O direito ao silêncio no direito tributário

“O direito ao silêncio no direito tributário”, in “TRIBUTOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS”, São Paulo, Dialética, 2004, p. 81-93, obra coletiva coordenada por Octávio Campos Fischer.

 

1. Posição da questão

A garantia contra a auto-incriminação constitui uma conquista dos povos ocidentais. O silêncio do acusado, melhor seria dizer do imputado, representa instrumento de defesa contra acusações que possam representar restrições aos direitos e liberdades individuais. Por outro lado, o sujeito passivo da obrigação tributária tem o dever de colaborar com as autoridades fiscais na busca da verdade material relativamente à ocorrência dos fatos que constituem o suporte fático da hipótese de incidência tributária aos quais muitas vezes estão ligados tipos criminais, os assim denominados “crimes contra a ordem tributária”.

Diante disso, pergunta-se: como compatibilizar o direito ao silêncio, representado pela garantia contra a auto-incriminação com o dever de colaborar com as autoridades fiscais na identificação dos fatos geradores tributários quando esta colaboração puder redundar na imputação de conseqüências deletérias na esfera criminal? É válido constitucionalmente considerar a não prestação de informações fiscais como crime contra a ordem tributária, quando esta conduta justificar-se no direito ao silêncio ou garantia contra a auto-incriminação?

2. Estado de Direito, direitos fundamentais e poder de tributar.

O Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, com esta assertiva J.J. Gomes Canotilho resume o Estado de Direito[1]. Com efeito, os direitos fundamentais representam o instrumento de realização concreta do processo de juridicização das relações entre o Estado e contribuinte no mundo contemporâneo.

O Estado de Direito é o Estado da lei e da justiça (fim último do Direito) e os direitos fundamentais consubstanciam a aspiração de justiça imanente nas sociedades modernas. Embora nela não esgote a sua função, a defesa das liberdades individuais perante o poder estatal representa o núcleo intangível da idéia de direitos fundamentais.

Os Estados ocidentais contemporâneos caracterizam-se, em grande medida, pela carência de recursos e pelo excesso de demandas sociais relativas à promoção de políticas públicas destinadas à atenuação das desigualdades sociais e à criação de ambiente econômico saudável para o desenvolvimento.

Neste sentido, o poder de tributar assume destaque entre as potestades estatais emanadas da soberania. É através do tributo, e do exercício daquele poder, que o Estado consegue recursos para fazer face às necessidades sociais e aos compromissos políticos que assume perante a sociedade, relativamente aos investimentos públicos.

Ocorre que na lição de Ricardo Lobo Torres o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade, representa o preço que os indivíduos pagam para poder exercer a sua liberdade, daí porque, segundo aquele autor, “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la.”[2]

Justamente pelo caráter “dramático” da relação entre indivíduo e Estado, enquanto ente tributante, é que a aplicação dos direitos fundamentais na relação jurídico-tributária assume indiscutível relevo. Com efeito, a crescente invasão do Estado sobre a esfera das liberdades individuais em busca de recursos tributários torna indispensável a construção de uma doutrina que reconheça nos direitos fundamentais a proteção necessária contra as agressões às liberdades individuais.

Exemplo da apontada dramaticidade é a relação dialética entre o chamado dever de colaboração do contribuinte com o Estado, no exercício da função fiscalizatória, e o direito fundamental ao silêncio ou direito a não auto-incriminação.

É sabido que o descumprimento de normas tributárias conduz a aplicações de sanções, as quais, no Brasil, assumem, hodiernamente, caráter draconiano que podem conduzir até ao completo aniquilamento da unidade econômica subjacente ou mesmo à perda de liberdade dos responsáveis tributários. Neste sentido, necessária é a harmonização do dever de colaboração com o Fisco com a garantia contra a auto-incriminação.

Além das penalidades de caráter pecuniário, há atualmente no sistema jurídico brasileiro leis disciplinando tipos penais cuja origem radica no descumprimento de prestações de natureza tributária (os chamados crimes contra a ordem tributária), o que torna imprescindível a extensão das garantias processuais penais também à relação jurídico-tributária.

Se o descumprimento de um dever tributário, cuja natureza primordial é exclusivamente patrimonial, pode desencadear conseqüências na esfera penal, onde o bem jurídico protegido é a liberdade, é natural, necessário, e indispensável estender-se à relação jurídico-tributária todos os direitos fundamentais relativos à garantia do acusado contra as imputações gravosas que a ele são dirigidas.

