Devolução Tributária I

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 03.05.2004

 

Em um país marcado pela litigiosidade em matéria de tributação, onde avolumam-se no Poder Judiciário processos questionando a validade de exigências fiscais, revela-se de extrema importância a definição do tempo que tem o contribuinte para pleitear a devolução de um tributo cujo recolhimento reputa-se indevido, prazo tecnicamente denominado de prescrição tributária. Superado este prazo, mesmo que o recolhimento afigure-se inconstitucional ou ilegal não terá mais o contribuinte o direito a requerer a sua restituição.

Após um longo debate jurisprudencial, na grande maioria dos tributos, submetidos ao chamado lançamento por homologação, aquele onde o contribuinte apura e recolhe, restando ao Fisco verificar a regularidade do pagamento, os Tribunais definiram que o contribuinte tem o prazo de dez anos para pleitear da devolução do recolhimento que reputa indevido, por ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Em outro dizer, segundo os Tribunais, o contribuinte que apura e recolhe um determinado tributo, tem o prazo de dez anos para solicitar a restituição do mesmo, alegando algum vício de validade na exigência fiscal. Caso mais comum é a propositura de ação judicial com fundamento na invalidade da lei que determina o recolhimento tendo como pedido a devolução do montante recolhido nos últimos dez anos, contados retroativamente desde a propositura da ação.

Insatisfeito com esta interpretação judicial, que permite a restituição de tributos recolhidos indevidamente no prazo de dez anos, a União Federal aprovou a Lei Complementar nº 118 que, a pretexto de adaptar o Código Tributário Nacional – CTN à nova Lei de Falências, contemplou dispositivo com o objetivo claro de reduzir para cinco anos o período de devolução dos tributos exigidos indevidamente e recolhidos pelo contribuinte.

A ofensiva sobre a jurisprudência já firmada, que estabelecia o prazo de dez anos, foi ao ponto de determinar que a redução deste prazo para cinco anos alcançasse inclusive as ações judiciais de devolução já em curso e relativas a recolhimentos indevidos ocorridos no passado, antes, portanto, da vigência da Lei Complementar nº 118.

Como até um neófito em Letras Jurídicas sabe que uma lei quando publicada não pode se aplicar a fatos ocorridos antes da sua edição, o Poder Público utilizou a artimanha jurídica – talvez por acreditar no seu poder de pressão junto ao Poder Judiciário – de conferir natureza interpretativa à regra que determinou a redução do prazo. Como o prazo de dez anos é produto da interpretação de dispositivos do Código Tributário Nacional (arts. 150, § 1º e 168, I), a Lei Complementar nº 118 pretendeu alterar legislativamente a interpretação daquelas normas do Código de modo a que a conclusão fosse no sentido do prazo de cinco e não de dez anos para a devolução de tributos.

Ao se declarar expressamente interpretativa, a Lei Complementar nº 118 pretende aplicar-se aos fatos passados e obter amparo no artigo 106 do Código Tributário Nacional, segundo o qual a lei expressamente interpretativa aplica-se a ato ou fato pretérito. Vale dizer, a citada Lei Complementar utiliza o artifício de se declarar interpretativa para aplicar-se aos fatos passados e encontrar fundamento de validade no próprio Código Tributário que pretende interpretar. Este raciocínio jurídico tortuoso do Poder Público tem um objetivo claro: tungar cinco anos de recolhimentos indevidos efetuados pelos contribuintes, apropriando-se de valores exigidos em contrariedade à ordem jurídica.

Ocorre que a Lei Complementar se auto-impôs um prazo de cento de vinte dias para entrada em vigor, contados a partir da sua publicação, 9 de fevereiro de 2005. Logo, somente após 9 de junho de 2005 a Lei Complementar entrará em vigor. No entanto, como no que tange ao prazo de devolução de tributos, a Lei Complementar 118 se declara interpretativa, e por conseqüência retroativa, se julgado válido tal caráter interpretativo, a redução daquele prazo aplica-se a todos os recolhimentos realizados no passado, independentemente daquele prazo de cento e vinte dias para a entrada em vigor da Lei Complementar.

Fundado na declarada retroatividade da nova norma, o Poder Público começou a alegá-la nas ações judiciais de repetição de tributos em curso (algumas já em fase final), requerendo que o Poder Judiciário determinasse a sua aplicação ao processo e, assim, reconhecesse o direito do contribuinte a apenas cinco anos de devolução e não a dez como já havia concluído a Jurisprudência ao tempo da propositura da ação.

O Poder Público argumenta que como a Lei Complementar tem caráter interpretativo e retroativo deve-se aplicar aos processos judiciais pendentes de julgamento, onde o contribuinte há vários anos requer a devolução de tributos indevidamente recolhidos, muitas vezes há mais de dez ou quinze anos, haja vista a natural demora na tramitação processual e a conhecida insurgência do Poder Público contra as ordens judiciais que determinam as devoluções, manifestada através da interposição de todos os recursos processualmente cabíveis, embora muitas vezes a questão de mérito já tenha se consolidada em favor dos contribuintes.

Esta pretensão do Poder Público foi objeto de amplo debate no Superior Tribunal de Justiça, o qual no passado construiu a interpretação dos dispositivos do Código Tributário Nacional que fixaram em dez anos o prazo para o contribuinte pleitear a devolução do tributo indevido. Aquele Tribunal recentemente concluiu o julgamento de processo onde a aplicabilidade da Lei Complementar nº 118 foi suscitada e afastou a pretensão do Poder Público de concretizar mais uma agressão aos direitos do contribuinte, pelo menos para as ações judiciais propostas até a entrada em vigor da referida Lei Complementar, ou seja, 9 de junho de 2005. Assim sendo, devoluções requeridas até esta data alcançarão dez anos de recolhimentos; pleitos formulados após esta data, somente alcançarão cinco anos, razão pela qual os contribuintes que pretendem litigar devoluções tributárias devem estar atentos para não perderem cinco anos de recolhimentos indevidos, por conta da redução do prazo veiculada pela aludida Lei Complementar 118.