Ausência de Estado

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 20.11.2004

Os problemas sociais e econômicos vividos pela população amazônica, sobretudo aquelas do interior, têm uma raiz comum, qual seja, a ausência do Poder Público no desempenho das mais elementares funções de comando, de governo, de instância responsável pela legalidade.

Exemplo hodierno desta afirmação é a invasão da sede regional do Incra na cidade de Santarém por duzentos e cinqüenta famílias de agricultores de dois projetos de assentamento rural. A principal reivindicação do movimento expressa a dramaticidade da situação: a demarcação e titulação das terras que já foram entregues pelo órgão federal às famílias assentadas.

Em outras palavras, o que os agricultores pedem é apenas e tão somente que o Estado apareça e cumpra o dever mínimo que constitucionalmente lhe cabe, que é regularizar a situação fundiária já existente, permitindo com isso que os assentados possam ter acesso aos diferentes programas de créditos oficiais.

Este é um exemplo sintomático da situação vivida por muitos daqueles que decidiram residir e produzir na região amazônica, não só os pequenos agricultores assentados, mas também empresários que acreditam no potencial produtivo da região. A sociedade, de forma institucional, organizada ou não, requer, solicita, muitas vezes implora ao Estado para que este restaure (ou instaure) um regime de legalidade, mas o Estado, paquidérmico, incompetente, inapto, simplesmente se nega a cumprir o seu dever, e empurra os indivíduos para a informalidade, a ilegalidade. Não admira que em momento futuro aquele mesmo Estado venha, cinicamente, a utilizar os instrumentos da legalidade contra àqueles que invadiram prédios públicos pleiteando a regularização do problema.

Grande parte dos problemas fundiários vividos no Estado do Pará, e em outros Estados do Norte do país, deve-se justamente à incompetência do Governo Federal na formalização e regularização de assentamentos agrários. Os indivíduos, a fome, a carência extrema, não podem esperar que a máquina burocrática do Estado, como num passe de mágica, decida funcionar, regularizando as situações de ilegalidade. Daí a emergência de situações indesejáveis, sob o ponto de vista da estabilidade democrática, tais como invasões de prédios públicos.

O problema ambiental também tem origem considerável na ausência do Estado que através dos órgãos competentes não consegue dar cabo à demanda dos projetos de manejo apresentados por aqueles empresários que decidem cumprir a legislação pertinente. Não raro os jornais noticiam protestos de lideranças empresariais reclamando da negligência e da leniência do Ibama em decidir e regularizar projetos de exploração sustentável das áreas florestais.

Apresentado o projeto junto ao Ibama, e diante da ausência do Poder Público em responder célere e honestamente (não podemos esquecer das denúncias de corrupção nesta área) às demandas a ele dirigidas, muitas vezes resta ao empresário o caminho da ilegalidade, única forma de fazer face às obrigações assumidas em razão do empreendimento econômico, sobretudo perante instituições financeiras, fomentadoras do investimento, e trabalhadores. De novo, é a incompetência do Estado causando lesões à sociedade.

No momento de superação do neoliberalismo, em que cientistas políticos discutem os princípios do novo ideário político que deve reger as relações entre Estado e sociedade, definindo o perfil do papel que o Poder Público deve desempenhar, pelo menos no que tange à Amazônia, não há dúvida qual o melhor e necessário caminho: é hora de (mais) ou alguma presença do Estado na vida das pessoas.

A sociedade brasileira precisa continuar a exigir (de preferência, sem a necessidade de invasão de prédios públicos) que o Estado, ao invés de se ocupar simplesmente de arrecadar tributos da sociedade, passe a desempenhar a sua função mais elementar, qual seja, a de prestar serviços públicos indispensáveis à instauração, manutenção ou restauração da legalidade, sob pena de ameaça à estabilidade social. Já é hora de os órgãos públicos sofrerem um choque de eficiência e passarem a servir efetivamente aos desideratos que presidiram à sua criação e justificam a sua existência.