Sistema tributário, carga tributária e capacidade contributiva

“Sistema tributário, carga tributária e capacidade contributiva”, in “GRANDES QUESTÕES ATUAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO”, 8º volume, São Paulo, Dialética, 2004, p. 138-157, obra coletiva coordenada por Valdir de Oliveira Rocha.

1. Introdução

O sistema tributário brasileiro atual, sobretudo na esfera federal, é o resultado da completa ausência de planejamento[1] em matéria de política tributária e da primazia do viés arrecadatório, motivado por uma política econômica fundada na geração de superávit fiscal destinado à rolagem da dívida pública federal.

Qualquer análise um pouco mais profunda do sistema tributário nacional deve constatar que o crescente aumento da carga tributária é reflexo do aumento da dívida pública federal, a qual, por outro lado, é inflada pela decisão do governo federal de controlar a inflação através de juros altos. Neste sentido, segundo noticiam os jornais, apenas no mês de junho de 2004, a dívida do governo federal cresceu quase R$ 10 bilhões. O aumento de carga tributária, ao fim e ao cabo, destina-se a fazer face a esta escalada da dívida pública.[2]

As discussões sobre aumento de carga tributária passam, inelutavelmente, em um primeiro momento, pelo debate relativo ao modelo de financiamento do Estado, da qualidade e da quantidade das despesas públicas, e em um segundo momento pelo próprio papel que o Estado deve desempenhar na sociedade brasileira.

Dada a complexidade do fenômeno, nas linhas que seguem apenas exporemos algumas visões – e perplexidades – que temos do sistema tributário brasileiro.

2. Características do sistema tributário brasileiro

Em linhas gerais, o sistema tributário brasileiro tem como algumas características centrais:

  1. Instabilidade

Não há um órgão responsável pelo planejamento da política tributária, entendida como a definição de diretrizes claras de curto, médio e longo prazo, bem como das respectivas medidas necessárias ao seu atingimento. A Secretaria da Receita Federal é o órgão encarregado de definir a política tributária e, ao mesmo tempo, promover a arrecadação das incidências por ela preestabelecidas (e via de regra, ratificadas pelo Congresso Nacional e pelo chefe do Poder Executivo).

A conseqüência é a adoção de um amontoado desarticulado de medidas, motivadas pela urgência da conjuntura, que não guardam sintonia entre si quando observadas no longo prazo, e que têm quase sempre apenas um objetivo: promover o aumento de arrecadação exigido pela política macroeconômica.

Os exemplos desta instabilidade estão a olhos vistos. A partir da Lei nº 9.718/98, o PIS/COFINS passou a incidir também sobre as receitas financeiras das pessoas jurídicas. Esta medida foi anunciada pela Secretaria da Receita Federal como necessária para conferir neutralidade tributária entre empresas financeiras e não financeiras, “verbis”:

“De modo a dar consistência à política de neutralidade de tratamento tributário entre empresas financeiras e não-financeiras, a Lei nº 9.718/98 instituiu a exigibilidade da COFINS para o setor à mesma alíquota das empresas em geral, isto é, 3%. A partir de fevereiro de 1999 essa contribuição passou a incidir sobre a receita bruta de instituições financeiras, admitidas as mesmas exclusões e deduções previstas na legislação do PIS.”[3]

De todo modo, a própria Secretaria da Receita Federal constatou o expressivo resultado arrecadatório obtido com a aludida “política de neutralidade tributária”, “verbis”:

“O impacto sobre as receitas dessa política de neutralidade implicou uma expressiva arrecadação da COFINS pelas instituições financeiras, da ordem de R$ 3,15 bilhões, em um período de 12 meses a partir de março de 1999. Por outro lado, a redução da alíquota de CSLL implicou uma perda de arrecadação de R$ 252 milhões, no período 1998/1999.”[4]

A realidade é que a “política de neutralidade tributária” expressava a clara intenção do Poder Público Federal de alcançar as receitas financeiras obtidas pelas empresas em geral (e não apenas pelas instituições financeiras), de modo que, a partir da Lei nº 9.718/98, operou-se o tratamento igualitário de receitas financeiras e receitas de vendas de mercadorias e serviços. Independentemente do juízo de valor que se faça sobre tal objetivo, esta era a direção clara da política tributária.

Veio o PIS/COFINS não-cumulativo (tão sonhado pelo empresariado nacional, que talvez tenha aprendido que o sistema de não-cumulatividade também pode ser utilizado para aumentar carga tributária através do aumento irrazoável da alíquota aplicável). A carga tributária subiu assustadoramente, o que gerou novos protestos da classe produtiva. Ao invés de reduzir a alíquota do tributo, o que fez o Governo Federal? Através do Decreto 5.164, de 30 de julho de 2004, reduziu a zero a alíquota de PIS/COFINS sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade do PIS/COFINS.

Com esta medida, o Governo Federal, a um só tempo:

  1. criou injustificado favorecimento para os contribuintes sujeitos ao PIS/COFINS não-cumulativo em relação àqueles submetidos ao regime cumulativo, sobretudo quando se considera que enquanto aqueles poderiam tomar crédito do tributo incidente sobre as receitas financeiras (pelo sistema de débito-crédito), estes últimos não podem tomar tal crédito haja vista a cumulatividade da incidência a que estão submetidos;
  2. nega a diretriz antes estabelecida de que as receitas financeiras devem ser gravadas de forma semelhante à receita que é resultado da venda de mercadorias e serviços, diretriz que alguns anos atrás foi a justificativa oficial para o alargamento da base de incidência do PIS/COFINS.

