Verticalização e democracia

O Estado de Direito é uma das maravilhas construídas historicamente pela civilização ocidental. Esta fórmula jurídica pode ser sintetizada como o exercício do poder sob e através de regras jurídicas previamente discutidas e aprovadas pelos representantes do povo. O Estado de Direito reduz em uma só expressão os ideais de democracia, legalidade e representatividade. As normas jurídicas constituem as “regras do jogo” sob as quais se organiza o Estado do Direito. Neste sentido, exige-se com força jurídica que as leis que regulam a conduta humana e o desenrolar do exercício democrático do poder sejam dotadas de previsibilidade, estabilidade e segurança.

Todo este arcabouço, a um só tempo axiológico e normativo, do Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal Brasileira) foi negligenciado pelo Tribunal Superior Eleitoral através da Resolução 20.993 cujo artigo quarto, parágrafo primeiro, determina que os partidos políticos que lançarem, isoladamente ou em coligação, candidato à eleição de Presidente da República não poderão formar coligações para eleição de Governador de Estado, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual ou Distrital com partido que tenha, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial. Esta determinação configura a verticalização das candidaturas: o quadro eleitoral nacional deve ser reproduzido nos Estados.

Em primeiro lugar, a Constituição Federal estabelece que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data da sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorre até um 1 (um) ano da data da sua vigência”. Parece claro até a um neófito em Hermenêutica de textos normativos que o termo “lei” em tal dispositivo constitucional alude à “regime jurídico” e não a simples documento legislativo. Este dispositivo constitucional consagra o princípio da anualidade eleitoral, consubstanciador de um ideal de segurança e estabilidade das regras do jogo eleitoral. Afirmar o contrário seria desconhecer a mais elementar diretriz de Hermenêutica Jurídica segundo a qual deve sempre o intérprete do Direito olhar além da literalidade do texto para alcançar o real sentido da normatividade a ele (texto) subjacente.

Admitindo-se a validade da interpretação formulada pelo Tribunal Superior Eleitoral, parece óbvio que o mesmo implica uma alteração no regime jurídico aplicável às próximas eleições, de modo que deveria se submeter ao princípio da anualidade eleitoral. Lembro-me neste sentido que quando alguns partidos exigiram que fosse adotado nas próximas eleições um processo tecnológico de impressão do voto (já disponível no mercado) – objetivando reforçar as garantias de lisura do pleito, na medida em que com tal instrumento poder-se-ia com mais segurança proceder-se à recontagem de votos –  houve quem sustentasse a impossibilidade de tal adoção porque o aludido processo implicava alteração das “regras do jogo” e desta forma seria ofensiva ao princípio da anualidade eleitoral. Depois de algum debate, o voto impresso foi abolido do próximo pleito.

Assim, o simples fato de se aplicar ao próximo pleito já me parece suficiente para concluir pela inconstitucionalidade da determinação do Tribunal Superior Eleitoral.

Em segundo lugar, cabe uma reflexão acerca do papel do Tribunal Superior Eleitoral nas eleições. Esta Corte apóia a sua determinação no artigo 105 da Lei 9.504/97 que lhe reconhece atribuições para expedir todas as instruções necessárias à execução da referida Lei. Ora, também não é desconhecido de qualquer iniciado em questões jurídicas que o termo “expedir instruções necessárias à aplicação da Lei” tem conteúdo nitidamente regulamentar, de modo que jamais poderia o órgão dotado de tal função (no caso, o TSE) inovar a ordem jurídica, isto é, estabelecer regras jurídicas não previstas claramente no texto da lei que lhe atribuiu tal função. Em outras palavras, a função regulamentar não pode, a pretexto de interpretar a lei, criar outros comandos jurídicos que não estejam claramente nela previstos.

Por outro lado, não se encontra na Lei nº 9.504/97 qualquer dispositivo que possa referendar a interpretação construída pelo TSE para as coligações partidárias. Pelo contrário, o artigo sexto da referida Lei contempla regra cuja amplitude autoriza concluir no sentido contrário àquele a que se encaminhou o TSE.

Assim, se não bastasse o vício de inconstitucionalidade por ofensa ao artigo 16 da Carta Constitucional, a citada Resolução do TSE parece-me ainda padecer de ilegalidade por exorbitar a função regulamentar que lhe reconhece a Lei 9.504/97, criando comando dotado de natureza deôntica ao completo arrepio da legislação.

Ao que tudo indica, teria o TSE apoiado a sua exegese no artigo 17, I da Constituição Federal segundo o qual os partidos políticos devem ter caráter nacional. Ainda que tal interpretação tenha alguma razoabilidade, fica a pergunta: por que idêntica regra não foi aplicada ao pleito presidencial anterior? Àqueles que sustentam que a citada interpretação surgiu apenas agora por força de uma Consulta formulada ao Tribunal, respondo com o argumento do próprio TSE, segundo o qual a aludida Resolução nada mais é do que o produto do exercício da função regulamentar, que, de resto, sempre incumbiu àquele Tribunal. Logo, no exercício desta função constitucional poderia tranqüilamente aquele Tribunal ter expedido idêntica exegese na eleição presidencial anterior.

As regras do jogo democrático não são compatíveis com oportunismos e interpretações do Direito formuladas “ad hoc”. A legitimidade do exercício do poder nas sociedades democráticas se apóia no respeito às regras do jogo. Cabe à sociedade brasileira refletir e criticar abertamente, dentro do respeito que a convivência democrática exige, os rumos que o pleito que se avizinha parece estar tomando. Aos atuais titulares do poder, nas palavras do jusfilósofo italiano Norberto Bobbio, cabe lembrar que em um Estado Democrático de Direito, “não é o rei que faz a lei, mas a lei que faz o rei.” Oxalá o Supremo Tribunal Federal cumpra o seu papel de Guardião da Constituição e dos valores democráticos e restaure a legitimidade jurídica do ora abalado processo eleitoral.