Coisa Julgada Tributária

“Coisa julgada tributária”, in “COISA JULGADA TRIBUTÁRIA”, São Paulo, MP Editora – APET, 2005, obra coletiva coordenada por Ives Gandra da Silva Martins, Marcelo Magalhães Peixoto e André Elali.

 

1.  Colocação do problema

Uma das grandes questões vividas pelo Direito Tributário brasileiro nos últimos anos repousa no adequado tratamento que deve ser atribuído à decisão judicial transitada em julgado definindo aspectos relacionados à constitucionalidade de normas tributárias.

Os problemas vão desde a definição do real alcance que a coisa julgada em matéria tributária possui no que tange às alterações que promovem no estatuto jurídico, que deve reger no futuro a relação jurídica tributária até o sentido que pronúncias individuais de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas tributárias devem assumir, quando em momento posterior ocorrem decisões do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso ou concentrado, em sentido contrário.

2. Natureza da coisa julgada tributária

Gian Antonio Micheli acentua que a coisa julgada importa uma nova normatização que as partes devem observar como (quale) uma lex specialis que substitui a antes existente e se impõe tanto à parte sucumbente quanto à parte vencedora; esta última pode renunciar ao resultado a ela favorável, como pode entrar em acordo com parte vencida para uma nova disciplina da relação, todavia as partes não podem levar, mais uma vez, a controvérsia diante do juiz no intuito de obterem uma nova sentença.[1]

Na doutrina pátria, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também utilizam a expressão lex specialis para designar o especial efeito normativo produzido pela autoridade da coisa julgada no âmbito das relações jurídicas concretamente definidas pelo Poder Judiciário, afirmando que a sentença de mérito transitada em julgado caracteriza-se como lex specialis entre as partes, que prevalece contra a lex generalis existente no ordenamento jurídico.[2]

Os efeitos (e a autoridade) da coisa julgada não estão apenas do dispositivo da sentença, mas na norma jurídica nela albergada, isto é, no comando deôntico regulador do conflito de interesses levado à apreciação do Poder Judiciário. Tal comando é o resultado do conjunto de elementos fáticos e jurídicos debatidos no processo, diante dos quais o mesmo é proferido. Logo, o alcance da coisa julgada não deve ser aferido apenas por meio da análise do dispositivo sentencial, mas do conjunto dos elementos contidos nos autos, e que constituíram a matéria-prima perante a qual foi proferida a decisão judicial.

A imutabilidade da norma jurídica consubstanciada na sentença judicial refere-se à situação (fática e jurídica) diante da qual a mesma foi proferida. Se tal situação sofrer alterações, cessa a eficácia da coisa julgada. Esta é, a rigor, uma característica geral de todas as sentenças de mérito e não apenas daquelas proferidas nas chamadas relações jurídicas continuativas.

Neste sentido, a decisão judicial de natureza declaratória definidora do regime jurídico que deve regular a relação jurídica tributária tem eficácia similar a uma lex specialis (Micheli), ou seja, consubstanciará a norma jurídica individual e concreta que regulará os fatos jurídicos sobre a qual o pronunciamento judicial se baseou na resolução da lide. Se o autor não limitar temporalmente o alcance do pedido, a coisa julgada atingirá todos os fatos jurídico-tributários de idêntica natureza, embora ocorridos posteriormente ao trânsito em julgado da decisão declaratória.

A norma jurídica individual e concreta transitada em julgado definirá um “esquema de agir” entre Estado e contribuinte na feliz expressão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Segundo esse autor, quando se requer que o decisum de uma sentença, para valer para processos futuros, envolva as mesmas partes, a mesma causa petendi e o mesmo objeto, obviamente que a pressuposta identidade não pode se referir ao ato concreto, único e irrepetível, mas aos esquemas de agir ou atividade.[3]

Vale observar que a idéia de “esquema de agir” aplica-se perfeitamente às hipóteses de lides tributárias de cunho declaratório em que o pronunciamento judicial opera-se fundamentalmente sobre a validade das normas jurídicas que devem reger a relação jurídica tributária, de modo que transitada em julgado decisão definindo judicialmente o regime jurídico a ser aplicado a determinados fatos geradores, a autoridade da coisa julgada projeta-se no futuro fixando um “esquema de agir” entre Administração Tributária e contribuinte.

Portanto, a decisão judicial transitada em julgado pela qual define-se o regime jurídico da relação tributária, mediante o afastamento de normas tributárias por razões de inconstitucionalidade, consubstancia comando revelador de um esquema de agir, com efeitos pro futuro desde que mantidas as mesmas circunstâncias fáticas e jurídicas subjacentes a sua (decisão) pronúncia.

3. A questão de constitucionalidade e a coisa julgada preexistente

O Direito Tributário brasileiro é marcado pela excessiva litigiosidade, resultado do acirramento do conflito entre Administração Tributária e sociedade em tema de tributação, que vem corroendo a própria efetividade social das normas tributárias, o que pode ser comprovado pelo crescimento de lançamentos tributários lavrados pela Administração em razão de descumprimentos dos deveres tributários por parte dos contribuintes.

Por força das vicissitudes processuais do controle difuso, muitas vezes uma ação individual transita em julgado em instâncias inferiores, sem que a questão tenha sido levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Tal decisão judicial, reveladora de um “esquema de agir”, representa o comando jurídico que deve regular a relação Estado-indivíduo no que tange à lide deduzida em juízo, em especial no aspecto relacionado à constitucionalidade da lei tributária, fonte da obrigação que o contribuinte-autor pretendeu ver afastada no Poder Judiciário.

Ocorre que posteriormente ao trânsito em julgado da ação individual, na qual foi reconhecida a inconstitucionalidade da lei tributária que determina o recolhimento de dada exação (bem como define os seus elementos estruturais), a questão constitucional que representa o seu cerne chega à apreciação do Supremo Tribunal Federal, seja em controle difuso (em processo de outro contribuinte) seja em controle concentrado, e essa Corte pronuncia juízo de validade diferente daquele proferido no bojo do processo individual já transitado em julgado.

