A farra das contribuições

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 25.10.2004

A sociedade brasileira está farta de tributos. Não faltam manifestações públicas de indignação diante do perverso binômio carga tributária escorchante e serviços públicos lastimáveis, para não dizer inexistentes. Diante deste quadro, o desafio de todos é construir caminhos que limitem a insaciável sanha do Estado Brasileiro por tributos. Permito-me levantar uma pequena sugestão aos nossos representantes políticos, que, diga-se de passagem, foram eleitos para representar os interesses do povo e não do Estado (em sentido amplo).

É de conhecimento público que o crescimento da carga tributária na última década decorreu da criação e majoração de contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico (as conhecidas CIDES), tributos que são de competência privativa da União, cujo produto arrecadado não é, como regra, repartido com Estados e Municípios.

Tal farra arrecadatória ocorreu porque a Constituição Federal de 1988, ao contrário do que procedeu com os impostos, não delimitou objetivamente o campo de incidência das contribuições, permitindo que a União possa, mediante simples Medida Provisória, criar ou majorar estes tributos. Com esta abertura constitucional, a União Federal vem abusando da criação e/ou majoração de contribuições, utilizando, quase sempre, a mesma base de cálculo de outros impostos já existentes.

A sobreposição de tributos sobre uma mesma base de incidência (fato econômico) tornou-se possível porque o Supremo Tribunal Federal entendeu que a vedação constitucional, prevista no art. 154, I da Carta Política, à criação de novas incidências sobre fatos econômicos já tributados limita-se apenas aos impostos e não às contribuições, ignorando a circunstância de que as contribuições (economicamente) não passam de impostos cuja arrecadação tem destinação específica.

A Emenda Constitucional nº 33, de 11 de dezembro de 2001, tentou fechar o cerco às contribuições, mas revelou-se, neste particular, uma grande frustração. Aquela Emenda Constitucional estabeleceu que as contribuições somente podem ter por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação.

Ao inscrever o “valor da operação” como base de cálculo possível para as contribuições, a aludida Emenda, ao invés de restringir, pelo contrário, referendou constitucionalmente a criação de um sem-número de contribuições tomando por base o valor das mais diferentes operações, haja vista a ambigüidade, vaguidade e generalidade do conceito “valor da operação”. Assim, em tese, possíveis são constitucionalmente, contribuições tomando por base de cálculo operações de importação, de venda de mercadorias, de alienação de bens incorpóreos, de prestações de serviços, de remessa ao exterior, etc.

Diante deste quadro, o que resta à sociedade?

O grande ensinamento que os filósofos liberais dos séculos XVII e XVIII nos deixaram foi que apenas o direito pode limitar o exercício do poder político (embora a opressão também possa ser veiculada pela produção de um direito de conteúdo antidemocrático). De todo modo, afastada as hipóteses de tirania ou exercício despótico do poder, nas sociedades democráticas é no direito que os indivíduos têm a garantia das suas liberdades.

Assim sendo, se é a existência de um direito constitucional excessivamente aberto que está permitindo a utilização excessiva de contribuições como instrumento de arrecadação federal, necessário que a sociedade utilize a mesma ferramenta – o direito constitucional – na defesa de suas prerrogativas. Se os tribunais não optaram por uma exegese constitucional que protegesse a sociedade contra os abusos arrecadatórios do Estado, necessária uma cruzada para a reforma da Constituição.

Tal iniciativa contempla a propositura de Emenda Constitucional com duas disposições. A primeira consistiria na revogação do art. 149, § 2º, item III da Constituição Federal, o qual serviu apenas para ampliar o rol dos fatos econômicos possíveis de serem alcançados por contribuições, ao inserir o “valor da operação” como base tributável por contribuições.

O artigo segundo da aludida Emenda Constitucional alteraria o art. 154, I da Constituição para que a expressão “impostos” fosse substituída pela expressão “tributos” (gênero do qual os impostos são espécies, na dicção do Supremo Tribunal Federal), com as alterações redacionais pertinentes no dispositivo.

Como o efeito limitador pretendido seria apenas pro futuro, a Emenda Constitucional proposta não implicaria qualquer perda de arrecadação à União Federal, o que imediatamente suscitaria o debate do inexplicável superávit primário, óbice intransponível para qualquer processo de alteração constitucional no Brasil que privilegie a sociedade e não o Estado, em benefício do qual a Constituição é rotineiramente alterada, ao sabor da conjuntura.

O efeito prático da proposta ora apresentada seria automático: poria fim à incessante criação de novas contribuições sobre os mais diferentes fatos econômicos e atividades, ficando mantidas as contribuições hoje existentes. Registre-se que, no momento, está em processo final de gestação no Congresso Nacional mais uma contribuição, desta feita incidente sobre a venda de aparelhos de televisão e outros – inclusive celulares – que permitam a veiculação de imagens, cuja receita deve ser destinada ao financiamento de atividades ligadas ao audiovisual.

Enfim, é hora de a sociedade civil (classes empresariais, sindicatos de trabalhadores, entidades de classe) mobilizar-se para pressionar os seus representantes na direção de uma proposta clara que ponha termo à infindável criação de contribuições, pagas ao fim e ao cabo, por todos nós, consumidores. A proposta ora apresentada tem o condão de não afetar a arrecadação hoje existente, o que, por si só, deveria induzir, desde logo, à sua aceitação, por aqueles que publicamente se comprometem a não aumentar a arrecadação tributária. Será verdadeiro tal propósito? Veremos. Enfim, o debate está lançado.