Em outras palavras, movido pela pressão por redução de carga tributária, notoriamente aumentada com o PIS/COFINS não-cumulativo, o Governo Federal desonera deste tributo apenas as receitas financeiras, contudo limita o alcance subjetivo deste benefício apenas às empresas que poderiam tomar o crédito deste tributo nas suas operações, mantendo onerado o contribuinte ainda sujeito à cumulatividade. Vale dizer, o contribuinte que não pode tomar crédito do tributo que paga continua onerado, enquanto que o contribuinte que poderia se creditar do tributo ficou livre da incidência tributária sobre as suas receitas financeiras.

A instabilidade reflete-se também na contemplação legal, cada vez maior, de pleitos de setores econômicos individualizados. Como não há uma diretriz tributária clara (dada a inexistência de planejamento para a política tributária), a legislação é o repertório de comandos disciplinando interesses setorizados, fruto das pressões institucionais.

Neste sentido, observe-se o artigo 13 da Lei nº 10.925, de 23 de julho de 2004, que atendeu a um antigo (e legítimo) pleito das agências de publicidade e propaganda, quanto à não incidência do PIS/COFINS sobre receita que constitui mero repasse. No entanto, idêntico problema permanece existindo em inúmeros outros setores econômicos e continua sem solução.

Se houvesse uma política tributária coerente e planejada, ao invés de atender a um pleito de apenas um setor econômico, o Governo Federal simplesmente esclareceria (por Decreto ou Instrução Normativa) que qualquer entrada patrimonial que representasse mero repasse de custo não deveria ser oferecida à tributação pelo PIS/COFINS, pela simples razão de que esta não consubstancia receita do contribuinte. Ponto. Com isto, o problema de uma infinidade de contribuintes – de diferentes setores econômicos – estaria resolvido, o que certamente evitaria uma gama de processos administrativos e judiciais.

Assim, a falta de planejamento aumenta a desarticulação das regras tributárias, acirra as desigualdades infundadas e constitui campo propício para a contemplação de normas que representam o fruto da pressão de alguns setores organizados.

  1. b) Complexidade.

A complexidade do sistema tributário brasileiro é há muitos anos uma unanimidade entre os expertos do setor público e do setor privado, a classe empresarial e profissionais dedicados ao tema da tributação no Brasil.

No entanto, a capacidade do Governo Federal de maximizar este problema parece insuperável. Constatação desta afirmação é a criação do PIS/COFINS não-cumulativo e, posteriormente, do PIS/COFINS Importação.

Ao invés de simplesmente criar um tributo não-cumulativo com alíquota reduzida onerando apenas a venda de mercadorias e serviços, onde cada pagamento dê direito a crédito correspondente à alíquota incidente sobre a receita auferida com a operação, o Governo Federal manteve alguns setores e receitas obrigados ao regime cumulativo, ao lado de outros setores submetidos à incidência monofásica do tributo e a regimes especiais.

Vale dizer, um tributo concebido para ser não-cumulativo e desonerador da produção, hoje é fruto da mais ampla confusão entre os contribuintes, o que causa distorção em cadeias produtivas da qual participam contribuintes submetidos a diferentes sistemáticas de recolhimento de PIS/COFINS. Para combater tais distorções, sucedem diariamente Instruções Normativas e Atos Declaratórios que transformam a legislação do tributo em um emaranhado de normas de difícil compreensão até para o mais atualizado dos profissionais. A bem da verdade, mais do que atualização, por vezes, a exegese das normas tributárias requerem um exercício de adivinhação por parte do intérprete acerca do que poderia ter sido a mensagem normativa do legislador ou da Administração Fiscal.

Junto com a complexidade vem a criação de uma série de controles internos, de resto, impostos ao contribuinte “em nome do interesse arrecadatório” o que transforma o custo de conformidade (“compliance cost”) em um relevante item na planilha de custos das empresas. Enquanto no mundo inteiro a simplicidade dos deveres acessórios constitui meta de uma adequada política tributária, do ponto de vista da economicidade e da eficiência, no Brasil a legislação caminha no sentido oposto, elevando o custo de conformidade a patamares talvez nunca vividos neste país.

Com o advento do PIS/COFINS não-cumulativo (e seu acessório, o PIS/COFINS Importação) aliados ao já vetusto ICMS, o Brasil se transformou talvez no único país do mundo a ter dois tributos não-cumulativos (ainda que parcialmente e com uma sistemática diferente) incidentes sobre o processo circulatório de mercadorias e serviços. Esta duplicidade de tributos gera, consequentemente, igual duplicidade de controles de livros de apuração de créditos e débitos, que, no caso, ainda têm princípios inspiradores diferentes: enquanto no ICMS a não-cumulatividade ainda se apóia predominantemente no critério do crédito físico, no PIS/COFINS, a não-cumulatividade dirige-se à receita/despesa pertinente à operação respectiva. O Brasil optou por elevar ao quadrado a complexidade dos sistemas tributários não-cumulativos.

Na esfera estadual, a complexidade é traduzida pela enorme quantidade de Convênios regulando, em matéria de ICMS, sistemática de créditos presumidos, alíquotas, isenções, incentivos fiscais, os mais diferentes regimes especiais, e, sobretudo, mecanismos de substituição tributária, que tornam praticamente impossível o regular cumprimento da legislação tributária por contribuintes que não dispõem de um arsenal de competentes assessores fiscais e contábeis.

  1. c) Objetivo arrecadatório “tout court”.

Por razões de política macroeconômica, o sistema tributário brasileiro tem objetivado exclusivamente a geração de receita, sem qualquer preocupação com a qualidade desta receita, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista de justiça fiscal e da articulação com os demais objetivos da ordem constitucional (como o desenvolvimento nacional, por exemplo).