A hipótese inversa também é factível, qual seja, a existência de coisa julgada individual no sentido da inconstitucionalidade de determinada norma tributária e a posterior declaração de constitucionalidade desta norma pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado ou difuso de constitucionalidade.

O pano de fundo do problema concreto é a existência de comando judicial transitado em julgado proferido por tribunais inferiores em ação judicial de cunho declaratório, sem limitação temporal constante do pedido, pleiteando o reconhecimento incidenter tantum da inconstitucionalidade de norma tributária dotada de vigência permanente.

As hipóteses fáticas variam em razão da modalidade e dos efeitos da pronúncia de (in)constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em face da coisa julgada já construída no processo individual.

4. Premissas

 A análise do tema requer a definição de algumas premissas básicas:

  1. a) a decisão do Supremo Tribunal Federal deve ser dotada de máxima efetividade em nome do princípio da supremacia da Constituição;
  2. b) a interpretação do direito deve ser conduzida pelo princípio da unidade da Constituição;
  3. c) o juízo de constitucionalidade é substancialmente diferente do juízo de inconstitucionalidade para o efeito de imposição da vontade constitucional tal como interpretada pelo Supremo Tribunal nas relações jurídicas individuais já alcançadas pela coisa julgada;
  4. d) o Estado Democrático de Direito impõe o respeito estatal ao princípio da segurança jurídica, manifestado na boa-fé e na confiança no Poder Judiciário.

O princípio da supremacia da Constituição é o alicerce do Estado Democrático de Direito, garantia e condição para o exercício das liberdades individuais e fórmula de vedação do arbítrio do poder estatal. A tarefa de garantia da efetividade da Constituição cabe ao Supremo Tribunal Federal de modo que as decisões desta Corte devem, na medida do possível, aplicar-se a todos, segundo um mandamento de máxima efetividade.

Outra premissa da nossa compreensão do tema repousa no princípio da unidade da Constituição segundo o qual todas as normas (regras e princípios) constitucionais têm igual dignidade, ou seja, não há hierarquia de supra-infra-ordenação no corpo de uma mesma Constituição, o que implica afastar as teses das antinomias normativas, bem como das normas constitucionais inconstitucionais.[4]

A substancial diferença existente entre a decisão que pronuncia a constitucionalidade de uma norma e outra que declara a inconstitucionalidade dessa norma é fundamental para a compreensão do tema da eficácia da decisão proferida pelo Supremo Tribunal, em relação a decisões individuais já transitadas em julgada relativamente à mesma questão constitucional.

A decisão judicial que declara a constitucionalidade de uma norma jurídica apenas e tão-somente confirma a presunção de constitucionalidade que esta norma já possui desde a sua integração à ordem jurídica; os planos da validade e da eficácia da norma permanecem os mesmos. As normas jurídicas não necessitam de decisões judiciais para firmarem-se como válidas perante, em última instância, o que estabelece a Constituição; a compatibilidade das normas com a Constituição é um pressuposto da própria existência delas, como comandos componentes do repertório que é o ordenamento.

A inconstitucionalidade, por outro lado, é fenômeno excepcional, quase uma patologia no ordenamento, tanto que Kelsen chegou a sustentar a responsabilização dos agentes políticos pela produção de lei inconstitucional.[5]

A ordem jurídica presume a validade de suas normas, de modo que a inconstitucionalidade de um comando deve ser compreendida, sempre, dentro da normalidade institucional, como um fenômeno esporádico, inusitado e indesejado pela altíssima gravidade que revela.

Tal gravidade manifesta-se, sobretudo, no efeito anulatório atribuído à decisão que reconhece o vício de inconstitucionalidade, a qual, em princípio, impõe o desfazimento e a restauração dos atos jurídicos, lesivos a direitos individuais, decorrentes da eficácia passada da norma inconstitucional.

Em outro dizer, enquanto a pronúncia de constitucionalidade não traduz inovação na ordem jurídica, na medida em que apenas atesta, com eficácia subjetiva maior ou menor, um estado de validade normativa preexistente, a declaração de inconstitucionalidade, por outro lado, consubstancia um rompimento com a normalidade da ordem jurídica, apoiada na presunção de constitucionalidade dos atos normativos estatais.

Por último, a segurança jurídica consubstancia esteio de natureza axiológica e normativa em que se apóia o Estado Democrático de Direito. Tal princípio nas relações jurídicas de Direito Público, como a tributária, representa exigência de respeito à boa-fé e confiança manifestada por contribuintes no cumprimento de normas impostas pelo Estado. Em outras palavras, o contribuinte não pode ser prejudicado por acreditar no Estado e este não pode aproveitar-se da própria torpeza criando, deliberadamente ou não, ardis normativos aos contribuintes.

Fixadas estas premissas, analisamos a seguir a hipótese em que o contribuinte é titular de decisão judicial individual (individual, no âmbito do controle difuso, sem que o processo tenha chegado à apreciação do STF) declaratória da inconstitucionalidade de determinada exação tributária e posteriormente o Supremo Tribunal Federal vem a declarar a constitucionalidade da mesma exigência.

5. Coisa julgada individual declaratória da inconstitucionalidade incidenter tantum de norma tributária e posterior decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a constitucionalidade da mesma norma, em sede de controle concentrado

Não raro, o contribuinte obtém pronunciamento judicial de tribunais inferiores reconhecendo-lhe a inconstitucionalidade de norma tributária e, por conseqüência, o direito a não se submeter aos comandos desta norma, e posteriormente, o Supremo Tribunal Federal decide em sentido contrário, isto é, pronuncia a constitucionalidade da mesma norma, em decisão de mérito de ADIn ou ADC (especialmente por estas duas vias, embora na atualidade o mesmo fenômeno também possa ocorrer na ADPF).

A decisão de mérito proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade é dotada de efeito vinculante e eficácia contra todos, sendo que a parte dispositiva do acórdão do Supremo Tribunal Federal deve ser publicada em sessão especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União dez dias após o trânsito em julgado da decisão.