3. Direito ao silêncio no direito comparado.

O direito ao silêncio como prerrogativa do indivíduo acusado de alguma imputação que ponha em risco a sua liberdade encontrou consagração positiva na V Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América de 1791 (“No person… shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of live, liberty, or property, without due process of law; …”).[3]

No direito anglo-saxão o direito ao silêncio é entendido como uma prerrogativa contra a auto-incriminação (privilege against self-incrimination), autêntica cláusula de defesa perante o Estado, quando este se investe de poderes investigatórios e acusatórios que põem em risco a liberdade individual.

No direito norte-americano, o direito a permanecer calado foi originariamente concebido para proteger dissidentes religiosos da obrigação de proferir juramentos de obediência à religião dominante. Mais recentemente, tal direito tem sido entendido como um instrumento a prevenir tortura ou confissões forçadas. Em um dos mais controversos julgamentos (Miranda v. Arizona), a Suprema Corte norte-americana decidiu que uma confissão é considerada coercitiva se é obtida depois de o acusado ter manifestado o desejo de permanecer calado ou na hipótese de o agente policial não informar o suspeito do seu direito de permanecer calado e do seu direito de ser levado a julgamento.[4]

Interessante observar a estreita ligação na V Emenda à Constituição norte-americana entre o privilege against self-incrimination e a garantia do due process of law, ambos instrumentos de defesa da liberdade individual perante o Estado. Na realidade, a garantia contra a auto-incriminação constitui um desdobramento necessário do devido processo legal, vetusta garantia individual contra o arbítrio estatal.

Importante registrar ainda que todas as provas obtidas em desatendimento ao direito ao silêncio do indivíduo não poderão ser utilizadas como elementos de prova no processo criminal, pois constituem o que se convencionou denominar fruits of the poisonouis tree (frutos da árvore envenenada).

Vale notar que a V Emenda a Constituição norte-americana protege apenas o indivíduo de ser obrigado a depor contra si próprio, mas não contra outros indivíduos, como ressalta James B. Jacobs.[5]

O direito continental europeu também consagra o direito ao silêncio ou garantia contra a auto-incriminação, sob a fórmula nemo tenetur se detegere que, segundo Vittorio Grevi, constitui o diferencial entre uma concepção mais autoritária e uma concepção liberal do processo haja vista a sua repercussão sobre a liberdade pessoal do imputado (imputato).[6]

Vittorio Grevi acentua que o exercício do direito ao silêncio não pode traduzir-se em prejuízo para o indivíduo (conseguenze contra reum) seja no que tange ao mérito da controvérsia, seja no que tange a medidas processuais cautelares.[7] No Direito italiano, diferentemente do direito norte-americano, ainda na lição desse autor, o direito ao silêncio é reconhecido ao imputado quer se trate de ato próprio, quer se trate de ato de terceiro. Logo, no direito italiano o alcance da garantia é substancialmente maior do que no direito norte-americano, berço do privilege against self incrimination.

No Direito internacional também o direito ao silêncio representa uma garantia fundamental. Neste sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Organização das Nações Unidas em 1966, assegura a toda pessoa acusada o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a se confessar culpada (art. 14, 3, “g”).[8]

O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), aprovado pela Organização dos Estados Americanos em 1969, também garante a todo acusado o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a se declarar culpado (art. 8º, II, g).[9]

Portanto, a garantia contra a auto-incriminação representa um direito humano fundamental, autêntica conquista da civilização ocidental, contra o poder estatal no exercício da persecução penal.

4. Direito ao silêncio no direito constitucional brasileiro.

O direito constitucional brasileiro alinha-se na tradição ocidental no sentido de assegurar ao imputado o direito de permanecer calado quando qualquer manifestação sua possa acarretar prejuízos à sua liberdade. Neste sentido, o artigo 5º, LXIII da Constituição Federal de 1988 garante ao preso o direito ao silêncio.