As opções do governo central têm privilegiado a facilidade arrecadatória em detrimento da qualidade do tributo sob a perspectiva da justiça ou da eficiência econômica. A CPMF constitui exemplo marcante desta afirmação. Apesar de seu efeito deletério para o processo produtivo, pela cumulatividade que é inerente, e pelo seu evidente efeito regressivo, penalizando os menos possuídos, hoje as Finanças Públicas federais têm parcela de seu equilíbrio dependente da CPMF.

Com efeito, tributos cumulativos como a CPMF vêm assumindo importância crescente no sistema tributário. A escalada arrecadatória da CPMF confirma esta assertiva:

  • em 1999: R$ 7,956 bi
  • em 2000: R$ 14,545 bi
  • em 2001: R$ 17,197 bi
  • em 2002: R$ 20,368 bi
  • em 2003: R$ 23,047 bi

Enquanto a arrecadação de CPMF cresce ano a ano, a arrecadação de ITR mantém-se em patamares irrisórios quando se considera a estrutura fundiária brasileira e a histórica ligação entre o poder político e a aristocracia agrária na formação sócio-econômica do Brasil. Afonso e Varsano anotam que a arrecadação nacional de ITR (R$ 189 milhões ou 0,01 do PIB em 2002) é inferior ao montante de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) cobrado apenas na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e a despeito do potencial de arrecadação que tal número indica nenhum ente federativo ou partido político manifesta qualquer interesse em cobrar o ITR.[5]

A facilidade arrecadatória como único viés das Administrações Tributárias no Brasil também se manifesta no ICMS, onde proliferam os mecanismos de substituição tributária, sem qualquer critério, via de regra, com margem agregada artificialmente majorada e sem possibilidade de o contribuinte substituto pleitear a diferença tributária majorada. A não devolução dos créditos de ICMS acumulados pelos contribuintes exportadores conduz a que o Brasil exporte tributo, ao contrário do que se exige de uma política tributária consentânea com um mundo marcado pela globalização comercial. Por útlimo, a incidência excessiva de ICMS sobre energia elétrica, telecomunicações e combustíveis, insumos indispensáveis ao desenvolvimento nacional[6], o que vem transformando o ICMS, sobretudo nos Estados periféricos da Federação, em autêntico imposto seletivo sobre aqueles três insumos.

Evidentemente que estas são apenas algumas das características centrais do sistema tributário brasileiro sob o ponto de vista da arrecadação, o que não afasta a indicação de outras; no entanto, elas permitem identificar algumas das mazelas que merecem ser combatidas, seja no plano político, seja no plano jurídico, com as limitações que lhes são inerentes, tendo em vista a circunstância de que estão na origem do crescimento da carga tributária, matriz do aniquilamento do princípio da capacidade contributiva e do desconhecimento do princípio da vedação ao confisco.

3. Análise da carga tributária

A sociedade brasileira vem sendo submetida a sucessivos aumentos de carga tributária, fator que compromete o crescimento e desestimula o investimento na produção, tendo em vista circunstância de que a maior parte da incidência de tributos recai sobre bens e serviços e muito pouco sobre a renda e  propriedade, o que não deixa de ser curioso em um país marcado pela desigualdade como o Brasil.

A estabilização monetária produzida pelo Plano Real gerou, por si só, um substancial aumento de carga tributária, a qual de 25,78% do PIB em 1993, saltou para 29,75% do PIB em 1994. Ano a ano este índice foi aumentando chegando em 2003 a 35,86% do PIB, segundo previsões oficiais. Adotando-se a metodologia das contas nacionais e de organismos internacionais (como FMI e OCDE) chega-se a uma arrecadação tributária global próxima de R$ 543 bilhões. Com um aumento de mais de R$ 63 bilhões (ou 13,2%) em relação ao ano anterior.[7]

A própria Secretaria da Receita Federal através de estudo técnico atesta que “nos últimos cinco anos, a Carga Tributária Bruta (CTB) brasileira aumentou 6,13 pontos percentuais, passando de 29,74% (1998) para 35,86% (2002). Essa variação corresponde a um crescimento acumulado de 20,6%, ou crescimento anual médio de 3,8%. Em 2002, foi registrado o oitavo recorde consecutivo de pressão fiscal. As receitas tributárias nas três esferas de governo cresceram, em termos reais, 7,57% contra um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 1,52%. Como resultado, a CTB calculada atingiu 35,86% do PIB, com acréscimo de 2,02 p.p. em relação a 2001.”[8]

A definição de carga tributária é obtida a partir da análise da arrecadação tributária total em comparação ao PIB (Produto Interno Bruto), o que, em outras palavras, traduz a parcela do produto interno que é transferida ao setor público através de tributos. O nível da carga tributária indica o custo de financiamento que o Estado impõe à sociedade brasileira.

Característica da carga tributária brasileira é alta concentração de arrecadação em apenas alguns tributos. Em 2003, só o ICMS foi responsável por 22% da carga tributária global, a contribuição sobre folha de salários arrecadou 14,9% do total, o Imposto de Renda ficou com 15,2% do PIB, o COFINS, sozinho, arrecadou 10,6% do total e a contribuição ao FGTS arrecadou 4,6% do montante global.

Estes números mostram que os cinco principais tributos (ICMS, IR, COFINS, contribuição sobre a folha e FGTS) respondem por quase 70% da carga tributária total, o que já permite, no mínimo, indagar a real necessidade de todos os demais tributos existentes no sistema tributário brasileiro, a máquina arrecadatória e o custo de conformidade que os acompanham.

