Dias perigosos

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 28.06.2005

 

A nuvem negra do arbítrio vem perigosa e paulatinamente se formando no horizonte da sociedade brasileira. Os fatos recentes comprovam esta afirmação.

Começo pela retomada da esquecida prática da prisão para averiguação, técnica utilizada no passado no auge dos regimes totalitários pelos quais o Brasil passou. Digo estão ocorrendo prisões para averiguação porque pessoas estão sendo presas, e assim mantidas por até dez dias, apenas para que sejam ouvidas pela autoridade judiciária, o que é absolutamente inaceitável em um regime de liberdades constitucionais asseguradas.

A fórmula processual da prisão temporária – instrumento jurídico utilizado para a concretização das prisões para oitiva de acusados – definitivamente não se presta aos abusos que vêm sendo praticados por algumas autoridades judiciárias, para quem a liberdade de pessoas acusadas (e não condenadas) pela polícia constitui um mero detalhe. É como se um agente do Estado brasileiro investido da função jurisdicional tivesse amplo direito de disposição sobre a liberdade de todos aqueles que vivem sob o seu império, pensamento que é contrário aos mais comezinhos princípios de convivência social e de exercício do poder sob os ditames de uma Constituição.

É assustador que o Chefe do Poder Executivo ocupe cadeia de rádio e televisão para exaltar o combate à corrupção e à ilicitude utilizando aquelas prisões como paradigma do suposto novo momento que o Brasil vive. Primeiro, porque se prisões há, ainda que fora dos padrões constitucionais, tal se deve às autoridades judiciárias que as determinam, e não às autoridades executivas que meramente cumprem ordens judiciais. Segundo, e alguém deveria explicar isto àquela autoridade do Poder Executivo, prisão temporária não representa condenação, nem acerto da ordem para prender; somente a condenação final dos acusados é que indicará a culpa daqueles já recolhidos ao cárcere.

Neste passo, cabe a indagação: e se ao final do devido processo legal, o indivíduo, antes preso e recolhido ao cárcere por cinco ou dez dias, for declarado inocente, muitas vezes pela mesma autoridade que açodadamente determinou aquela prisão? Creio que isto ocorrerá com a grande maioria dos casos, haja vista a circunstância de que após a oitiva, os acusados têm sido liberados pela autoridade judiciária e raramente o Ministério Público tem requerido prisões preventivas, face à ausência de indicativos de culpa e preenchimento dos requisitos legais para tal prisão.

Como ensina a teoria jurídica, bastará ao acusado e preso, posteriormente inocentado, promover ação de reparação de danos patrimoniais e morais. Todavia, um ingrediente deve ser adicionado ao debate. Embora a Constituição Federal determine a responsabilidade objetiva do Estado Brasileiro por ações ilegais praticadas por seus agentes, o que significa que o lesado sequer precisa demonstrar a culpa ou dolo destes agentes, penso que devemos retirar da sociedade brasileira mais este ônus, imputando a responsabilidade patrimonial diretamente sobre as autoridades que praticaram os atos lesivos, uma vez que o desprezo manifestado pela Constituição com aquelas ações constitui prova cabal da negligência e da imprudência, reveladores da culpa necessária para a viabilização da reparação.

Em alguns casos o descalabro vai ao ponto de se impedir que os acusados possam exercer o direito de recorrer da decisão judicial que determina a prisão, pois os advogados sequer têm amplo e rápido acesso ao processo, sob o argumento de que o mesmo é sigiloso. Nem nos momentos mais duros de arbítrio vividos pelo Brasil, chegou-se ao ponto de impedir que o acusado celeremente recorra ao Poder Judiciário tenteando reverter uma decisão que lhe é desfavorável.

Escritórios de advocacia são invadidos pela polícia, em cumprimento de ordens judiciais, simplesmente porque têm entre seus clientes pessoas acusadas (e não condenadas, repita-se) da prática de ilícitos, em manifesto desrespeito à inviolabilidade do exercício da advocacia, esta indispensável à Administração da justiça, não porque os advogados assim proclamam mas porque assim determina a Constituição Federal (art. 133).

Recentemente, diretores, empregados e advogados (alguns simples correspondentes dos reais outorgados pela empresa, sem qualquer função de assessoria jurídica) foram presos porque existe mera suspeita de crimes contra a ordem tributária. Ocorre que, pelo que noticia a imprensa, sequer há auto de infração lavrado, o que permitiria a apuração do suposto crédito tributário sonegado pela empresa bem como a imediata liquidação do débito com o Fisco, cuja conseqüência legal (creio que ainda há lei neste país) seria a extinção da punibilidade criminal.

Vale dizer, pessoas são presas porque há suspeita de terem praticado crime de sonegação fiscal relativamente a um crédito tributário que não é sequer lançado e liquidado pelas autoridades fiscais, possivelmente para não permitir que os acusados recolham o tributo que lhes é exigido e gozem da garantia que a lei lhes concede de não serem processados criminalmente por crimes relativos a tributos eventualmente sonegados, mas já recolhidos aos cofres públicos no momento do oferecimento da denúncia criminal.

Não faço julgamento moral quanto a este benefício aos acusados de crimes contra a ordem tributária. A verdade é que ele existe e aprendi que o respeito às liberdades individuais depende da obediência à Constituição e às leis. Os juízos morais sobre o acerto das leis não podem sobrepujar a autoridade do direito. O Parlamento é a instância própria para o debate acerca da alteração das normas jurídicas, que devem ser respeitadas acima das preferências pessoais.

Ao que parece, a Ordem dos Advogados do Brasil pretende levar o tema ao Conselho Nacional de Justiça, órgão adequado para apurar desvios de autoridades judiciárias. No entanto, mais importante do que este providência, é a vigilância diária de todos, sobretudo daqueles que se julgam imunes ao arbítrio, porque este a todos e a qualquer um pode vitimar, como os dias perigosos que vivemos demonstram.