Cumulatividade tributária

Um dos aspectos mais perniciosos do sistema tributário brasileiro é a incidência cumulativa de contribuições sociais durante a cadeia produtiva, notadamente aquelas incidentes sobre o faturamento das empresas (PIS e COFINS) que totalizam o absurdo montante de três vírgula sessenta e cinco por cento da receita bruta do empreendimento. Qualquer proposta séria de reforma tributária que objetive conferir racionalidade ao sistema tributário brasileiro deve procurar resolver este problema, o que não é tarefa fácil já que somente a título de contribuições sobre o faturamento são arrecadados anualmente cerca de 62 bilhões de Reais.

A imprensa noticia que nesta semana será apresentado no Congresso Nacional, com o beneplácito do Poder Executivo, projeto de lei que altera o sistema de incidência do PIS-PASEP e que objetiva iniciar um processo de desoneração da produção quanto à incidência cumulativa de contribuições sobre o faturamento. O aludido projeto transforma o PIS-PASEP em contribuição não-cumulativa, isto é, o tributo passará a incidir apenas sobre o valor agregado pelo agente econômico em cada etapa do processo produtivo, a exemplo do que acontece com os impostos indiretos (ICMS e IPI).

Como as alterações da legislação tributária obedecem à lógica do resultado (arrecadação garantida), a alíquota do PIS desde logo aumentará para um vírgula sessenta e cinco por cento, o que representa quase o triplo da atual alíquota (zero vírgula sessenta e cinco por cento), sob o argumento de que o referido aumento objetiva compensar a diminuição da base de cálculo da contribuição causada pela implantação do regime de não-cumulatividade.

Não há qualquer razão plausível, a não ser o medo de ousar, para que a proposta trate apenas do PIS, deixando de fora a COFINS, contribuição que incide sobre três por cento da receita bruta das empresas. Se alargassem a proposta também para a COFINS estariam o Governo Federal e o Congresso Nacional dando um grande passo em direção a uma verdadeira reforma tributária no Brasil.

No entanto, a proposta de transformar as contribuições sociais sobre o faturamento em tributos não cumulativos, embora represente significativo avanço no sentido de resgatar a competitividade da economia nacional e conferir racionalidade ao sistema tributário, traz consigo um perigo para o qual devemos estar alerta. Todas as propostas de reforma tributária que circulam no Congresso Nacional ou nos programas de governo dos pré-candidatos à Presidência da República contemplam a criação de um Imposto sobre Circulação de Mercadorias de âmbito nacional ou simplesmente Imposto sobre o Valor Agregado (ICMS federal ou IVA). Ora, contribuições sociais sobre o faturamento não-cumulativas assemelham-se economicamente a um imposto sobre valor agregado, o que pode significar a criação de uma nova cascata tributária, dois tributos (não cumulativos) sobre a mesma base de cálculo.

É importante que se faça este alerta pois a História recente da tributação no Brasil demonstra que o Poder Público não abre mão da receita gerada pelos tributos que arrecada, de modo que não se observa por parte do Poder Público qualquer movimento no sentido de extinguir ou reduzir fontes de receita, pelo contrário, o que se verifica é a crescente expansão destas fontes. Neste sentido, não é absurdo imaginar que um futuro governo pretenda criar um imposto sobre o valor agregado de âmbito nacional e manter as atuais contribuições sociais sobre o faturamento sob uma sistemática de não-cumulatividade. Se tal ocorrer – o que convenhamos não é impossível – de novo uma boa idéia tributária terá se transformado em um grande desastre para os contribuintes.

A timidez do aludido projeto de lei vai mais longe. A não-cumulatividade do PIS não alcançará a) as empresas que recolhem seus tributos sob a sistemática do SIMPLES, b) os setores submetidos à regime especial de incidência, tais como derivados e petróleo e indústria farmacêutica, que continuarão recolhendo a contribuição em regime monofásico, c) as empresas rurais, d) as cooperativas e e) as empresas submetidas ao regime tributário do lucro presumido ou arbitrado. Para todas estas empresas, o PIS continuará representando um tributo cumulativo.

Se este intento for alcançado, terá se criado um autêntico “monstrengo tributário”. Um mesmo tributo será cumulativo para alguns e não cumulativo para outros. Fica a pergunta: como compatibilizar esta diferença de regimes no seio das diferentes cadeias produtivas, sem gerar iniqüidades? O que acontecerá com os créditos (de matéria prima e insumos) acumulados por uma empresa no meio da cadeia produtiva que esteja, por exemplo, submetida ao SIMPLES? Perderá estes créditos? Se tal ocorrer, a tentativa de desonerar a produção terá servido de castigo para aqueles que mais precisam de apoio do Poder Público, o pequeno e médio empresário, verdadeiros agentes indutores do desenvolvimento deste País.

E mais: manter cumulativo o PIS para as empresas submetidas ao lucro presumido e arbitrado, significa restringir a mudança no perfil da contribuição apenas para as empresas submetidas ao regime do lucro real, isto é, aquelas que pagam Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro apenas sobre o lucro que efetivamente apuram, diferentemente das empresas submetidas ao lucro presumido e arbitrado que recolhem aqueles tributos sobre um percentual do seu faturamento, independentemente da existência ou da grandeza do lucro efetivo que auferiram. Via de regra, apenas grandes empresas submetem-se ao regime do lucro real, seja porque faturam mais de vinte e quatro milhões de Reais por ano, seja porque têm lucratividade muito baixa (abaixo do percentual tomado pela legislação para a tributação sob o lucro presumido). Vale dizer, a aludida alteração tributária ao alcançar apenas as empresas sob lucro real servirá para reduzir ainda mais a carga tributária sobre aqueles que, em tese, já recolhem menos tributos federais.

Esta reflexão é importante na medida em que permite e exige uma visualização global do conjunto de incidências tributárias em que se transformou o sistema tributário brasileiro. É necessário que o cidadão esteja sempre atento tendo em vista a circunstância de que muitas vezes uma alteração pontual da legislação tributária, aparentemente salutar e avançada como a ora comentada, pode contemplar iniqüidades que, via de regra, atingem apenas os já sofridos pequenos e médios empresários deste maravilhoso país. Portanto, apurar o espírito crítico quanto ao legislador tributário é uma tarefa que devemos cultivar.