Arbítrio Fiscal

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 07.03.2005

 

Em um Estado Democrático de Direito, a maior das garantias individuais que os contribuintes titularizam contra o arbítrio fiscal ainda é o princípio da legalidade tributária, apesar de todas as agressões que esta norma jurídica fundamental tem sofrido com as maiorias parlamentares construídas pelo Chefe do Poder Executivo, utilizando, muitas vezes, de métodos pouco ortodoxos de convencimento.

O princípio da legalidade tributária é fator que impede que os agentes fiscais possam formular exigências fiscais, através de autos de infração, motivadas pelo seu simples “querer” ou “achar”. A legalidade submete a vontade do agente fiscal à vontade da lei objetivamente formulada no texto legal. O agente fiscal é servo da lei; somente pode exigir tributos na estrita consonância do que lhe autoriza a lei tributária; nem aquém, nem além do que prescreve a lei.

Vale registrar que a garantia da legalidade tributária é limite que se impõe diretamente às autoridades do Poder Executivo incumbidas do dever-poder de lançar tributos, razão pela qual é vedada constitucionalmente a existência de regras administrativas (decretos, regulamentos, isntruções e portarias) que ampliem a autorização e os limites para a exigência de tributos previstos na lei tributária.

No entanto, não raro são os casos de arbítrio fiscal, onde as autoridade administrativas, agindo investidas da presunção de validade dos seus atos, formulam exigências tributárias completamente afastadas do que a lei lhes autoriza.

Exemplo de arbítrio fiscal vem sendo cometido pelas autoridades fiscais estaduais através de lançamentos tributários fundados em mero “movimento de caixa” das empresas. Segundo tal sistemática, vem-se exigindo ICMS (acrescido de juros e multa) sobre uma espécie de “caixa presumido” ou “caixa omitido”, produto de um confronto, tosco e mal-acabado, entre simples entradas de recursos (cujas saídas nem sequer são comprovadas) com despesas também presumidas (em alguns casos inventadas) pela Fiscalização.

Vale dizer, agentes fiscais estaduais vêm lançando ICMS com base em presunções fiscais (epigrafadas como “omissão de receitas”) que, além de não ter qualquer apoio na legislação tributária complementar ou estadual, não guardam qualquer relação com a materialidade tributável pelo ICMS autorizada pela Constituição Federal e pelas lei complementar federal e lei estadual, que é, como todos sabem, a circulação de mercadorias.

As presunções são instrumentos de aferição indireta da realização de fatos geradores tributários, isto é, fórmulas jurídicas segundo as quais o direito prevê certos fatos ou circunstâncias que uma vez ocorridos, permitem concluir a realização do fato gerador tributário, segundo um juízo normal de probabilidade. As presunções em matéria tributária devem preencher três condições de validade.

Primeira condição: a sistemática de presunção deve estar exaustivamente contemplada na lei tributária. Compete à lei definir os fatos ou circunstâncias que, uma vez ocorridos (a demonstração da sua efetiva ocorrência é dever da autoridade fiscal), autoriza a conclusão de que o fato gerador tributário também se realizou, sendo devido o tributo pelo contribuinte, caso o mesmo não o tenha recolhido adequadamente. Logo, sem previsão na lei tributária (e não em meros regulamentos), não podem as autoridades exigir tributos com base em juízos de probabilidade por elas simplesmente “imaginados” ou “criados”.

Segunda condição: a norma de presunção deve guardar conexão material com o fato gerador tributário. Exemplificando: a mera movimentação de caixa ou o saldo bancário de uma empresa não pode servir como presunção do fato “circulação de mercadorias” (fato gerador do ICMS), pois este imposto estadual, legal e constitucionalmente, não incide sobre auferimento de receita ou acréscimo patrimonial, mas sobre a efetiva saída de mercadorias do estabelecimento do contribuinte, o que torna indispensável a verificação dos livros que registram a movimentação do estoque da empresa. Logo, o legislador não é livre para criar qualquer presunção tributária, a qual deve ser razoável e logicamente justificável, segundo a materialidade constitucional de cada tributo.

Terceira condição: lançamentos tributários somente podem se fundar em presunções, diante de situações excepcionais, isto é, quando ausentes as condições normais que permitem aos agentes fiscais verificar diretamente, pelos meios normais, a realização do fato gerador tributário. Em outras palavras, os agentes fiscais não podem desprezar a análise de toda a escrituração fiscal contábil do contribuinte e exigir o tributo com base em presunções, ainda que previstas na lei tributária. A excepcionalidade é marca indelével do lançamento apoiado em presunção fiscal.

No caso ora analisado – lançamento com base em meras movimentações de caixa da empresam, caracterizadas como hipótese esdrúxula de “omissões de receitas” – nenhuma das três condições para a exigência de ICMS com base em presunções está presente, o que torna manifesto o arbítrio fiscal praticado por alguns agentes do Fisco estadual paraense, fato digno de registro público.

No momento em que a sociedade brasileira vem manifestando o seu repúdio à sanha arrecadatória do Fisco Federal, é hora de se instaurar uma reflexão de outra ordem, qual seja, a responsabilização patrimonial pessoal dos agentes fiscais (e não simplesmente do Tesouro Público que, afinal, contempla o patrimônio da sociedade) que geram exigências fiscais manifestamente ao arrepio da ordem jurídica, sem qualquer apoio na legalidade.

A busca da reparação individual contra os abusos praticados na aplicação da lei tributária é manifestamente possível no contexto constitucional brasileiro e representa inegável avanço na construção de uma relação entre Fisco e contribuinte pautada pelo respeito mútuo e pelo espírito republicano de responsabilidade no exercício do poder.