De modo geral, a doutrina e a jurisprudência do Direito Comparado reconhecem que a res judicata não é afetada por superveniente decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no exercício do controle de constitucionalidade de normas. Exceção a este comando geral é representada pela pronúncia de inconstitucionalidade que gera concretamente um benefício para os indivíduos (retroatividade benéfica).

No entanto, nosso entendimento é que a supremacia da Constituição não pode ceder ante a existência de decisões individuais em sentido contrário; ademais, a especial característica da relação jurídica tributária no Direito brasileiro, a influência do ônus tributário no regular funcionamento da ordem econômica, e as peculiaridades do controle de constitucionalidade brasileiro, sobretudo pelas vicissitudes do sistema difuso de constitucionalidade, também permitem uma visão diferente do problema, iluminada pelas premissas supra-expostas.

Conforme retro exposto, a coisa julgada consubstancia uma norma jurídica individual e concreta tal como uma lex specialis (Micheli). A pronúncia de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede concentrada de constitucionalidade reafirma com eficácia geral a presunção de validade da norma tributária, devendo ser afastados da ordem jurídica todos os comandos que indiquem em sentido contrário.

Nesse sentido, a decisão individual que livra um determinado contribuinte de obedecer a uma determinada norma tributária, sob o fundamento de que a mesma seria inconstitucional, passa a conflitar com outro comando (de natureza geral), expedido pelo Guardião das Constituição, em sentido contrário, isto é, no sentido da constitucionalidade daquela mesma norma tributária.

A coisa julgada individual que reconhece a inconstitucionalidade de uma norma tributária individual incidenter tantum não pode prevalecer, em relação aos fatos futuros, diante de posterior decisão definitiva de mérito do Supremo Tribunal Federal, proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade em sentido contrário, tendo em vista a inegável circunstância de que tal decisão representa uma alteração na situação de direito, existente ao tempo da decisão individual, a influir na eficácia temporal desta decisão.

O princípio da supremacia da Constituição (uma das premissas fundamentais para a análise da questão) impõe a necessidade de fazer incidir a decisão de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal sobre a coisa julgada individual que contempla outra interpretação para Constituição. Uma interpretação segura e uniforme das dicções constitucionais é pressuposto para a garantia de autoridade da Constituição. As decisões individuais sobre os temas constitucionais não podem prevalecer sobre o efetivo significado da Constituição na visão do órgão encarregado institucionalmente de cumprir em última instância tal mister.

Na ordem constitucional brasileira, cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir acerca do real sentido das normas constitucionais. O controle de constitucionalidade das leis no Brasil embora reconhecido a todas as autoridades judiciárias pelo controle difuso, tem naquela Corte Judiciária o seu ápice.

A verticalização das decisões relativas a temas constitucionais constitui uma tendência do constitucionalismo brasileiro dos últimos anos. A verticalidade constitui a própria essência do sistema concentrado de constitucionalidade de modo que o efeito vinculante e a eficácia contra todos são incompatíveis com a permanência de comandos judiciais em sentido contrário, mesmo transitados em julgado.

A segurança jurídica, protegida pela coisa julgada individual, não é afetada pela aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário quando é iluminada pelo princípio da supremacia da Constituição, o qual, em última instância, impõe a idêntica obediência às dicções constitucionais por todos os seus destinatários. Em outras palavras, segurança jurídica é fundamentalmente obediência ao que determina a Constituição. Coisa julgada individual em conflito com a Constituição Federal não pode manter-se eficaz.

Logo, a aplicação da pronúncia de constitucionalidade com efeitos gerais sobre a coisa julgada individual em nome do princípio da supremacia da Constituição longe está de representar ofensa à segurança jurídica, antes significa autêntica exigência de concretização deste princípio. Não há relação de colisão,[6] mas de complementariedade, entre os princípios da supremacia da Constituição e da segurança jurídica.

Outrossim, a necessidade de imposição da decisão de constitucionalidade, proferida pelo Supremo Tribunal Federal sobre a coisa julgada individual, é ainda maior na hipótese em que tal decisão individual livra o contribuinte do recolhimento de determinado tributo ou reconheça-lhe o direito a expressiva redução na prestação relativa à obrigação tributária principal, haja vista a suposta inconstitucionalidade da lei que a instituiu.

Em tal hipótese, a manutenção da eficácia da coisa julgada titularizada por um contribuinte individual e a desigualdade por ela revelada (em face dos demais contribuintes) promoverão indesejados efeitos nos princípios reguladores da ordem econômica, entre os quais a livre iniciativa econômica e a vedação à concorrência desleal.

As modernas economias reconhecem a positividade jurídica do princípio da livre iniciativa econômica, da qual a liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica é apenas uma dimensão. No Direito brasileiro, por exemplo, a livre iniciativa, nas palavras de Eros Roberto Grau, “é expressão da liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho”.[7]

Neste sentido, necessário reconhecer como imposição da realidade contemporânea que o nível de tributação imposto pelo Estado aos diferentes agentes e setores econômicos é um fator que exerce importante influência na estabilidade da ordem econômica como plano da realidade em que o princípio da livre iniciativa econômica se realiza.

Todo sistema tributário racional apóia-se na premissa de que agentes econômicos que praticam o mesmo fato jurídico tributário, qualificado pela lei como hipótese de incidência tributária, devem se submeter à idêntica conseqüência normativa, qual seja, o dever de recolher certa quantia aos cofres públicos, salvo evidentemente a hipótese de isenções e outras desonerações que a lei mesma contemplar.

Esta premissa é fundamental para o equilíbrio das forças de mercado em um ambiente econômico submetido ao princípio da livre iniciativa econômica, no qual devem ser combatidos todos os fatos e condutas que impliquem atentando à livre concorrência. A uniformidade da tributação, entendida como comando que afaste os privilégios e discriminações odiosos dentro dos diferentes grupos e setores econômicos, assume ainda maior relevo quando se considera a complexidade das relações econômicas modernas e a especificidade de alguns setores econômicos, em que a margem de lucratividade é tão reduzida que a mera existência de um benefício tributário para um ou alguns agentes econômicos em especial pode gerar sérios desequilíbrios de concorrência, como ocorre, por exemplo, com setores oligopolizados.