É digno de nota a rota decrescente na arrecadação do IPI, a qual atingia quase 4,5% do PIB nos primeiros anos da instituição do tributo (final do anos 60 e início e início da década de 70) e em 1988 já havia caído pela metade chegando apenas a 2,2% do PIB, patamar que manteve-se até a primeira metade da década de 90, quando iniciou nova queda, atingindo sua menor marca histórica em 2003: 1,2% do PIB.[9]

Grande parte da queda na arrecadação do IPI está no desinteresse da União em fiscalizá-lo tendo em vista a obrigatoriedade constitucional de dividir 57% do total arrecadado com Estados e Municípios (art. 159, I e II).

Outro motivo pode estar nas ações judiciais questionando o direito à utilização do crédito presumido de IPI relativo à aquisição de matérias primas sujeitas à alíquota zero e à regime de não-tributação (NT). Como no final do ano de 2002 (18.12.2002), o Supremo Tribunal Federal reconheceu em sessão plenária[10] o direito dos contribuintes ao cômputo daquele crédito presumido, inúmeras empresas passaram a pleitear judicialmente idêntico direito, obtendo medidas liminares que lhe permitissem reduzir substancialmente o recolhimento de IPI, o que certamente impactou negativamente em 2003 a arrecadação deste tributo. Vale registrar que a questão jurídica ainda pende de solução final no Supremo Tribunal Federal haja vista a interposição de recursos, naquele e em outros processos idênticos, pela Procuradoria da Fazenda Nacional objetivando reverter aquela decisão.

Assumiu relevo em 2003, o montante arrecadado a título de PIS, tributo que historicamente sempre teve uma participação marginal no cômputo total da arrecadação. Com efeito, em 2003 só com o PIS a União Federal arrecadou 1,1% do PIB, o que representa um aumento de mais de 22% em relação ao ano anterior onde se arrecadou com este tributo 0,9% do PIB.

Este aumento na arrecadação do PIS deveu-se à implantação da sistemática não-cumulativa deste tributo, tão almejada pela classe empresarial. Para atender a esta demanda, o Governo Federal implantou a sonhada não-cumulatividade, todavia aumentou em 254% a alíquota do tributo (de 0,65% para 1,65%). A implantação da não-cumulatividade foi utilizada como eficiente instrumento de aumento de carga tributária.

O mesmo fenômeno vem ocorrendo com a implantação do chamado COFINS não-cumulativo. De uma alíquota de 3%, o COFINS (sob a sistemática não-cumulativa) foi aumentado para 7,6%, o que representa, tal como ocorreu com o PIS, um aumento de alíquota da ordem de 254%.

O COFINS é tributo que vem assumindo crescente importância no quadro geral de receitas tributárias. Em 1998, a União Federal arrecadou a título de COFINS 1,93% do PIB, índice que aumentou para 3,84% em 2002, uma majoração de 99% em apenas 4 anos.

A exemplo do que ocorreu com o PIS, a implantação da não-cumulatividade do COFINS vem gerando um substancial acréscimo de arrecadação. Apenas no mês de junho de 2004, o governo federal arrecadou R$ 7,18 bi contra R$ 6,84 bi em maio do mesmo ano, um aumento de 10,5 % em apenas um mês do ano. Quando se compara com o mês de junho de 2003, o aumento de arrecadação chega a assustadora marca de 50%. Isso mesmo, o Governo Federal aumentou a arrecadação de COFINS em 50% em apenas um ano. E pior: atendendo a um pleito geral de não-cumulatividade tributária.

Informação relevante para a análise da carga tributária global brasileira, e que quase nunca é considerada nas estatísticas oficiais, talvez pela dificuldade de consolidação de informações e uniformização de critérios de atualização, é o montante de créditos tributários objeto de parcelamentos, de cobrança pelos Fiscos e Procuradorias estaduais ou com exigibilidade suspensa, com julgamento pendente administrativa ou judicialmente.

Segundo dados da própria Secretaria da Receita Federal o estoque de débitos de contribuintes apurados pela Administração Tributária Federal em maio de 2004, sob a rubrica de “Passivos Tributários”, era de R$ 316,974 bi, sendo 19,44% em saldo de parcelamentos, 23,94% em débitos em cobrança na Receita Federal e 56,62% em débitos com exigibilidade suspensa (em julgamento e subjudice). Vale registrar que este montante não contempla os valores já inscritos na Dívida Ativa da União em cobrança pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN.

Segundo a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, até março de 2004, havia entre ações de execução fiscal ajuizadas e não ajuizadas créditos tributários no montante de R$ 225,746 bi. Em outras palavras, o Fisco Federal brasileiro afirma ser credor da sociedade brasileira, sem contar os créditos tributários arrecadados e administrados pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, do montante de R$ 542,720 bi.

Para se ter uma idéia do que representa esse número, é interessante compará-lo com a arrecadação conseguida pela Secretaria da Receita Federal durante todo o ano de 2003: R$ 273,358 bi. Vale dizer, há uma “carga tributária oculta” nos computadores da Secretaria da Receita Federal e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional que é quase duas vezes superior ao montante arrecadado por este órgão durante todo o ano de 2003.

Considerando o fato de que a União Federal foi responsável em 2003 por 69% da carga tributária total e admitindo-se, por força da presunção de validade das leis e dos atos administrativos, que os créditos tributários epigrafados como “Passivos Tributários” pela Receita Federal e inscritos na Dívida Ativa pela PGFN sejam realmente devidos ao Fisco Federal e por ele arrecadados, certamente a carga tributária brasileira superaria os 50% do PIB.

