Tributação ideal

O tema da tributação ideal é comum na obra dos grandes teóricos do Direito Tributário e das Finanças Públicas e, no momento em que se discute reformas no sistema tributário brasileiro, importante lembrar algumas notas sobre a questão.

Um sistema tributário deve ser o reflexo do projeto de futuro de uma sociedade. A intervenção estatal através da instituição e cobrança de tributos normalmente é proporcional à aspiração dos indivíduos por atuações estatais sobre os domínios econômico e social. Se a sociedade espera que a resolução dos seus problemas seja conduzida e executada pelo Estado, natural que este utilize o seu poder impositivo para promover as medidas requeridas pelo corpo social. Quanto mais Estado, mais tributo. Interessante notar, no entanto, que o grau de incidência tributária nem sempre corresponde em igual proporção às intervenções estatais almejadas, tendo em vista a natureza dos gastos públicos, o que põe o problema  da alocação dos recursos públicos nas finalidades desejadas pela sociedade e da eleição das políticas públicas perseguidas pelo Estado.

Como demonstrou Michel Bouvier, Professor da Universidade de Paris-Sorbonne, em excelente estudo sobre o tema, o tributo ideal é sobretudo aquele que é reconhecido como legítimo por uma determinada sociedade. Com efeito, a adequação de um tributo às aspirações sociais traz à balha o tema da legitimidade do exercício do poder tributário e da relação entre liberdade individual (e de propriedade) com a solidariedade social. O equilíbrio entre esses dois grandes valores (juridicizados pelo Direito Constitucional) cultuados pelas sociedades ocidentais é que define o grau de legitimidade de um tributo.

Um sistema tributário ideal deve preencher condições mínimas de democratização do seu processo de construção. O “no taxation without representation” (não há tributação sem representação) constitui indisfarçável garantia da humanidade a enredar o exercício do poder de instituir tributos. Toda e qualquer exigência tributária deve passar por um adequado e regulado processo de aprovação pelos representantes do povo, segundo um princípio basilar de democracia representativa que está nos alicerces dos Estados de Direito contemporâneos.

É sabido que nas democracias modernas, os Parlamentos são formados por um grande agrupamento de representantes de setores localizados da sociedades (empresários de diferentes setores, trabalhadores, advogados, médicos, etc), o que torna o processo político um grande palco para a defesa de interesses corporativos. A lei tributária muitas vezes contempla, a claras luzes, aspirações perfeitamente identificadas de certos grupos de pressão. A representação popular nos tempos de hoje já não tem mais a aura de corporificar o ideal democrático, como quando foi concebida pelos pensadores liberais do século XVIII, no entanto é certo que mais fácil e mais positivo para a proteção das liberdades individuais é controlar e vigiar atentamente os Parlamentos do que abdicar da sua existência.

Uma outra importante nota relativa à tributação ideal está na sua indisfarçável conexão com o tema da justiça, o qual consubstancia especial capítulo da Filosofia do Direito. Constitui lição clássica, que a justiça manifesta-se através de três formas: justiça comutativa, distributiva e redistributiva.

Transplantando estas ideais para a tributação, temos que um sistema tributário apoiado sobre um ideal de justiça comutativa, igualaria todos os contribuintes apenas pelo consentimento, sem consideração das suas diferenças econômicas ou sociais; por outro lado, um sistema fundado da justiça distributiva, contemplaria uma tributação proporcional em razão de certos critérios (riqueza, utilização de serviços públicos, ganhos, etc); e um sistema tributário redistributivo teria como centro de preocupações a instituição de tributos progressivos e personalizados que permitissem a transferência de renda, através da imposição tributária, de quem tem mais para o Estado que, pelo menos em tese, a utilizaria em benefício dos despossuídos.

O importante é considerar que qualquer que seja a concepção adotada, um sistema tributário sempre traz subjacente, em maior ou menor medida, um determinado ideal de justiça e a compreensão do seu sentido passa inegavelmente pelas convicções culturais, resultado da evolução histórica de um povo.

Por último, vale registrar ainda três condições que um sistema tributário ideal deve preencher.

Primeiro, um sistema tributário deve estar estruturado juridicamente segundo padrões de racionalidade. Atentam ainda contra racionalização, por exemplo, a existência de diferentes tributos sobre uma mesma base de cálculo, a dificuldade na apuração e no recolhimento dos tributos devidos, a multiplicidade dos deveres acessórios impostos ao contribuinte, a excessividade da carga tributária, a inexistência de regras claras e prévias definindo os deveres tributários.

Segundo, indispensável que o sistema tributário albergue garantias constitucionais inexpugnáveis aos direitos do contribuinte. Este espaço de liberdades individuais contra o arbítrio estatal vai desde a proteção de direitos constitucionais mínimos titularizados pelos contribuintes no Estado de Direito, relativos, por exemplo, ao adequado andamento do processo administrativo fiscal (que envolve as atividades de fiscalização e definição dos créditos tributários) até a afirmação do princípio da proporcionalidade nas sanções tributárias, passando pela proteção contra a aplicação a fatos passados de alterações nas interpretações administrativas que operam em desfavor dos contribuintes.

Terceiro, um sistema tributário ideal deve ser acompanhado de uma administração fiscal eficiente no cumprimento dos deveres de arrecadação impostos pela lei e no atendimento aos pleitos administrativos formalizados pelos contribuintes. A eficiência constitui hodiernamente elemento caracterizador de um sistema tributário ideal. Para tanto, fundamental que políticas de aproximação entre Fisco e contribuinte e de esclarecimento dos direitos do contribuinte sejam promovidas pelas Administrações Fiscais, de modo a reforçar a legitimidade da lei tributária.