A ordem jurídica do mercado não protege situações/regras/condutas que pelo seu caráter produzam posições de privilégio a agentes ou setores econômicos determinados, eliminando ou reduzindo, por exemplo, certos custos que devem ser suportados por todos os agentes em regime de livre competição. O tributo é um elemento do custo de qualquer unidade econômica, componente necessário do complexo de fatos e circunstâncias que definem o preço pelos quais bens e serviços são oferecidos no mercado.

A coisa julgada individual, que livra um contribuinte do recolhimento de determinado tributo, exonerando-o deste custo econômico, fundada na inconstitucionalidade da norma tributária que o estabeleceu, poderá colidir com o princípio da livre iniciativa econômica quando sobrevier decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, reconhecendo a validade da norma tributária impugnada, e diante de circunstâncias fáticas e jurídicas que permitam concluir pela geração de um estado de desequilíbrio na ordem econômica provocada pela coisa julgada individual.

O fato de que o custo tributário constitui um importante elemento na configuração de situações de desequilíbrios da concorrência, mais do que cogitação doutrinária atualmente, é resultante de expressa disciplina constitucional. Com efeito, pela Emenda Constitucional n. 42/2003, o constituinte derivado brasileiro estatuiu que “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo” (art. 146-A).

Esta norma está contemplada no Texto Constitucional entre os princípios gerais do sistema tributário nacional e representa o expresso reconhecimento da ordem constitucional brasileira do inelutável efeito que a tributação gera na ordem econômica, e da necessidade de admissão de regimes tributários especiais que objetivem combater eventuais desequilíbrios de concorrência.

Assim, a mera existência de uma decisão judicial livrando um contribuinte individual do recolhimento de determinado tributo (ou reconhecendo-lhe tratamento tributário menos oneroso) não é fator a permitir a conclusão de que estaria configurada a lesão à ordem econômica, até porque as decisões judiciais são sempre fontes geradoras de tratamentos jurídicos desiguais, haja vista a liberdade decisória do juiz e as características processuais de cada caso. Todavia, sob a perspectiva de uma interpretação do tema pautada pelos princípios da supremacia da Constituição e da unidade da Constituição aquela decisão individual poderá colidir, dependendo das circunstâncias fáticas e jurídicas, com os princípios norteadores da ordem econômica quando sobrevier decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, confirmando perante todos os contribuintes a validade constitucional da norma tributária cuja inconstitucionalidade tenha sido o fundamento daquela decisão individual.

Por último, o tratamento jurídico tributário mais favorável que um contribuinte tenha em função de uma decisão judicial transitada em julgado, fundada na inconstitucionalidade de norma tributária, não deve prevalecer após a pronúncia de inconstitucionalidade da mesma norma pelo Supremo Tribunal em sede de controle concentrado também em nome do princípio da generalidade tributária.

5.1. Delimitação do objeto

Embora seja nosso entendimento que a pronúncia de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, deve se aplicar aos contribuintes que tenham em seu favor decisões individuais transitadas em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da mesma norma, é indispensável um aprofundado exame acerca de relação de identidade entre as duas decisões.

Com efeito, a eficácia de decisão do Supremo Tribunal sobre a coisa julgada individual requer a identidade entre a questão constitucional debatida na lide individual e aquela presente na decisão do Supremo Tribunal Federal.

O controle concentrado de constitucionalidade no Brasil tem causa de pedir aberta, de modo que o Supremo Tribunal Federal ao decidir não está vinculado aos fundamentos expostos na petição inicial da ação direta, operando-se dessa forma uma presunção juris tantum de apreciação de todos os aspectos relacionados à questão de constitucionalidade da norma jurídica impugnada.

No entanto, o efeito geral da decisão de constitucionalidade proferida em sede de controle concentrado está limitado aos fundamentos constantes do decisório. Neste sentido, a identidade entre a questão constitucional decidida pelo Supremo Tribunal, e constante dos fundamentos da decisão, e a questão constitucional constante do comando judicial individual transitado em julgado, é indispensável para a eficácia daquela decisão da Corte Suprema sobre a decisão individual.

Podem ocorrer situações em que o texto normativo impugnado perante o Supremo Tribunal tem a sua validade confirmada por este Tribunal em sede concentrada de constitucionalidade, no entanto, outras questões constitucionais relativas ao mesmo texto normativo permanecem em aberto, a impedir que aquela decisão possa fazer cessar a eficácia da coisa julgada individual na qual se decidiu questão constitucional diversa (embora alusiva ao mesmo texto normativo).

 Exemplo do afirmado ocorreu no julgamento da ADC n. 1 no que tange ao exame da constitucionalidade da Lei Complementar n. 70/91, instituidora da contribuição social de seguridade social incidente sobre o faturamento de empregadores – Cofins (art. 195, I, da CF). Na ação pleiteava-se a declaração de constitucionalidade daquela lei complementar, e do tributo por ela criado, haja vista a existência de várias ações individuais questionando a sua validade.

A ação direta fundou-se nos argumentos adotados por decisões judiciais de instâncias inferiores para considerar a Lei Complementar n. 70/91 inconstitucional, quais sejam: bitributação entre PIS e Cofins; ferimento ao princípio da não-cumulatividade dos impostos de competência federal; a Cofins, como contribuição social que é, não poderia ser arrecadada e fiscalizada pela Secretaria da Receita Federal; a Cofins seria imposto nominal fruto da competência residual da União; a lei complementar impugnada teria transgredido o princípio constitucional da anterioridade tributária.