Esta análise numérica demonstra que a pressão tributária sobre a sociedade brasileira é bem maior do que os 35,8% do PIB que vem alarmando a todos e denota também uma ruidosa resistência de contribuintes em adimplir suas obrigações tributárias, seja simplesmente não recolhendo o que determinam as regras tributárias, sujeitando-se aos lançamentos por parte das autoridades fazendárias e à discussão administrativa e judicial da validade dos mesmos, seja, preventivamente, questionando no Poder Judiciário a legalidade e/ou constitucionalidade das normas tributárias impositivas.

Este quadro – lamentável – é mais um elemento de desestabilização na já abalada relação entre Fisco e contribuinte, pautada pelo absoluto desrespeito e desconfiança, manifestados pelo lado do contribuinte, com o nível crescente de desafio (institucional ou não) das normas tributárias, e no que tange ao Fisco, pela legislação draconiana (com alguns setores, menos influentes politicamente) e pela prestação de um serviço público que, em alguns setores, chega a constituir mera ficção ou potencialidade, dada a inexistência ou precariedade.

A distribuição da carga tributária por base de incidência mostra à saciedade a absoluta falta de planejamento neste setor da Administração Pública. O que se deve esperar de um país como o Brasil em que a única saída (para promoção da inclusão social) está no crescimento e que tem uma das mais altas taxas de concentração de renda do mundo? Estímulo fiscal à produção e ao emprego e taxação da renda e do patrimônio. No entanto, a distribuição da carga tributária é exatamente oposta a estes objetivos.

Em 2003, os tributos incidentes sobre bens e serviços (IPI, ICMS, COFINS, PIS-PASEP, Contribuições econômicas, inclusive CIDE e ISS) foram responsáveis por 44% da carga tributária global, sendo que 18,8% deste total derivaram de tributos cumulativos (COFINS, PIS-PASEP, contribuições econômicas e ISS). Salários e mão-de-obra (Contribuição sobre a folha para o INSS, sistema S, salário educação, FGTS e contribuição dos servidores das três esferas) foram responsáveis por 23,7% da carga tributária global. Vale dizer, a produção e o trabalho sozinhos arcaram com 67,7% da carga tributária total do país.[11]

Por outro lado, rendas, lucros e ganhos (IR, CSL e IR retido na fonte por Estados e Municípios) foram responsáveis apenas por 19,6% do total arrecadado, enquanto que com os tributos sobre o patrimônio o Poder Público obteve apenas 2,4% daquele total. Vale dizer, renda e patrimônio arcaram com apenas 22% do montante global arrecadado pelo Poder Público,[12] o que, a nosso sentir, indica a necessidade de alteração no viés arrecadatório do sistema tributário brasileiro. Qualquer reforma tributária que se pense para este país deve considerar a necessidade de inversão da relação entre a tributação da produção e do trabalho x renda e patrimônio.

4. Capacidade contributiva e receita

Um dos instrumentos utilizados pelo Governo Federal para promover o aumento de receita vem sendo o direcionamento dos tributos federais para a materialidade “receita”, haja vista a ampliação de contribuições incidentes sobre a receita.

Vale notar que a opção do Governo Central de reforçar os cofres através de contribuições deve-se a um objetivo pragmático, qual seja, ter para si a totalidade da receita das contribuições arrecadadas, sem necessidade de dividi-las com outras unidades federadas (haja vista o art. 157, II da Constituição Federal que determina a entrega pela União Federal aos Estados de vinte por cento apenas dos novos impostos que criar no âmbito da competência residual), manifesta fraude à Constituição que conta com o obsequioso silêncio dos Governadores de Estado.

A premissa de todo sistema tributário articulado segundo os princípios decorrentes do Estado de Direito repousa no atendimento ao princípio da capacidade contributiva, o qual, independentemente da variação conceitual que se lhe atribua, exige que os tributos apenas podem incidir sobre realidade econômica que denote a aptidão de alguém (contribuinte) a concorrer ao financiamento do gasto público. Fatos sem conteúdo econômico ou realidades fenomênicas (situações, estados de fato) que não denotem a aptidão de alguém (vinculados àquelas realidades) para contribuir não podem ser objeto de incidência tributária.

Com efeito, como ensina a doutrina, o pressuposto tributário deve a) ser fato ou situação que possua um preciso e inequívoco valor econômico e b) preencha os requisitos de atualidade e efetividade.[13] O primeiro exclui a arrecadação tributária antecipada sobre fatos ainda não realizados, bem como  na presença de elementos que permitam presumir a não-realização do fato imponível em um futuro próximo ou de circunstâncias que dificultem a imediata devolução do montante tributário antecipado pelo sujeito passivo. A efetividade alude ao afastamento de incidências tributárias fundadas em bases de cálculo presumidas irrazoavelmente.

Em outras palavras, a capacidade contributiva é princípio que impõe a observância pelo legislador “daquilo que realmente ocorre”, embora não seja incompatível com os regimes de antecipações e presunções, desde que estas estejam apoiadas na realidade. À luz das exigências do princípio da capacidade contributiva, é pressuposto de validade da incidência tributária a conexão material e temporal entre o fato captado normativamente (descrito hipoteticamente na norma jurídica) e o fato efetivamente ocorrido.