Como se não bastasse tal declaração expressa, e para afastar quaisquer interpretações restritivas quanto ao alcance de tal garantia constitucional (tendo em vista a circunstância de que o texto constitucional utiliza a expressão “preso”), o artigo 5º, § 2º da Constituição Federal determina que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte” e conforme retro exposto a garantia contra a auto-incriminação é assegurado em pelo menos dois tratados internacionais já reconhecidos internamente pelo Brasil: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Neste sentido, Guilherme de Sousa Nucci afirma que “é preciso dar ao termo ‘preso’ uma interpretação extensiva para abranger toda pessoa indiciada ou acusada da prática de um crime, pois se o preso possui o direito, é evidente que o réu também o tenha. O direito ao silêncio é formulado, constitucionalmente, sem qualquer condição ou exceção, de modo que não pode o legislador limitá-lo de qualquer maneira.”[10]

O direito ao silêncio representa uma garantia de alçada constitucional que independe da consagração legal e não pode ter seu alcance restringido por legislação infraconstitucional que amesquinhe o seu conteúdo axiológico, marcadamente libertário. Por tal razão, Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Maurício Zanoide de Moraes afirmam que “as limitações decorrentes da aplicação dos arts. 186, 2ª parte[11], e 198[12], ambos do CPP, são inconstitucionais porque limitam o silêncio até mesmo nos momentos em que seu exercício é garantido pelo art. 5º, LXIII, da CF.”[13]

E assim concluem os referidos autores: “sendo assim, a 2ª parte do art. 186 do CPP (…o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa), bem assim o art. 198 do mesmo diploma (o silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz) não mais prevalecem, a partir da promulgação da CF/88, por representarem uma limitação a direito público subjetivo constitucional. Insista-se, lei inferior (CPP) não pode limitar o que lei superior (CF) não quis fosse limitado”.[14]

Vale dizer, o exercício do direito ao silêncio não poderá traduzir-se em gravame para a esfera de liberdade do indivíduo que opta por utilizar-se desta garantia constitucional para impedir que contra ele sejam dirigidas imputações de caráter penal.

Em conclusão: o exercício do direito ao silêncio não pode trazer em seu bojo conseqüências deletérias à esfera jurídica daquele que titular deste direito, exerceu-o nos limites do assegurado constitucionalmente. Em suma: o silêncio não pode gerar efeitos jurídicos adversos de qualquer espécie (materiais ou processuais) à liberdade do imputado.

5. Posição da jurisprudência.

Não são poucos os precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal reconhecendo o direito ao silêncio como um direito público subjetivo de todos os indivíduos submetidos a processos que conduzam à imputação de medidas restritivas de direitos e liberdades individuais:

“Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal, e nesse direito ao silêncio inclui-se até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal. (STF, HC n. 68929/SP, rel. Min. Celso de Mello).

O alcance amplo de tal garantia constitucional também resta definido na Jurisprudência do Pretório Excelso, no sentido de reconhecer o direito ao silêncio não apenas ao preso (como uma interpretação literal da Constituição Federal poderia concluir), mas “a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário”, “verbis”:

“COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO – DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA – IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA – PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO.

O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

 O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes.

O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado.

Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.”

(HC 79812, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

No Superior Tribunal de Justiça, também encontram-se manifestações judiciais reconhecendo o direito ao silêncio como garantia constitucional:

“RHC. Constitucional. Processual Penal. Indiciado. Acusado. Silêncio. O indiciado, ou o acusado não pode ser compelido a trazer elementos para a sua condenação. Tem o direito a “permanecer calado”. (CF, art. 5º, LXIII).”(RHC n. 6.756/SP, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro)

O desatendimento do “direito ao silêncio”, conduz à completa nulidade do procedimento de imputação conduzido pela autoridade, como reconhece a Jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal:

“HABEAS CORPUS. JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. LEI Nº 9.099/95. ART. 72. AUDIÊNCIA PRELIMINAR. DESNECESSIDADE DE OFERECIMENTO PRÉVIO DA DENÚNCIA. DECLARAÇÕES DO ACUSADO. DIREITO AO SILÊNCIO.

  1. O comparecimento do paciente ao Juízo para a audiência preliminar não depende do oferecimento de denúncia, mas, como é próprio do sistema dos Juizados Especiais Criminais, ocorre antes dela. As declarações prestadas pelo paciente nessa audiência não se confundem com o interrogatório de que trata o art. 81, caput da mencionada lei. 2. Não tendo sido o acusado informado do seu direito ao silêncio pelo Juízo (art. 5º, inciso LXIII), a audiência realizada, que se restringiu à sua oitiva, é nula. 3. Pedido deferido em parte.” (HC 82463,
    Rel. Min. ELLEN GRACIE).

