Imunidade dos templos

A recente apreensão de malas com dinheiro em espécie sendo conduzidas por Deputado Federal e a justificativa adotada de que tal numerário representava produto de dízimo religioso, logo, livre de qualquer tributação, confere-me a oportunidade para formular algumas linhas acerca do alcance que a atual Constituição Federal reconhece à imunidade tributária de templos religiosos.

Desde a Constituição Federal de 1891, a primeira Carta Republicana, operou-se a separação entre Estado e Igreja, de modo que desde então não há religião oficial no Brasil, cabendo ao Estado brasileiro apenas o respeito aos diferentes credos individuais, como expressão da garantia individual e inalienável da liberdade de culto, elemento componente do conjunto de valores fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Vale dizer, o Estado Brasileiro não pode sufocar a prática dos cultos religiosos, mas também não lhe cabe incentivá-los.

A atual Constituição Federal, na esteira da tradição iniciada pela Constituição de 1946 (art. 31, V, b) e reproduzida na Constituição de 1967 (art. 20, III, b) e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969 (art. 19, III, b), estabelece que é vedada a exigência de impostos sobre os templos de qualquer culto. Este dispositivo traz ao debate o sentido da expressão “templos”. Estaria a franquia constitucional limitada apenas aos impostos que incidem sobre os imóveis nos quais se situam os templos (interpretação restritiva), como por exemplo, o IPTU, ou como templo, deve ser entendida a Igreja, enquanto entidade religiosa, de modo a se proteger da tributação toda a renda auferida com a prática do culto e o patrimônio de titularidade desta entidade?

Esta é uma questão que há muito divide a doutrina pátria. Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed. p. 88-89), por exemplo, afirma que “o templo não deve ser apenas a igreja, sinagoga ou edifício principal, onde se celebra a cerimônia pública, mas também a dependência acaso contígua, o convento, os anexos por força de compreensão, inclusive a casa ou residência especial do pároco ou pastor, pertencente à comunidade religiosa, desde que não empregados em fins econômicos.” No entanto, aquele autor ressalva que “não se incluem na imunidade as casas de aluguel, terrenos, bens e rendas do Bispado ou da paróquia, etc.”

Para efeito de imunidade tributária, o conceito de templo, embora não se confunda com a entidade religiosa, dotada de personalidade jurídica, também não se restringe ao mero espaço físico da igreja, conforme anota José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição, 2005, p. 656), para quem “templos são os edifícios onde se realizam os cultos e a liturgia, e toda edificação vinculada a isso estará imune de impostos, inclusive os conventos e até a casa do sacerdote ou ministro, seja de que religião for, contígua ao templo; se não houver essa contigüidade vinculativa, a imunidade não se estende.”

Doutrinadores como Sacha Calmon Navarro Coelho e Hugo de Brito Machado também entendem estarem fora do alcance da imunidade tributária as rendas auferidas pelas entidades religiosas com a exploração negocial (como o aluguel) de seus bens imóveis.

Esta questão chegou recentemente à reflexão do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 325.822 (RTJ 190/333), onde se discutia se a imunidade religiosa relativa ao IPTU abrangeria todos os bens imóveis da Mitra Diocesana de Jales, inclusive lotes vagos e prédios comerciais dados em locação, ou apenas os prédios destinados à celebração de cultos.

A questão dividiu a Corte (sete contra quatro). No entanto, prevaleceu o entendimento de que a imunidade tributária deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas também o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a finalidade essencial da entidade religiosa. Esta conclusão derivou da interpretação do artigo 150, § 4º da Carta Política, segundo a qual a vedação à cobrança de impostos de “templos de qualquer culto”, contida no mesmos art. 150, inciso VI, letra b, compreende somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais da entidade religiosa.

O voto do Ministro Gilmar Mendes, relator para o acórdão, é elucidativo ao afirmar que “de fato, o dispositivo do art. 150, VI, b, há de ser lido com o vetor interpretativo do § 4º deste mesmo artigo da Constituição. Vê-se, pois, que a letra b refere-se apenas à imunidade dos ‘templos de qualquer culto’; a letra c, a ‘patrimônio, renda ou serviços’. Portanto, o disposto no § 4º alcança o patrimônio, a renda ou serviços dos templos de qualquer culto, em razão da equiparação entre as letras b e c”.

Na visão do Supremo Tribunal Federal, ao se referir a “patrimônio, renda ou serviços”, o artigo 150, § 4º (que se remete ao inciso VI, alínea b do mesmo artigo, onde está a imunidade dos templos) acabou por conferir uma conotação ampliada ao sentido da imunidade tributária religiosa, apoiando-a não mais no sentido da palavra “templo”, mas na destinação que a entidade religiosa dará ao seu patrimônio, renda ou serviços.

Em outro dizer, imóveis de propriedade de entidade religiosa, embora alugados, isto é, não aplicados diretamente na prática do culto religioso, estarão alcançados pela imunidade tributária (livres, assim, da incidência do IPTU) se os rendimentos dos aluguéis forem destinados às finalidades essenciais da entidade religiosa.

Ao invés de interpretar a imunidade tributária religiosa sob uma visão estrutural (onde o importante é natureza do bem, do rendimento ou manifestação de capacidade contributiva), adotou o Supremo Tribunal Federal uma interpretação funcional da norma constitucional imunizante, onde o ponto central reside na destinação da renda ou do bem às finalidades essenciais da entidade religiosa.

Se, como decidiu o STF, para efeito de imunidade tributária, o que importa é a compatibilidade entre a finalidade da entidade e a destinação conferida aos seus bens ou  rendas, certamente aquela Corte será chamada a decidir qual, afinal, é a finalidade das entidades religiosas e se a renda dos cultos, imunes à tributação, em princípio, assim permanecem quando servem à criação e manutenção de impérios de comunicação.