O princípio da capacidade contributiva também representa limite à validade de uma singela prestação tributária quando visualizada no contexto do sistema tributário global. Com efeito, verifica-se ofensa àquele princípio todas as vezes que o mesmo fato econômico é captado por uma pluralidade de tributos sendo que o encargo tributário global sobre aquele fato, ao final, torna-se exorbitante em relação aos meios que ele permite fornecer, enquanto denotador da aptidão do sujeito para contribuir.[14] Esta distorção gera, a nosso sentir, uma desconexão racional pois, em flagrante ofensa à racionalidade que deve nortear a ordem jurídico-tributária, um mesmo índice de capacidade contributiva é hiperonerado, desqualificando-o como tal.

Constitui ainda exigência do princípio da capacidade contributiva a necessidade de que a incidência tributária recaia apenas sobre aquele que é titular da fonte de riqueza captada pela norma tributária, de modo a se exigir deste sujeito (e não de qualquer outro), a título de tributo, uma parcela da riqueza manifestada. Indispensável, assim, a conexão subjetiva entre aquele que manifesta a capacidade contributiva e o sujeito legalmente obrigado ao recolhimento tributário.

A excessiva sobreposição de incidências tributárias no Brasil sobre a “receita” das pessoas jurídicas vem causando uma séria de problemas relacionados ao atendimento da capacidade contributiva.[15]

Não se nega que “receita” é índice de capacidade contributiva, isto é, fato dotado de força econômica, revelador da aptidão para contribuir. No entanto, as incidências tributárias sobre tal materialidade para se afigurarem constitucionais perante aquele princípio devem observar as necessárias conexões (material, temporal e subjetiva) supra indicadas.

A nosso sentir, várias são as hipóteses em que o princípio da capacidade contributiva vem sendo inobservado pela tributação sobre receita:

  1. receitas não realizadas. A sistemática de apuração de tributos da pessoa jurídica no Brasil funda-se, como regra geral, no princípio da competência, o que gera distorções quando se está diante de imposição tributária sobre receita, já que uma receita de venda, por exemplo, deve ser oferecida à tributação no momento de definição do negócio jurídico, mas em termos efetivos, somente agrega ao patrimônio do sujeito em momento futuro (quando do recebimento). Logo, o Fisco arrecada um tributo fundado em uma manifestação de capacidade contributiva não realizada, o que obriga o contribuinte a antecipar um tributo sobre uma relação de riqueza, a rigor, ainda presumida.

Há, a rigor, uma presunção de que a receita registrada e oferecida, desde logo, à tributação, será realizada em curto espaço de tempo pelo contribuinte. No entanto, há circunstâncias fáticas que permitem presumir exatamente o contrário, ou seja, a não realização, a curto prazo, daquela receita. Vale dizer, há situações em que a desconexão temporal entre o momento de captação do fato econômico pela norma tributária (momento do faturamento, por exemplo) e o momento da realização fenomênica daquele fato é evidente ou fortemente provável.

Com efeito, há setores econômicos onde a inadimplência é historicamente registrada, sendo apurada e atestada por instituições de absoluta credibilidade ou, por outro lado, há determinadas operações onde a inadimplência já está atestada e reconhecida pelo devedor (caso de empresas em concordata ou em falência). Nestas hipóteses, a presunção que se estabelece em favor do imediato oferecimento à tributação da receita, em face do princípio da competência, inverte-se, ou seja, passa a militar em favor do contribuinte uma presunção de que aquela manifestação de capacidade contributiva não se realizará, o que autoriza a não tributação da receita respectiva ou da exclusão da mesma da apuração da base de cálculo tributável, se já foi oferecida à tributação no passado, de modo a recompor a situação de desconformidade originada da presunção legal não realizada.

Na ausência de norma legal que regule esta desconexão temporal, o princípio da capacidade contributiva assume plena aplicabilidade, o que não traz qualquer lesão para o Fisco o qual deve obediência estrita àquele princípio. Nem se diga, da mesma forma, que tal atitude do contribuinte não teria base legal já que o contribuinte não necessita de norma legal que lhe autorize a tributar somente a receita que é real, existente e efetiva: esta é uma faculdade que já lhe é autorizada pelo princípio da legalidade iluminado pelo princípio da capacidade contributiva. O Fisco, sim, necessita de norma de competência que lhe permita tributar antecipadamente, por presunção, receita ainda não realizada.

Nunca é demais lembrar que a legalidade é instrumento de que necessita a Administração para agir, não o contribuinte. Este deve pautar sua conduta pela ampla esfera de liberdade que lhe assegura o ordenamento, podendo agir dentro do amplo rol de condutas que não lhe são impostas ou vedadas pelo ordenamento.

No Estado de Direito, a legalidade representa o comprometimento positivo do administrador público, diferentemente do comprometimento negativo que inspira a conduta dos indivíduos. Com efeito, Eros Roberto Grau observa que

“Afirmar-se simplesmente que, sob o regime de Direito Público, a Administração está sujeita ao princípio da legalidade, nada significa, eis que o mesmo princípio permeia toda a atuação dos agentes privados, em regime de Direito Privado. Pois não é justamente a consideração a consideração dos diversos conteúdos que as doutrinas do comprometimento positivo (positive Bindung) e do comprometimento negativo (negative Bindung) atribuem ao princípio que ordinariamente leva a, com singeleza didática, apontamos a distinção entre os universos do Direito Público e do Direito Privado – no primeiro se pode fazer o que a lei permite; no segundo, o que a lei não proíbe. Se pretendermos, portanto, relacionar o princípio da legalidade ao regime de Direito Público, forçoso seria referirmo-lo, rigorosamente, como princípio da legalidade sob conteúdo de comprometimento positivo.”[16]

Assim, na presença da aludida desconexão temporal, ofendido estará o princípio da capacidade contributiva a autorizar a recomposição da mesma pelo contribuinte.