Esta exegese ampla do direito ao silêncio conduz inexoravelmente ao juízo de inconstitucionalidade da parte final do artigo 186 do Código de Processo Penal, norma que imputa conseqüência jurídica negativa ao exercício do direito ao silêncio:

“O privilégio contra a auto-incriminação – nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. – importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou não.”

(HC 80949-RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE)

Ainda sobre a inconstitucional norma constante da parte final do artigo 186 do Código de Processo Penal, lembra Guilherme de Sousa Nucci que “aceitar-se a advertência tal como prevista no art. 186 [do CPP] é negar-se vigência ao texto constitucional, visto que os réus não se atreverão a valer do direito ao silêncio, que implicaria, na prática, em sérias conseqüências, a principal delas é proporcionar ao julgador argumentos para usar em eventual sentença condenatória, afirmando que o réu calou, logo, é culpado, num silogismo superado nitidamente pelo tempo e pela prova de que a necessidade de permanecer calado, muitas vezes, é uma conseqüência natural para pessoas frágeis, emocionalmente perturbadas ou sem a devida assistência jurídica.”[15]

6. Direito ao silêncio no Direito Tributário

6.1. Legalidade e dever de prova

O Direito Tributário, a exemplo do Direito Penal, apóia-se no princípio da legalidade, consagrado na máxima segundo a qual não há tributo sem lei anterior e prévia que o defina. Por tal razão incumbe ao Estado o dever (mais do que mero ônus) de através dos seus agentes fiscais demonstrar a efetiva realização pelo contribuinte do fato típico tributário (ou fato jurídico tributário ou ainda fato gerador da obrigação tributária) previsto em lei como pressuposto necessário e indispensável para a exigência da prestação tributária respectiva. Alberto Xavier acentua o dever de prova do Estado relativamente à demonstração da realização do fato típico tributário concluindo tratar-se de um verdadeiro encargo de prova ou dever de fiscalização.[16]

O Direito positivo consagra esta concepção ao definir o lançamento tributário como o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível, estatuindo ser a atividade administrativa de lançamento vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (art. 142 do Código Tributário Nacional).

Em outras palavras, o dever de provar o fato típico tributário concretiza-se, instrumentaliza-se, realiza-se através do dever de lançar, ambos deveres jurídicos inelutáveis aos agentes públicos encarregados de tal mister e instrumentos (autênticas garantias) de proteção ao direito dos contribuintes (sujeitos passivos tributários em sentido lato) de sofrerem apenas e tão-somente as imputações tributárias prescritas de forma cabal em lei compatível com a ordem constitucional.

A rigor, o dever de prova do fato típico tributário titularizado pelos agentes fiscais representa a dimensão processual do princípio da legalidade tributária, vale dizer, a demonstração objetiva, na forma e nos limites do devido processo legal (cuja eficácia alcança também a atividade administrativa no que esta atina à esfera jurídica dos indivíduos), do atendimento cabal às exigências normativas emanadas daquele princípio.

6.2. Dever de colaboração

Em oposição (e não em conflito) ao dever de prova do Fisco, está o dever de colaboração do contribuinte em relação às solicitações que lhe são dirigidas pelos agentes fiscais, em legítimo exercício do poder-dever de fiscalização da regular aplicação da lei tributária.

O Código Tributário Nacional contempla diversas regras (v.g. arts. 195 e 197) estabelecendo o dever de colaboração do sujeito passivo ou de terceiros relativamente à elucidação de fatos ou apresentação de documentos que possam comprovar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

Ocorre que a interpretação destas normas deve ser iluminada pela garantia constitucional do direito ao silêncio ou prerrogativa contra a auto-incriminação. Tal “iluminação” retirará do âmbito de eficácia das normas que contemplam o dever de colaboração todas as hipóteses em que o atendimento à intimação do agente estatal puder gerar conseqüências na esfera criminal, seja do sujeito passivo ou do terceiro a quem a intimação é dirigida.