O Supremo Tribunal decidiu a aludida ADC e confirmou a validade constitucional da Lei Complementar n. 70/91, no entanto não esgotou todas as possibilidades de questionamento constitucional do texto normativo desta lei complementar, o que ocorre, por exemplo, com a questão alusiva ao alcance  da expressão “faturamento” como base de cálculo deste tributo, comando contemplado no art. 2º da aludida Lei.

O Supremo Tribunal Federal embora tenha confirmado com efeitos gerais a constitucionalidade do texto do art. 2º da Lei Complementar n. 70/91, no qual está definido o termo “faturamento” como base de cálculo do tributo, não discutiu a questão constitucional atinente, por exemplo, à integração ao conceito de faturamento dos tributos que integram o preço, mas que não constituem receita da pessoa jurídica, entendida esta expressão como o ingresso de natureza econômica que por acrescer ao patrimônio representa manifestação de capacidade contributiva apta a sofrer tributação.

Esta hipótese ocorre com o ICMS, tributo que é arrecadado pelo contribuinte de direito pelo preço de venda de mercadorias e serviços, mas que deve ser repassado ao Fisco estadual, sujeito ativo tributário desse tributo. Como a Lei Complementar n. 70/91, no seu art. 2º, parágrafo único, não excluiu expressamente o ICMS para efeito de determinação da base de cálculo da Cofins, subsiste a questão constitucional atinente à integração ou não do valor do ICMS no conceito constitucional de faturamento, previsto no art. 195, I, da CF.

Logo, embora o texto normativo do art. 2º da Lei Complementar n. 70/91 tenha sido objeto de pronúncia de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal com efeitos gerais, este mesmo texto normativo ainda suscita outras questões constitucionais não decididas por aquele tribunal por ocasião daquela pronúncia.[8]

O exemplo citado serve para demonstrar que a aplicação da decisão de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal, tomada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sobre decisões individuais já transitadas em julgado, exige a indispensável verificação da relação de identidade entre as questões constitucionais debatidas pelo Supremo Tribunal e aquelas decididas na lide individual.

 5.2. Eficácia ex nunc

A resolução da questão se apóia na eficácia no tempo da coisa julgada que declara incidenter tantum a inconstitucionalidade de norma tributária que vem a ser posteriormente objeto de pronúncia de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal em sede de controle concentrado. O tema, assim, envolve a definição da eficácia (e não da validade) da lex specialis sobre os fatos jurídicos tributários.[9]

A posterior pronúncia de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em sentido contrário à coisa julgada individual, fundada na inconstitucionalidade da mesma norma, não retira a validade do comando consubstanciado na decisão judicial individual, mas subtrai-lhe a eficácia para reger os fatos posteriores à pronúncia de constitucionalidade. A mudança de qualificação normativa ocorre no plano da eficácia e não no da validade. A norma jurídica individual e concreta continua válida para reger os atos jurídicos praticados sob a sua égide, mas perde a autoridade normativa (na dimensão da eficácia) para continuar regulando no futuro os efeitos jurídicos daqueles fatos, caso eles venham a se repetir.

Em outro dizer, o “esquema de agir” estabelecido pela norma jurídica individual e concreta, consubstanciada na decisão judicial transitada em julgado, sofre o efeito da decisão de constitucionalidade com eficácia geral proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no entanto tal efeito não tem o condão de atingir-lhe a validade, mas apenas de fazer cessar a sua eficácia no tempo, retirando-lhe a aptidão para regular a realização futura dos mesmos fatos jurídicos a ele (esquema de agir) subjacentes.

O princípio da unidade da Constituição exige que a superveniente pronúncia de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal gere feitos apenas ex nunc, no que tange às relações jurídicas individuais reguladas até esse momento por lex specialis, consubstanciada em decisão judicial transitada em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da norma impugnada perante aquela Corte.

A necessidade de harmonização entre os comandos constitucionais da supremacia da Constituição e da segurança jurídica impõe que se ressalve do efeito da decisão do Supremo Tribunal os fatos jurídicos praticados sob a égide da coisa julgada, até a publicação no Diário Oficial da União daquela decisão confirmatória da constitucionalidade da norma impugnada na via difusa (pelo contribuinte) e na via concentrada (por qualquer dos legitimados constitucionalmente a tanto).

A relação jurídica tributária é dotada de atributos de sucessividade e permanência, de modo que a coisa julgada produzida sobre qualquer dos seus elementos via de regra produz efeitos futuros alcançando fatos jurídicos realizados posteriormente ao trânsito em julgado da ação. Esta hipótese ocorre especialmente quando o objeto da lide funda-se na constitucionalidade de norma tributária.

Nesse sentido, o contribuinte que obtém perante o Poder Judiciário pronúncia de inconstitucionalidade de norma tributária, tendo tal decisão transitado em julgado, passa a se comportar na forma do que estabelece esta norma jurídica individual e concreta, ou seja, fica livre do cumprimento dos comandos que estatuídos pela norma impugnada. Posterior decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado que, apreciando a questão de constitucionalidade também debatida na ação individual, venha a confirmar com efeitos gerais a validade da norma jurídica impugnada, não tem o condão de retroagir, desfazendo a eficácia da coisa julgada existente até esse momento, gerando, no entanto, o efeito de fazer cessar tal eficácia sobre os fatos jurídicos tributários realizados a partir da publicação da decisão final de constitucionalidade.

Em outro dizer, a superveniente pronúncia de constitucionalidade não retroage para alcançar a coisa julgada em sentido contrário já existente, contudo faz cessar o efeito normativo produzido pela norma jurídica individual e concreta em relação aos fatos praticados a partir daquela pronúncia definitiva de constitucionalidade.

Essa solução impõe-se em nome do equilíbrio entre a supremacia da Constituição e da segurança jurídica na medida em que os atos praticados sob a égide de decisão judicial transitada em julgado ficam livres do efeito retroativo da decisão do Supremo Tribunal Federal; no entanto, esta decisão passará a regular os fatos realizados após a sua entrada na ordem jurídica, com efeitos gerais.