  1. b) Repasse. Fenômeno comum também nas incidências tributárias sobre receita é o descompasso entre o sujeito eleito pela norma tributária para suportar o encargo tributário e aquele a quem, na realidade, pertence a fonte geradora da riqueza, denotativa da capacidade contributiva alcançada pelo legislador tributário, ou seja a receita. É o caso das hipóteses de “repasse de receitas”, onde um agente do ciclo econômico, por características próprias da operação ou do negócio jurídico celebrado, assume o ônus de receber de alguém receita que é de titularidade não sua, mas de terceiro.

Nestas hipóteses, o “agente arrecadador” não adquire em qualquer momento a titularidade definitiva dos recursos arrecadados; o trânsito destes recursos pelo seu patrimônio configura mera exigência contratual, marcada pela temporariedade; tal entrada financeira em nada agrega ao patrimônio do agente, a permitir que o Direito Tributário possa considerar esta situação um fato denotador de capacidade contributiva, apta a ser objeto de tributação pelos vários tributos incidentes sobre receita.

É preciso considerar que os lançamentos contábeis correspondentes às entradas e saídas de recursos do patrimônio das empresas devem espelhar os negócios jurídicos subjacentes às operações respectivas. A compreensão adequada das hipóteses tributárias incidentes sobre a receita, iluminada pelas exigências do princípio da capacidade contributiva, deve inelutavelmente considerar a natureza do negócio jurídico subjacente, tendo em vista a circunstância de que somente assim poder-se-á estabelecer a conexão subjetiva entre o agente que revelou aptidão contribuir e o fato jurídico captado pela norma tributária.

Portanto, nos quadrantes da hipótese ora analisada, estar-se-á diante de ofensa ao princípio da capacidade contributiva sempre que houver desconexão subjetiva, ou seja, em todas as situações que a imposição recair sobre sujeito que não tem juridicamente a titularidade da receita tributada, em razão de negócio jurídico previamente celebrado pelas partes ou da natureza do ciclo econômico respectivo.

  1. c) Hiperoneração. Hipótese possível de ofensa ao princípio da capacidade contributiva ocorre também através da sobreposição excessiva de incidências tributárias sobre a receita, gerando uma desconexão racional entre a “receita” como potencial índice de capacidade contributiva e a possibilidade real, concreta de tal materialidade ser denotativa de efetiva capacidade para contribuir do sujeito que dela é titular.

O Brasil assiste a uma excessiva imposição tributária sobre a receita. No ano de 2003, a tributação direta sobre a receita correspondeu sozinha a 15,1% da carga tributária total do país, considerando apenas o COFINS (10,6%), PIS (3%) e ISS (1,5%). Este índice aumenta consideravelmente se considerarmos também outros tributos que incidem também sobre receita, mas que tem seu efeito econômico transladado (total ou parcialmente para o adquirente final de bens e serviços), ICMS (22%) e IPI (3,3%) ou que incidem sobre a receita de operações especiais, como as contribuições de intervenção no domínio econômico (FUST, FUNTEL, por exemplo).

Esta hiperoneração pode gerar ofensa à capacidade contributiva quando as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto permitirem identificar um esgotamento da aptidão para contribuir tomando como índice a “receita”. Não é racional, nem compatível com a ordem jurídica, que o contribuinte tenha que invadir parcela do seu patrimônio para adimplir obrigação tributária surgida a partir da tributação da receita quando as razões concretas (margem de lucratividade em relação à receita auferida, condições específicas de mercado ou outros elementos) permitirem concluir que a incidência sobre receita transformou-se, de fato, em imposição sobre o patrimônio.

A desconexão racional entre o fato indicativo de capacidade contributiva e a efetiva aptidão para contribuir ocorre, assim, nas hipóteses de hiperoneração de uma mesma base imponível, atendidas as circunstâncias peculiares de cada caso.

À luz do mandamento da capacidade contributiva, a possibilidade de tributação da receita não deve negligenciar o princípio de que no âmbito da fiscalidade das empresas somente existe uma fonte impositiva: o acréscimo patrimonial por ela obtido e acumulado. Como ensina Klaus Vogel, todos os impostos (prestações pecuniárias) que existem e que existiram – independentemente de sua denominação e o do objeto imponível mencionado pelo legislador – são diversas manifestações do gravame sobre a renda (acumulada). Por conseguinte, só existe uma fonte impositiva: a renda acumulada. O legislador sempre se nutre desta fonte por mais que invente novos impostos.[17]

Em outro dizer, salvo quando constitucionalmente se delibera pela existência de um imposto sobre o patrimônio, o qual também deve ter limites sob pena de não comprometer o direito de propriedade, a ordem tributária não pode alcançar renda já consolidada, isto é, o patrimônio, o que pode ocorrer com a hiperoneração de uma mesma base imponível, como vem ocorrendo com a receita das empresas no Brasil. Esta desconexão racional traduz inegável ofensa ao princípio da capacidade contributiva.

O Supremo Tribunal Federal já enxergou na hiperoneração de uma mesma base imponível “efeito confiscatório” vedado pela Carta Política, ao decidir que “resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.”[18]

Seja através da vedação ao confisco, seja através do princípio da capacidade contributiva, o essencial é afirmar a vinculação jurídica do Estado Brasileiro à máxima da razoabilidade na definição das características e dos níveis das diferentes imposições tributárias, sobretudo quando são sobrepostas à mesma base imponível.

