Parlamento e tributo

A Constituição Federal brasileira caracteriza-se pelo seu caráter excessivamente analítico na disciplina de uma série de matérias, o que termina por gerar dúvidas interpretativas acerca do real significado de alguns comandos constitucionais.

Uma das matérias sobre a qual, no passado, existia controvérsia interpretativa era aquela concernente à possibilidade de membros do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores) proporem projetos de lei disciplinando matéria tributária no seus mais diferentes aspectos, desde a instituição de tributos, sua majoração ou redução, através de incentivos fiscais e isenções, ou ainda penalidades tributárias.

A análise da questão deve partir do modelo estabelecido na Constituição Federal para o processo legislativo. É sabido que é vedado às Constituições Estaduais ou às Leis Orgânicas Municipais contemplarem regras de processo legislativo que conflitem com a disciplina prevista na Carta Federal. Vale dizer, qualquer regra estadual ou municipal que limite ou amplie o que estabelece a Constituição Federal em matéria de processo legislativo é terminantemente inconstitucional.

A Constituição Federal enumera exaustivamente no artigo 61, parágrafo primeiro, as matérias cuja iniciativa legislativa é de competência privativa do Presidente da República. Por força da vinculação que a normativa federal exerce sobre os planos estadual e municipal, em matéria de processo legislativo, também são de iniciativa reservada aos Governadores e Prefeitos apenas os projetos de lei relativos às matérias enumeradas no citado artigo 61, parágrafo primeiro.

A dúvida interpretativa surgiu porque a letra “a” do inciso II do parágrafo primeiro do mesmo artigo 61 estabelece que é de iniciativa privativa do Presidente da República (e logo, de Governadores e Prefeitos) os projetos de lei que disponham sobre “organização administrativa e judiciária, matéria tributária (grifo) e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios (grifo).

A expressão “matéria tributária” constante da citada norma constitucional levou alguns a entender que toda e qualquer “matéria tributária” estaria sob reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal já por diversas vezes (como, por exemplo, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 724, 2304, 2392 e 2659) decidiu que a expressão “matéria tributária” constante do art. 61, parágrafo primeiro, inciso II, letra “a” da Constituição Federal alude exclusivamente aos Territórios, ou seja, apenas nos Territórios a iniciativa de projetos de lei em matéria tributária está reservada ao Chefe do Poder Executivo.

A questão está tão sedimentada no Supremo Tribunal Federal que na ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.659, o relator Ministro Celso Jobim, registrou que a alegação de vício de iniciativa parlamentar em matéria tributária encontra-se “superada” na Jurisprudência da nossa Suprema Corte, não havendo mais qualquer dúvida sobre o tema.

Vale registrar ainda que o direito de o Parlamentar apresentar projetos de lei em matéria tributária é amplo, ou seja, alcança inclusive matérias relacionadas a reduções tributárias e incentivos fiscais. Não possuem, assim, qualquer fundamento jurídico, segundo expressamente já reconheceu o Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas retro citadas, a alegação de que o Parlamentar não poderia propor iniciativas legislativas em matéria de incentivos tributários porque assim o fazendo estaria imiscuindo-se em “matéria orçamentária”, esta, sim, de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, por força do artigo 165 da Constituição Federal.

A possibilidade de o Parlamentar propor projetos de lei em matéria de incentivos fiscais, foi objeto, entre outros precedentes, da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 724, tendo o Supremo Tribunal Federal nesta ocasião decidido que “o ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara – especialmente para fins de instauração do respectivo processo legislativo – ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado.”

Assim, após os precedentes retro citados não resta qualquer dúvida na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de que os membros dos Parlamentos brasileiros, nas três esferas da Federação (União, Estados e Municípios), possuem entre as suas prerrogativas fundamentais e inalienáveis o direito a apresentarem projetos de lei em matéria tributária, inclusive contemplando reduções, incentivos ou majorações tributárias.

Outra não poderia ser a conclusão para a questão, tendo em vista a circunstância de que no bojo de uma Carta Constitucional pautada pelos princípios democráticos e republicanos, onde é reconhecida inclusive a iniciativa legislativa popular, retirar-se dos Parlamentos o direito à iniciativa de leis tributárias, através de uma interpretação equivocada da Constituição, significaria desconhecer o valor da representação popular e amesquinhar a função parlamentar.