A norma jurídica individual e concreta, cujo comando apóia-se na inconstitucionalidade da norma impugnada perante o Supremo Tribunal, com a pronúncia de sua validade por parte dessa Corte, perde a sua eficácia em relação aos fatos futuros, todavia, por força do princípio da segurança jurídica (fundamento axiológico-normativo da coisa julgada), da boa-fé e da irretroatividade, os atos praticados sob a égide daquela norma individual encontram-se livres do efeito retroativo da pronúncia de constitucionalidade.

Enquanto a inconstitucionalidade opera, via de regra, efeitos ex tunc, haja vista a gravidade do fenômeno da inconstitucionalidade para ordem jurídica, a pronúncia de constitucionalidade, porque mera confirmação da presunção de validade da norma jurídica, é dotada de efeitos apenas ex nunc no que tange à res judicata preexistente àquela pronúncia em sentido contrário. O equilíbrio entre os valores constitucionalmente protegidos imposto pelo princípio da unidade da Constituição exige solução intermediária que garanta a eficácia da coisa julgada individual, manifestação do imperativo de segurança jurídica, mas que, por outro lado, assegure a máxima efetividade às decisões do Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando dotadas de efeitos vinculantes e gerais.

Como a coisa julgada tributária se projeta no tempo, a solução proposta é resultado de fórmula conciliatória, como exige a moderna teoria hermenêutica entre os dois comandos constitucionais (a supremacia das decisões do Supremo Tribunal Federal e o respeito a coisa julgada).

Ademais, inegável reconhecer que a pronúncia de constitucionalidade, com efeitos gerais, é circunstância que altera a situação de direito, sob a qual foi produzida a coisa julgada individual a impor a imediata adequação da norma individual ao novo momento vivido pelo ordenamento jurídico após aquela pronúncia.

A manutenção dos regulares efeitos jurídicos dos atos praticados anteriormente à pronúncia de constitucionalidade, além de exigência do princípio da unidade da Constituição e do equilíbrio entre segurança jurídica e supremacia da Constituição, é resultante também da consideração de outros princípios e regras constitucionais.

O princípio da irretroatividade da lei tributária seria ofendido caso se permitisse o total desfazimento da coisa julgada individual, fundada na inconstitucionalidade da norma tributária, já que o tributo que não tivesse sido recolhido com fulcro na decisão judicial individual que autorizou tal comportamento poderia ser exigido retroativamente pela Administração Tributária, o que afrontaria a vedação constitucional à tributação retroativa, expressão, ademais, de segurança jurídica.

A decisão judicial transitada em julgado representa a norma jurídica que deve reger os fatos jurídicos tributários praticados sob sua égide, como autêntica lex specialis. A posterior decisão do Supremo Tribunal que tenha o condão de fazer cessar a eficácia dessa norma, não permite fazer incidir retroativamente, sobre fatos pretéritos, a norma cuja constitucionalidade foi declarada por aquela Corte, mas que individualmente havia sido afastada por decisão judicial final.

A única retroatividade admitida pela Carta Política é aquela destinada a beneficiar o indivíduo (retroatividade in bonam partem). A retroatividade tributária vedada pela ordem constitucional alcança não apenas a lei, mas o regime jurídico, ou seja, o que a Constituição protege é a tentativa de fazer incidir sobre fatos passados norma jurídica tributária cuja vigência ou eficácia tenha surgido posteriormente a sua realização. Há retroatividade quando a norma alcança atos ou situações já consumados antes de sua entrada em vigor, adjudicando-lhe determinados efeitos jurídicos.[10]

Tempus regit actum. Ao tempo da realização dos fatos geradores tinha vigência o regime jurídico estabelecido na decisão transitada em julgado, de modo que posterior decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, somente atingirá retroativamente o regime jurídico atribuído àqueles fatos se o fizer para beneficiar o contribuinte, jamais para prejudicá-lo, o que ocorreria caso se permitisse, por exemplo, que fossem exigidos tributos não recolhidos no passado com fulcro na decisão judicial individual que tenha declarado a inconstitucionalidade incidenter tantum da lei tributária.

O princípio da segurança jurídica seria violentado, caso a pronúncia de constitucionalidade pudesse fazer nascer, retroativamente, obrigações tributárias já extintas por força da eficácia da coisa julgada individual que estabelecesse a invalidade da norma tributária que as fundamenta. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária apóia-se no tripé: legalidade, tipicidade e previsibilidade da ação estatal. Como lapidarmente observou César García Novoa “a tipificação das condutas constitutivas dos fatos imponíveis é fundamental na definição das normas que integram o ordenamento tributário. E conseqüentemente este setor do ordenamento teria como requisito inelutável a necessidade de que o particular conheça com clareza as conseqüências dos seus atos, isto é, conheça o tipo de comportamento concreto a que o ordenamento vincula a obrigação de pagar o tributo”.

E conclui aquele autor que “recordando que a segurança jurídica que devemos admitir neste setor do ordenamento é a chamada segurança ‘no Direito’, sua acepção não poderá ser outra que aquela formulada por Hensel no sentido de que somente pode falar-se de um Direito substancialmente seguro quando o ordenamento introduza ‘certeza ordenadora’, o que inevitavelmente leva à idéia de determinabilidade das conseqüências jurídicas dos atos dos particulares, e desde esta perspectiva, à idéia de previsibilidade dessas conseqüências”.[11]

O princípio da confiança e da boa-fé nas relações de direito público também seria desatendido caso a pronúncia de constitucionalidade pudesse retroagir para desfazer a eficácia passada da decisão de inconstitucionalidade proferida incidenter tantum. Nunca é demais lembrar que o Estado está vinculado pelo dever de boa-fé nas relações jurídicas com particulares. Os governantes devem proceder no comando do Estado agindo de boa-fé com seus governados, uma vez que é por conta e ordem destes que eles lá se encontram.[12]

Com efeito, o desfazimento da eficácia retroativa da coisa julgada individual, que produzisse situação mais onerosa para o contribuinte, representaria autêntica penalidade para aquele que confiando no Poder Judiciário comportou-se na forma determinada por esse Poder por meio de decisão transitada em julgado.