O dever de colaboração não pode se sobrepor à garantia da auto-incriminação, pela simples razão de que esta constitui uma prerrogativa fundamental do indivíduo no Estado Democrático de Direito, fórmula jurídica concebida para a proteção (na sua acepção ampla) da esfera de liberdade do indivíduo perante o Estado. O dever de colaboração nasce no momento em que o Estado atua no exercício – legítimo – da sua potestade de investigar a ocorrência do fato jurídico tributário. O direito ao silêncio, por outro lado, antecede a própria existência da máquina pública na medida em que representa prerrogativa inalienável do indivíduo, insuscetível de revogação pelo Estado, dado o caráter universal e humanístico dos direitos fundamentais. Vale dizer, o direito ao silêncio (por consubstanciar direito fundamental por excelência) antecede ao Estado (e a pretensão de colaboração que este tem em relação aos indivíduos, no que tange ao exercício da potestade tributária).

Alberto Xavier, embora reconheça o dever de colaboração do contribuinte em relação ao Fisco, admite que há casos de não exigibilidade deste dever “no apuramento da verdade, ou seja, de recusas legítimas de colaboração – como os que decorrem do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso (o pedido de colaboração tem de ser apropriado, necessário e razoável para esclarecer os fatos), do respeito pelos direitos fundamentais (integridade pessoal, privacidade, inviolabilidade de meios de comunicação privada) e do dever de sigilo profissional”.[17]

Com efeito, é necessário concluir ser o princípio do proporcionalidade, instrumento normativo que veicula a ponderação de valores juridicamente protegidos em igual magnitude pela ordem jurídica, o caminho para a resolução do conflito entre o dever de prova do Fisco em relação à ocorrência do fato jurídico tributário e o dever de colaboração do sujeito passivo e de terceiros ligados a tal fato.

6.3. Princípio da proporcionalidade, direito ao silêncio e dever de colaboração

De todo modo, fica a questão: como ponderar concretamente estes valores, à luz do princípio da proporcionalidade? Qual o critério prático para se divisar as hipóteses em que o direito ao silêncio afasta a eficácia das normas que estatuem o dever de colaboração em matéria tributária?

Parece-nos que as respostas a tais questões encontram-se na própria natureza do direito fundamental em questão.

Com efeito, se o direito ao silêncio consubstancia garantia constitucional de proteção da esfera de liberdade do indivíduo, todas as vezes em que a liberdade individual estiver sob risco de sofrer qualquer restrição, inclusive durante o procedimento de investigação dos fatos jurídicos tributários, o direito ao silêncio assumirá relevo fundamental como autêntico escudo protetor a afastar a eficácia das normas que impõem o dever de colaboração em matéria tributária.

A prevalência do direito ao silêncio face ao dever de colaboração do indivíduo frente ao Fisco consubstancia uma decorrência do princípio da proporcionalidade, na medida em que este princípio, em uma das suas dimensões,[18] visa assegurar a máxima eficácia das pretensões constitucionais, atendidos, em cada caso concreto, o conjunto das regras e princípios constitucionais “em jogo”. Neste sentido, se a eficácia normativa do direito ao silêncio dirige-se precisamente às situações em que a liberdade individual corre perigo em face do exercício do direito de calar, necessário reconhecer que, nestes casos, este direito fundamental demonstra-se inafastável perante outras pretensões também alicerçadas constitucionalmente, como o dever de colaboração dos indivíduos perante o Fisco.

É sabido que o princípio da proporcionalidade realiza-se materialmente mediante a atribuição, pelo intérprete do direito, de peso específico aos interesses e pretensões constitucionais em oposição, sempre face às circunstâncias fáticas e jurídicas de cada caso concreto, esta, aliás, uma das causas da “irresistível ascensão” (irrésitible ascension) do princípio da proporcionalidade no Direito contemporâneo ocidental.[19] Ora, se no caso concreto, o direito do Estado de exigir do indivíduo o cumprimento do dever de colaboração puder gerar a este conseqüências de ordem criminal, com reflexos na sua liberdade individual, poderá o indivíduo afastar aquela pretensão estatal exercendo o direito ao silêncio, direito fundamental que por dirigir-se exatamente a estas situações assume “en situation” peso específico reforçado.

Em outras palavras, o princípio da proporcionalidade, decorrência inelutável do Estado de Direito, impõe a prevalência da liberdade sobre os atributos derivados da potestade estatal em matéria tributária. O Estado de Direito, como ensina, J.J.Gomes Canotilho, é um “Estado de limites”[20], e os limites da ação estatal são construídos historicamente a partir da concretização dos direitos fundamentais veiculada pelo princípio da proporcionalidade.