4. Conclusão.

A carga tributária brasileira vem assumindo proporções nunca vividas pelo Brasil republicano. A complexidade, a instabilidade e o puro objetivo arrecadatório têm marcado a atuação do Estado Brasileiro na esfera tributária. É notória, da mesma forma, a completa ausência de planejamento na definição dos rumos da política tributária, definidos ao sabor das conveniências e da capacidade de pressão institucional de setores politicamente organizados, bem como da necessidade conjuntural de arrecadação.

No quadro das receitas tributárias, destaca-se a imposição sobre a receita das empresas, fenômeno que pode concretamente causar lesões ao princípio da capacidade contributiva em razão das possíveis desconexões temporal, material, subjetiva e lógica entre o índice de capacidade contributiva eleito pelo legislador (receita) e a efetiva aptidão para contribuir demonstrada pelo sujeito que é titular daquela revelação de riqueza.

Contra o aumento de carga tributária, o direito dispõe de comandos limitadores como o princípio da capacidade contributiva e da vedação ao efeito confiscatório. Estes instrumentos jurídicos, no entanto, têm uma eficácia restrita, dada a complexidade das questões tributárias em um Estado Federal como o Brasil, bem como as condições macroeconômicas débeis do país.

Sob a perspectiva não-jurídica, como conclui Ives Gandra da Silva Martins, “os governos da Federação Brasileira têm que compreender que burocracia é útil para burocratas, mas um fantástico sorvedouro de tributos e um pesadelo para a sociedade, que não consegue crescer, em face de considerável parte dos recursos que poderiam ser aplicados na geração de empregos e no crescimento econômico ser desperdiçada na multiplicação de cargos, funções e exigências desnecessárias.”[19]

 

[1] A exemplo do que ensina Eros Roberto Grau (Planejamento econômico e regra jurídica. RT: São Paulo, 1978, p. 65) relativamente ao planejamento econômico, sob a perspectiva do fenômeno tributário, planejamento é a forma de ação estatal, caracterizada pela previsão de comportamentos econômicos e sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de meios de ação coordenadamente dispostos, mediante o que se pretende ordenar o processo econômico, para melhor funcionamento da ordem social, em condições de mercado.

[2] “Dívida do governo federal cresce quase R$ 10 bi em junho. A dívida líquida do governo federal em títulos somou R$ 758,2 bilhões em junho. Em comparação à maio, quando a dívida era de R$ 748,38 bilhões, houve aumento de 1,31%. Os dados foram divulgados esta manhã pelo Banco Central e pelo Tesouro Nacional. (Folha online 21/07/2004 – 10h48).

[3] Tributação da renda no Brasil pós-Real. Ministério da Fazenda – Secretaria da Receita Federal, novembro 2001, p. 56.

[4] Id. Ibidem.

[5] AFONSO, José Roberto Rodrigues e VARSANO, Ricardo. Reforma tributária: sonhos e frustrações. Reformas no Brasil: balanço e agenda. Orgs. Fábio Giambiagi, José Guilerme Reis e André Urani. São Paulo: São Paulo, 2004, p. 294-295.

[6] No ano de 2002, segundo dados oficiais (Secretaria da Receita Federal, Estudos Tributários 11, ob. cit., p. 6), 40% da arrecadação total de ICMS derivou da tributação de combustíveis, telecomunicações e energia elétrica.

[7] AFONSO, José Roberto Rodigues e ARAÚJO, Érica Amorim. Cresceu a carta tributária em 2003 (reestimada com base no montante do PIB divulgado pelo IBGE ao final de março de 2004). mimeo, p. 1.

[8] Secretaria da Receita Federal. Estudos tributários 11. Carga Tributária no Brasil – 2002, Brasília, abril, 2003.

[9] AFONSO, José Roberto Rodrigues e ARAÚJO, Érica Amorim. A carga tributária brasileira: evolução histórica e principais características, mimeo, p. 10-11.

[10] Recurso Extraordinário nº 350.446-PR. No momento em que se escreve este artigo (03.08.2004) aguarda-se o julgamento dos Embargos de Declaração interpostos pela União Federal.

[11] AFONSO e AMORIM. Cresceu … Ob. cit. p. 9.

[12] Id. Ibidem.

[13] RUSSO, Pasquale. Manuale di diritto tributario. Giuffrè: Milano, 2002, p. 54-56.

[14] RUSSO (Ob. cit. p. 56-57) afirma que “L’ulteriore esigenza che intendiamo evidenziare attiene invece alla valutazione della singola prestazione impositiva nell’ambito del sistema tributário vigente, essendo possibile ravvisare uma violazione del principio do capacità contributiva tutte le volte che il medesimo fatto economico risulti assoggettato ad uma pluralità di tributi, com il risultato che il carico tributario globale su di esso gravante finisce per incidere in misura esorbitante quanto ai mezzi che è in grado a fornire.”

[15] Afasto a discussão, alimentada por alguns, sobre a suposta inaplicabilidade do princípio da capacidade contributiva às contribuições. Assim procedo em razão da minha crença absoluta no artigo 1º da Carta da República segundo o qual o Brasil é um Estado Democrático de Direito, já que imunizar as contribuições do atendimento às exigências do princípio da capacidade contributiva seria admitir que a Carta abriu a porta ao arbítrio do legislador em matéria de contribuições, exegese incompatível com aquela solene estatuição constitucional.

[16] A Ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica).  8ª. Ed. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 103.

[17] VOGEL, Klaus. Moral tributaria del estado y de los contribuyentes. Trad. Pedro M. Herrera Molina. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 32.

[18] ADC 8 – MC, rel. Min. Celso de Mello, DJU 04.04.2003, p. 38.

[19] O inferno tributário brasileiro. Valor Econômico, B2, 05. 08.2004.