Tal exegese conduziria a que o Estado que produziu a lex specialis consubstanciada na coisa julgada individual pudesse se aproveitar do posterior desfazimento dessa em face da pronúncia de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, o que é incompatível com os alicerces normativos do Estado Democrático de Direito. Ademais, tal retroatividade operaria contra a imperatividade e a autoridade da função jurisdicional materializada na decisão judicial transitada em julgado, o que também não é consentâneo com as exigências do Estado Democrático de Direito.

O exercício regular de direito também impede o desfazimento da eficácia retroativa da coisa julgada fundada na declaração incidenter tantum da inconstitucionalidade de norma tributária, posteriormente pronunciada como constitucional em sede concentrada de constitucionalidade. Com efeito, aquele que se comportou na forma do direito aplicável, na dicção do que definido pelo Poder Judiciário apreciando relação jurídica concreta, não pode ser penalizado por ter agido desta forma. Em outras palavras, o contribuinte não pode ver desfeita a eficácia retroativa da coisa julgada e ver-se obrigado a recolher tributo que não tenha sido recolhido no passado em exercício regular do direito que lhe foi definido pelo Poder Judiciário.

A superveniente pronúncia de constitucionalidade, proferida pelo Supremo Tribunal com eficácia geral, opera a alteração no critério jurídico adotado para a aplicação da norma tributária relativamente ao contribuinte até então beneficiado pela declaração incidenter tantum de inconstitucionalidade, de modo que por força do art. 146 do CTN eventual lançamento tributário somente poderá alcançar fato gerador ocorrido posteriormente àquela alteração.

Por último, o desfazimento da eficácia retroativa da coisa julgada a permitir a exigência de tributos não recolhidos, com fulcro em decisão que tenha declarado incidenter tantum a inconstitucionalidade da exigência tributária, também não é solução compatível com a ordem constitucional porque desconsidera o fato de que tributo é custo de produção das unidades econômicas, o qual é repassado a preços de bens e serviços comercializados no mercado. Assim sendo, exigir tributos retroativamente equivale a promover espúria tributação sobre o patrimônio das pessoas jurídicas, na medida em que estas terão que invadir seu patrimônio para cumprir dever tributário que não foi contemplado no passado no cálculo do custo de produção de bens e serviços então comercializados, conduta então autorizada pelo Poder Judiciário de forma definitiva.

Logo, o princípio da unidade da Constituição e a articulação entre os diferentes imperativos constitucionais, por ele exigida, impõe que a declaração de constitucionalidade proferida na via concentrada atinja apenas a eficácia futura da coisa julgada individual, fundada na inconstitucionalidade incidenter tantum da mesma norma objeto daquele controle, mantendo-se a eficácia pretérita da coisa julgada individual.

5.3. Não cabimento de ação rescisória

Atualmente, a ação rescisória vem sendo utilizada para o desfazimento de decisão judicial transitada em julgado em sentido contrário à posterior decisão do Supremo Tribunal Federal sobre idêntica questão constitucional.

Tal alternativa não nos parece adequada na hipótese de superveniente decisão declaratória da constitucionalidade da norma tributária, já que a adoção da ação rescisória gerará a desconstituição ex tunc da coisa julgada produzida na ação individual, o que agredirá a segurança jurídica, os princípios da irretroatividade da lei tributária, da confiança e boa-fé, do respeito ao legítimo exercício de direito, e a regra da eficácia ex nunc das alterações nos critérios jurídicos de lançamento e da natural repercussão econômica do custo tributário.

A ação rescisória é instrumento processual dotada de efeitos ex tunc, de modo que uma vez julgada procedente, restaura-se o status quo ante, o que na hipótese de preexistente decisão judicial declarando a inconstitucionalidade da norma tributária impositiva, significaria admitir que a Administração Tributária pudesse impor ao contribuinte o recolhimento de todo o tributo que teria deixado de ser recolhido por força de decisão judicial que garantia tal comportamento.

Vale dizer, a admissão de ação rescisória implicaria impor ao contribuinte, que acreditou nas instituições estatais (especialmente no Poder Judiciário), comportando-se segundo os termos judicialmente estabelecidos de forma definitiva, o ônus de tal crença.

O princípio da supremacia da Constituição, manifestado na autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal, deve ser ponderado e equilibrado com outros comandos da própria ordem constitucional, como exige o princípio da unidade da Constituição, o que in casu impõe o entendimento segundo o qual a pronúncia de constitucionalidade, embora dotada de efeitos gerais, deve ter efeitos apenas ex nunc, isto é, deve atingir apenas os fatos jurídicos praticados após a sua existência, livrando-se de sua incidência os fatos acobertados pelo manto da coisa julgada individual.

Por promover alteração apenas no plano da eficácia temporal da coisa julgada, a pronúncia de constitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal não constitui fato jurídico a autorizar a propositura de ação rescisória contra a preexistente decisão judicial em sentido contrário, o que, pelo natural efeito desse instrumento processual, implicaria indesejada retroatividade maligna e juridicamente espúria.

Portanto, incabível é a propositura de ação rescisória, na hipótese ora comentada, tendo em vista a circunstância de que a decisão individual transitada em julgado não violou a Constituição, apenas conferiu-lhe interpretação diferente daquela que posteriormente foi atribuída pelo Supremo Tribunal. No entanto, a decisão da Corte Suprema com efeitos gerais, após a sua publicação no Diário Oficial, apenas retira a eficácia da norma jurídica individual e concreta, proferida em sentido diverso, para regular os fatos jurídicos tributários ocorridos após essa publicação.

6. Coisa julgada individual declaratória da inconstitucionalidade incidenter tantum de norma tributária e posterior decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a constitucionalidade da mesma norma, em sede de controle difuso

A pronúncia superveniente de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal pode ocorrer também na via do controle difuso. Em matéria tributária tal circunstância se realiza, sobretudo, por julgamento de recursos extraordinários por aquele tribunal.