Ocorre que o Direito Positivo brasileiro contempla no art. 1º, IV e parágrafo único da Lei nº 8.137/90[21] tipo criminal fundado no silêncio do sujeito passivo quanto ao atendimento do dever de colaboração ante às intimações fiscais, expresso na dicção legal como “falta de atendimento da exigência da autoridade”.

“Prima facie”, não nos parece que este tipo penal (de natureza omissiva), cujo objetivo é reforçar a eficácia do dever de colaboração dos indivíduos perante o Fisco seja inconstitucional tout court face ao direito fundamental ao silêncio, na medida em que este direito constitucional não impede que o legislador tipifique condutas omissivas, quando esta omissão seja avaliada, pelo legislador, negativamente perante os demais valores constitucionais, a merecer serem alçadas à condição de núcleos de tipos criminais.

No entanto, por tudo o retro afirmado, aquele tipo criminal omissivo afigurar-se-á concretamente inconstitucional quando o atendimento às intimações fiscais puder gerar conseqüências negativas à esfera de liberdade do indivíduo, haja vista a garantia constitucional do direito ao silêncio ou da prerrogativa contra a auto-incriminação. A pecha de inconstitucionalidade daquela norma somente nascerá diante das circunstâncias fáticas e jurídicas concretas, por imposição da ponderação de valores e interesses jurídicos imposta pelo princípio da proporcionalidade.

Em outras palavras, embora o texto normativo veiculador do tipo penal supra citado não se afigure prima facie incompatível com a ordem constitucional, em especial com a proteção do direito ao silêncio (aplicável inclusive no âmbito da relação jurídico-tributária), a norma jurídica dele emanada (enunciado deôntico que é produto da interpretação daquele texto normativo)[22] pode revelar-se inconstitucional face às circunstâncias fáticas e jurídicas de cada caso concreto, notadamente quando o atendimento às intimações dos agentes fiscais puder dar azo a conseqüências criminais para aqueles que assim procederem.

Não nos parece que, nesta última hipótese, trata-se apenas de afastar a eficácia da norma jurídica que tipifica a conduta omissiva, mas de autêntica invalidade (por conflito com o direito constitucional ao silêncio) na medida em que o tipo penal é veiculado através de regras jurídicas, normas jurídicas que concretizam-se através de um “all or nothing”, isto é, não admitem ponderação “en situation”, como ocorre com os princípios[23], notadamente aqueles consubstanciados em direitos fundamentais.

A regra jurídica (produto da interpretação do texto normativo) que traz como conseqüência ao não atendimento às intimações fiscais o caráter delituoso desta conduta releva-se inconstitucional quando tal conduta encontrar apoio no direito ao silêncio. É precisamente o direito constitucional à prerrogativa do silêncio que retira, no caso concreto, a validade da regra que tipifica o não atendimento às intimações fiscais como crime. Como as normas jurídicas existem “em ato” (enquanto comandos dotados de conteúdo deôntico) apenas após a interpretação dos textos normativos, é necessário em cada caso a verificação da compatibilidade vertical da norma construída pelo intérprete com o conjunto de exigências constitucionais.

7. Conclusão

A criminalização de condutas ligadas à relação jurídico-tributária (os chamados crimes contra a ordem tributária) exige que se estenda ao Direito Tributário o conjunto de garantias processuais penais protetivas da liberdade individual. Neste sentido, o direito ao silêncio ou privilege against self-incrimination assume papel de relevo, na medida em que o dever de colaboração dos indivíduos com o Fisco pode em certas situações conduzir à auto-incriminação. O contribuinte pode se recusar a atender solicitações fiscais (derivadas do dever de colaboração que tem perante as autoridades fiscais), quando tal atendimento puder gerar-lhe conseqüências negativas na esfera penal, atendidas as circunstâncias fáticas e jurídicas de cada caso concreto, sem que tal conduta possa configurar o tipo penal previsto no artigo 1º, parágrafo único da Lei nº 8.137/90, norma que se afigura inconstitucional nesta hipótese por conflitar com o direito (constitucional) ao silêncio.

 

[1] Estado de Direito. Fundação Mario Soares : Lisboa, 1999, p. 53.

[2] Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Volume III. Renovar : Rio de Janeiro, 1999, p. 1-35.

