributario. 5a. ed. Giuffrè : Milano, 1951, p. 53-78.

[17] Principi di Diritto Tributario. Vol II, Giuffrè : Milano, 1957, p. 3-51.

[18] Ob. cit., p. 51.

[19] Curso de Direito Tributário. 13a. ed. Saraiva : São Paulo, 2000, p. 284-287.

[20] Ob. cit., p. 212.

[21] Algumas notas sobre a relação jurídica tributária. Estudos em homenagem a Brandão Machado. Luis Eduardo Schoueri e Fernando Aurélio Zilveti  (Coord.). Dialética : São Paulo, 1998, p. 35.

[22] Diritto Processuale Tributario. 4a. ed. UTET : Torino, 1962,  p. 60-106.

[23] Ob. cit., p. 104-106.

[24] Corso de Diritto Tributario. 8a. ed. UTET : Torino, 1989, p. 161-241.

[25] Dinâmica da tributação e procedimento. RT : São Paulo, 1979, p. 153-189.

[26] L’obbligazione tributaria. Trattato di Diritto Tributario. Vol II. CEDAM : Padova, 1994, p. 15.

[27] Uma síntese das críticas a esta definição legal pode ser encontrada em Alberto Xavier, Do lançamento, do procedimento e do processo tributário, 2a. ed. Forense : Rio de Janeiro, 1998, p. 23-67.

[28] Ob. cit., p. 383.

[29] Klaus Tipke/Joachim Lang. Steuerrecht, 15a. ed. Verlag Dr. Otto Schmidt : Köln, 1996, p. 72-77.