Os efeitos de tal decisão sobre preexistentes coisas julgadas individuais em sentido contrário, isto é, fundadas na inconstitucionalidade da mesma norma, são semelhantes àqueles produzidos pela decisão de constitucionalidade em controle concentrado, embora o controle difuso de constitucionalidade gere processualmente apenas efeitos inter partes.

A eficácia subjetiva processual do controle difuso é apenas teoricamente limitada, pois, como a experiência demonstra, qualquer decisão de constitucionalidade proferida definitivamente pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, mesmo na via incidental, representa inegável fato jurídico com efeitos extraprocessuais observados claramente na eficácia reforçada que a norma sindicada ganha após tal decisão, tendo em vista as tendências do controle de constitucionalidade vividas pelo Brasil na atualidade.

Com efeito, no que tange às lides de natureza tributária, a manifestação do Plenário do Supremo Tribunal Federal no sentido da constitucionalidade de uma norma tributária, embora não seja dotada de eficácia vinculante e geral, pragmaticamente assume dimensão muito próxima a esta, haja vista a natural repercussão que tal decisão produz nas demais instâncias do Poder Judiciário, na Administração Tributária e nos próprios contribuintes, os quais perdem o interesse prático em discutir judicialmente a questão tributária subjacente, sendo que muitos inclusive desistem das ações já ajuizadas e recolhem o tributo eventualmente suspenso por medidas judiciais provisórias.

Deve-se observar, contudo, a relação de identidade entre o comando judicial já transitado em julgado e a questão constitucional definida pelo Supremo Tribunal Federal já que pelas vicissitudes do controle difuso, não raro, a Corte pronuncia a constitucionalidade de uma norma tributária, mas deixa outras questões constitucionais em aberto porque não debatidas processualmente, o que ocorre por força dos rigores do requisito do prequestionamento, os quais, no entanto, vêm sendo reduzidos pela jurisprudência daquele tribunal em nome da uniformidade, definitividade e autoridade de suas decisões.

Observada a relação de identidade, a pronúncia de constitucionalidade operará alteração apenas no plano da eficácia da coisa julgada preexistente, impedindo que a mesma permaneça eficaz para regular no futuro os efeitos jurídicos dos fatos subjacentes a sua produção.

Os efeitos extraprocessuais da pronúncia de constitucionalidade em controle difuso operam a partir do trânsito em julgado da decisão final proferida pelo Supremo Tribunal Federal. A partir de tal data, a decisão judicial transitada em julgado fundada na inconstitucionalidade da norma declarada válida por aquele Tribunal cessa a sua eficácia quanto aos atos jurídicos praticados a partir de tal data, haja vista a eficácia apenas ex nunc daquela pronúncia de constitucionalidade.

Pelas mesmas razões supra-aduzidas, também é incabível a propositura de ação rescisória para desconstituir ex tunc a eficácia retroativa da decisão transitada em julgado em sentido contrário àquele posteriormente definido pelo Supremo Tribunal Federal.

 

[1]              Corso di diritto processuale civile. Parte I. Milano: Giuffrè, 1959, p. 292. Em outra parte de seu valioso estudo (p. 304), assim conclui Micheli: “La cosa giudicata fornisce la lex specialis e quindi la nuova regolamentazione del rapporto tra le parti proprio perchè il comando del giudice si sostituisce con la sua efficacia vincolante alla disciplina eventualmente prima esistente, talchè non si può negare la preminenza del profilo processuale della cosa giudicata come espressione di un mezzo di tutela la cui attuazione spetta costituzionalmente ad un organo dello stato” (grifo do original).

[2]              Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 7. Ed. São Paulo: RT, 2002, p. 801.

[3]              FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Coisa julgada em matéria fiscal (identidade de objeto). Revista de Direito Tributário, São Paulo: RT, vol. 43, p. 78.

[4]              CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1.147. Gilberto Bercovici (O princípio da unidade da constituição, Revista de Informação Legislativa, vol. 145, p. 97) observa que “o objetivo primordial do princípio da unidade da Constituição é o de evitar ou equilibrar discrepâncias ou contradições que possam surgir da aplicação das normas constitucionais. A interpretação constitucional, ao ser balizada pelo princípio da unidade da Constituição, tem por fundamento a consideração de que todas as antinomias eventualmente determinadas serão sempre aparentes e solucionáveis, tendo em vista a busca do equilíbrio entre as diversas normas constitucionais”.

[5]              Na Teoria pura do direito (2. ed. Trad. João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 290), afirma Kelsen: “Tal pode ainda revelar-se pelo fato de certas pessoas que, de acordo com a Constituição, participam, ao lado do parlamento, no processo legislativo, tais como o chefe de Estado que promulga as leis ou ministro que referenda os seus atos, poderem ser responsabilizadas e punidas por um tribunal especial pela chamada inconstitucionalidade de uma lei criada com a sua participação. Este processo não tem de estar ligado a um processo destinado à anulação da lei, se bem que o possa estar”.

[6]              Como observou Robert Alexy (Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 77), os princípios não conflitam, mas colidem, o que, aliás, os difere das regras jurídicas. “A diferença entre regras e princípios demonstra-se realmente nas colisões de princípios e nos conflitos de regras” (Der Unterschied zwischen Regeln und Prinzipien zeigt sich am deutlichsten bei Prinzipienkollisionen und Regelkonflikten).

[7]              GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 227.

[8]              O Plenário do Supremo Tribunal Federal está apreciando essa questão constitucional no julgamento do RE n. 240.785, atualmente com pedido de vista.

[9]              Sobre a eficácia temporal da coisa julgada, ver Remo Caponi, L’efficacia del giudicato civile nel tempo. Milano: Giuffrè, 1991.

[10]            CARRAZZA. Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 319

[11]            NOVOA, César García. El principio de seguridad jurídica em materia tributaria. Barcelona: Marcial Pons, 2000. p.102.

[12]            SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade civil do Estado intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 225-227.