[3] Sobre o debate acerca da origem remota do direito ao silêncio no direito anglo-saxão, ver John H. Langbein, The Historical origins of the privilege against self-incrimination at common Law, Michigan Law Review, vol. 92, n. 5, p. 1047; R.H.Helmholz, Origins of the privilege against self-incrimination: the role of the european ius comune, New York University Law Review, vol. 65, p. 962.

[4] Burt Neuborne. “An overview of the Bill of Rights”. Fundamentals of American Law. New York University School of Law. Oxford University Press, Oxford, 1998, 107.

[5] Criminal Law, criminal procedure, and criminal justice. Fundamentals…, ob. cit., p. 309.

[6] Il diritto ao silenzio dell’imputato sul fatto proprio e sul fatto altrui. Rivista italiana di diritto e procedura penale, ano 1998, fasc. 4, p. 1129.

[7] Ob. cit. , p. 1.132.

[8] Este Pacto Internacional foi inserido na ordem jurídica brasileira através do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992.

[9] Este Pacto Internacional foi inserido na ordem jurídica brasileira através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.

[10] Código de processo penal comentado. 2ª ed., RT, 2003, p. 198.

[11] “Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”

[12] “Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”

[13] Direito ao silêncio no interrogatório. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 6, p. 139.

[14] Ob. loc. cits.

[15] Código…, ob. cit., p. 336.

[16] Do lançamento – teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2ª ed. Forense : Rio de Janeiro, 1998, p. 145.

[17] Do lançamento …, ob. cit., p. 152.

[18] O princípio da proporcionalidade assume uma dupla dimensão no discurso jurídico: uma dimensão que impõe e viabiliza a concordância prática entre interesses jurídicos igualmente protegidos pelo ordenamento, mas em oposição diante das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto, e uma dimensão de “vedação ao excesso” consubstanciada na norma segundo a qual a interpretação ou a medida irracional, fora dos quadrantes dos fins que justificam todo e qualquer comando ou competência normativa deve ser afastada, conforme expusemos no nosso “O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário”, Dialética, São Paulo, 2000, p. 57 e ss.

[19] Afirma Sébastien van Drooghenbroeck  (La proportionnalitè dans le droit de la convention européenne des droits de l’homme. Bruylant, Bruxelles, 2001, p. 9-10) “La littérature de ces dix dernières annés célèbre à l’unisson l’ ‘irresistible ascension’ de la proportionnalitè au sein de l’ensemble des ordres juridiques, nationaux et supranationaux : sous sa bannière émergerait, en tous lieux, une commune manière de dire le droit ‘en situation’ par la pesée dês intérêts conflictuels, de juger l’action à l’aune dês buts qu’elle se fixe et dês prejudices qu’elle occasionne.”

[20] Estado …, ob. cit., p. 26.

[21] Artigo 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena – reclusão, de 2(dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

[22] Sobre a distinção entre texto normativo e norma jurídica nos detivemos em “O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário”, ob. cit., p. 20 e ss.

[23] Vale lembrar que as regras jurídicas e os princípios constituem espécies de normas jurídicas, estas, por seu turno, representam o produto da interpretação dos textos normativos.  O que marca a distinção entre regras e princípios é precisamente a forma como estas normas se concretizam; os princípios, haja vista a generalidade da sua hipótese de incidência, não contemplam uma fattispecie determinada e realizam-se mediante um juízo de sopesamento, onde o maior peso de um princípio frente a outro em um dado caso concreto (en situation) não representa um juízo de invalidade do princípio cuja aplicação foi afastada, o qual permanece intacto na ordem jurídica, podendo prevalecer diante de outras circunstâncias fáticas ou jurídicas; daí se dizer que os princípios (assim como os interesses juridicamente protegidos pelo ordenamento) estão em simples e permanente oposição; as regras, por outro lado, contemplam uma fattispecie determinada, realizam-se segundo uma lógica de “all or nothing”, de modo que realizado o suporte fático da regra, impõe-se a conseqüência nela prevista: tertium non datur, daí porque as regras estão em conflito entre si o que conduz à circunstância de que a prevalência de uma (por uma dos critérios de resolução de conflitos de regras: temporal, especialidade) levará ao juízo de invalidade da regra cuja aplicação foi afastada. Por óbvio que as regras também se afiguram inválidas quando conflitarem com princípios (ou mesmo com regras) de estatura constitucional.