Regras de procedimento

O regramento jurídico da relação Estado x contribuinte constitui incontrastável garantia conquistada pelas sociedades que decidiram viver segundo os princípios do Estado Democrático de Direito. Esta disciplina tem um objetivo definido: proteger o indivíduo e impedir a consumação de arbitrariedades cometidas pelos agentes encarregados da função de fiscalização e arrecadação de tributos.

A relação tributária tem no lançamento o seu momento crucial, pois é através dele que a lei tributária ganha concreção. No Brasil, o Código Tributário Nacional define o lançamento como procedimento administrativo no bojo do qual a autoridade administrativa constata a ocorrência do fato gerador, verifica os recolhimentos dos tributos respectivos e, em caso de falta, os exige acrescidos das penalidades cabíveis, conforme o caso.

Procedimento pressupõe regulação objetiva, na medida em que exige uma ordenação voltada a uma finalidade: a definição do quantum eventualmente devido pelo sujeito passivo tributário. Neste sentido, é que são editadas normas jurídicas regulando a atividade administrativa de lançamento tributário.

No intuito de melhor regular a atividade de lançamento tributário e impedir a consumação de abusos têm sido editadas normas de procedimento (Instruções, Portarias) relativas à definição do momento de início da fiscalização, objeto da fiscalização (tributos e períodos fiscalizados), autoridade encarregada da atividade, tempo limitado de fiscalização e forma de sua prorrogação.

Em nome da garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e dos objetivos que nortearam a edição daquelas normas de procedimento tributário, o sujeito passivo sob fiscalização é intimado da realização de todos os atos concernentes ao procedimento contra si instaurado.

O grau de detalhamento assumido por algumas normas de procedimento não influi na sua normatividade, desde que tenham um núcleo comum: sejam  destinadas a conferir maior disciplina e segurança à relação jurídica tributária consubstanciada na afirmação dos princípios constitucionais do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa.

Esta afirmação é importante para afastar-se a interpretação de que o descumprimento das normas de procedimento de lançamento não geram qualquer pretensão jurídica aos administrados, uma vez que teriam como destinatárias exclusivas as autoridades administrativas encarregadas da aplicação da lei tributária.

As normas de procedimento de lançamento, mesmo as de menor hierarquia normativa, como Instruções e Portarias, pressupõem a presença do administrado (o sujeito passivo tributário), são voltadas à concretização do conjunto de garantias constitucionais que regulam a relação tributária e por tais razões não podem ser confundidas com simples normas de interesse apenas da Administração Pública (como os atos administrativos que regulam situações individuais dos servidores públicos).

Afirmar que as normas de procedimento de lançamento não vinculam a Administração Tributária significa considerá-las como meros conselhos às autoridades administrativas encarregadas da função de aplicar a lei tributária, cujo atendimento ficaria à livre discrição do agente administrativo. Esta interpretação, além de esvaziar a regra de procedimento da normatividade que lhe é inerente, não encontra amparo na Constituição Federal, nem nas finalidades que presidiram a sua edição.

As regras de procedimento administrativo de lançamento, de um lado, nasceram para melhor disciplinar a atividade de exigência de créditos tributários, conferindo máxima efetividade às garantias constitucionais concernentes à relação jurídica tributária, através da adequada intimação do contribuinte de todos os atos praticados no bojo deste procedimento, e, de outra parte, têm um claro objetivo de política fiscal, qual seja, ordenar a atividade de fiscalização de forma a impedir a consumação dos excessos de outrora, como a transformação da atividade de fiscalização em instrumento de pressão indevida contra os sujeitos passivos tributários.

Em um Estado Democrático de Direito, as normas relativas à disciplina de relações jurídicas de Direito Público, como a tributária, têm como principal função a imposição de limites à liberdade de opção dos agentes públicos, os quais devem estrita obediência ao que o direito lhes prescreve no que tange à prática de atos que interfiram de alguma maneira com a esfera jurídica dos administrados. Verificado o desatendimento ao que determina o direito, impõe-se um resultado inexorável: a ilegalidade da atuação administrativa e dos atos nela praticados.

Neste sentido, o desatendimento pela autoridade administrativa encarregada da atividade de fiscalização de qualquer regra relativa ao procedimento traz como conseqüência jurídica a nulidade do processo administrativo respectivo e do crédito tributário nascido como decorrência do procedimento de lançamento viciado pela ilegalidade.

Por último, deve ser afastado o argumento segundo o qual a interpretação ora formulada poderá trazer prejuízos ao Poder Público já que alguns lançamentos serão cancelados. O repúdio a este argumento deve ser contundente, já que é contrário ao princípio da legalidade, fundamental no Estado Democrático de Direito, segundo a qual o direito se impõe sem ressalvas à atividade administrativa, independentemente do seu objeto ou dos fins perseguidos pelo Poder Público. Vale dizer, os fins buscados pela Administração Pública não justificam os meios por ela utilizados, os quais devem sempre, e em qualquer hipótese, estar conformes ao que prescreve a lei.

Sustentar suposto prejuízo ao Poder Público, como forma de se manter válida atuação administrativa contrária ao Direito, significa manifesta violência contra os mais comezinhos princípios de regulação do exercício do poder sob a égide de uma Constituição comprometida com a liberdade.