CPMF e dados bancários

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 18.10.2004

 

Matéria de grande indagação e controvérsia no âmbito doutrinário e jurisprudencial é aquela relativa à possibilidade de utilização de informações bancárias, notadamente aquelas decorrentes do recolhimento de CPMF, no processo de lançamento de tributos por parte das autoridades federais. É certo que esta discussão revela apenas uma faceta de um problema mais amplo, qual seja, a existência e a amplitude de uma proteção constitucional ao sigilo bancário, derivada do direito fundamental à intimidade e à vida privada.

Não almejo debater nesta oportunidade a questão do sigilo bancário versus a faculdade dos agentes fiscais para acessar os dados bancários, como instrumento de obtenção de informações que permitem a identificação de supostos créditos tributários devidos e não recolhidos pelos contribuintes. Ocupo-me nesta oportunidade apenas da validade de lançamentos fiscais apoiados na utilização de informações relativas à CPMF como elementos para a exigência de créditos tributários, prática que vem sendo adotada pelas autoridades fiscais federais.

Necessário recordar que quando da criação do então IPMF uma das questões mais tormentosas foi justamente a possibilidade de o Fisco utilizar os dados pertinentes à arrecadação deste tributo como instrumento para a exigência dos demais tributos federais. Como a sistemática de arrecadação do IPMF (atual CPMF) envolve operações bancárias temia-se, à época, que o Estado obtivesse o tão desejado amplo acesso às contas bancárias dos contribuintes, burlando a garantia do sigilo bancário.

O receio de que a CPMF terminasse por aniquilar o sigilo bancário diante do Fisco foi a razão de ser da inserção do parágrafo terceiro do artigo 11 da Lei nº 9.311/96, que instituiu a CPMF, o qual está veiculado nos seguintes termos: “A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para a constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos.” Esta norma foi à época fruto de amplo acordo parlamentar para viabilizar a aprovação da CPMF.

Ocorre que esta proteção legal foi retirada do contribuinte pela Lei nº 10.174/2001, a qual, conferindo nova redação ao parágrafo terceiro supra citado, passou a estabelecer que “A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores.” Em outras palavras, a Lei nº 10.174/01 conferiu expressamente aos agentes fiscais competência para utilizar informações derivadas do recolhimento de CPMF como instrumento para a exigência de outros tributos.

Este quadro, desde logo, põe ao intérprete duas questões jurídicas de naturezas distintas, qual seja, a) a validade constitucional da utilização de informações bancárias derivadas do recolhimento de CPMF no processo administrativo de constituição de outros tributos, sem prévia autorização judicial, face à garantia constitucional da proteção da intimidade e b) a validade constitucional da aplicação desta nova competência legal sobre fatos realizados antes do seu surgimento na ordem jurídica. Trato, nesta oportunidade, apenas da segunda questão, haja vista o caráter mais amplo da primeira, na medida em que se confunde com a definição do conteúdo jurídico da proteção à intimidade na ordem constitucional brasileira.

Parece-me que a aplicação da nova legislação a fatos praticados antes da sua edição causa inegável lesão ao princípio da segurança jurídica, materializado na proteção constitucional à aplicação retroativa de leis que causem restrição à esfera jurídica individual (art. 5º, XXXVI e XL, CF). Sob a perspectiva de um Estado Democrático de Direito não é permitido ao Estado produzir leis que operem retroativamente em desfavor dos indivíduos, sobretudo quando o beneficiado por esta aplicação retroativa é o próprio Estado, produtor da norma, como acontece na hipótese ora analisada.

Com efeito, a segurança jurídica consubstancia comando basilar, estruturante da ordem jurídico-constitucional e se revela na exigência de normas jurídicas dotadas de razoável grau de clareza, certeza e previsibilidade, sobretudo quando regulam os termos da relação que se dá entre Estado e indivíduos, como as que tocam à relação jurídica tributária. No moderno Estado Constitucional, segurança jurídica não é comando que se dirige apenas a atos, mas atine, sobretudo, a regimes jurídicos protetivos de determinadas situações.

Neste sentido, não é compatível com a segurança jurídica permitir que atos jurídicos praticados sob um regime jurídico de proteção, porque assim desejou o legislador da época da realização daqueles atos, abruptamente percam tal abrigo, mediante a sua submissão a norma legal editada posteriormente. Tal situação equivale à exigência de tributos sobre fatos praticados no passado, apenas porque o legislador de hoje assim desejou.

Não me impressiona o argumento daqueles que sustentam tratar-se aquela norma de mera alteração na competência das autoridades administrativas e não de autêntica norma de lançamento tributário, a qual apenas pode ter eficácia pro futuro. Ora, à evidência a nova legislação amplia os poderes investigatórios do Fisco sobre fatos praticados no passado sob um regime jurídico expressamente mais protetivo. Diante disso, como sustentar que se trata de mera norma administrativa? Normas administrativas de aplicação imediata (inclusive sobre fatos passados) são apenas aquelas que não atingem o administrado; são aquelas que objetivam tão somente a organização da atuação da burocracia administrativa, sem interferir com a esfera jurídica dos indivíduos, o que à clareza solar não ocorre com a norma sob comento.

Além de considerações de caráter técnico-jurídico de inegável importância, parece-me relevante ressaltar a conotação moral que o debate revela, na medida em que a aplicação da nova legislação sobre fatos praticados no passado implica referendar o ardil estatal cuja vítima são os indivíduos que praticaram atos jurídicos no passado sob um regime jurídico mais protetivo (por expresso desejo do legislador) e agora têm contra si a pretensão estatal derivada de tais atos.

Nunca é demais lembrar que além do vasto rol de garantias individuais, ao Estado Brasileiro compete agir com atenção ao princípio da moralidade (art. 37, caput, CF), o qual, entre outras exigências, impede a prática de ações que violem a boa-fé e a confiança manifestada por aqueles que conduziram suas ações sob um determinado regime jurídico, a obstar ações estatais que impliquem em verdadeira punição pela crença na ordem jurídica. Como observou Fernando Scaff, em obra sobre a responsabilidade do Estado, os governantes devem proceder no comando do Estado agindo de boa-fé com seus governados, uma vez que é por conta destes que eles lá se encontram.

É preciso estar atento ao avanço sutil, permanente e progressivo do Estado sobre as liberdades individuais e o propagado (e necessário) combate à sonegação representa o discurso legitimador desta tendência. No entanto, os instrumentos legais existentes são perfeitamente suficientes ao exercício da regular função fiscalizatória, sem necessidade da aplicação retroativa de legislação (cuja constitucionalidade inclusive é duvidosa) mais restritiva aos direitos individuais, o que configura manifesta ofensa ao conjunto de princípios constitucionais reguladores da relação Fisco-Contribuinte nos quadrantes de um Estado Democrático de Direito.