Execução Hipotecária

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 23.08.2005

 

A hipoteca é direito real de garantia sobre coisa alheia. Sua origem remonta ao Direito romano, onde embora não tenha sido objeto de nenhuma lei em especial, foi resultante da atividade jurisprudencial. A hipoteca (denominada pignus obligatum) surgia quando o arrendatário de imóvel comprometia o seu gado e escravos para garantir ao arrendante o pagamento dos aluguéis devido em face do arrendamento imobiliário. A palavra hypotheca decorre da codificação das leis romanas operada por Justiniano no século VI.

O bem dado em garantia de dívida hipotecária não sai da posse direta do devedor. No Direito brasileiro, apenas bens imóveis e seus acessórios, os domínios direto e útil, estradas de ferro, recursos naturais, navios e aeronaves podem ser objeto de garantia hipotecária. O credor, vencida e não paga a dívida, pode ingressar com ação de execução para fazer valer o seu crédito, garantido pelo imóvel hipotecado pelo devedor. Importante observar que as partes não podem contratar que o não pagamento da dívida transfere ao credor hipotecário a propriedade do bem dado em garantia pelo devedor, o que configuraria pacto comissório, vedado pelo Direito.

O Direito romano clássico admitia que as partes, por meio da lex comissoria, estabelecessem que o não pagamento da dívida pelo devedor transformava o credor hipotecário em proprietário do bem dado em garantia. Esta possibilidade foi proibida pelo Imperador Constantino no ano de 326, fixando-se o princípio do pactum de distrahendo segundo o qual não paga a dívida garantida por hipoteca, deve o credor promover pelos meios legais (atualmente através do Poder Judiciário) a venda da coisa hipotecada, quitando o seu crédito com o produto da venda e devolvendo ao devedor eventual excesso.

A publicidade é requisito fundamental da hipoteca, de modo que para se constituir efetivamente como direito real de garantia deve ser levada à inscrição junto ao Tabelionato de Registros Imobiliário. A hipoteca convencional (mais comum) constitui-se por instrumento público e representa ônus real sobre os bens imóveis dados em garantia após a sua inscrição no registro imobiliário.

A especialização é outro princípio crucial da hipoteca e consiste na determinação precisa e pormenorizada do bem imóvel dado em garantia, com sua descrição, localização e demais elementos identificadores, do montante da dívida, prazo, juros, penalidades, enfim todos os aspectos que permitam definir os contornos do vínculo obrigacional objeto da garantia.

O contrato de hipoteca constitui título executivo extrajudicial, suficiente para o credor promover ação de execução para recebimento do seu crédito, uma vez verificado o inadimplemento do devedor. O processo de execução por quantia certa contra devedor solvente (o mais  comum) contempla três fases: a penhora, a avaliação e a arrematação do bem suficiente para a quitação da dívida executada.

Ocorre que o processo de execução de dívida garantida por contrato de hipoteca é dotado de uma importante peculiaridade, qual seja, a desnecessidade da fase de avaliação (do bem hipotecado) que é levado à leilão para pagamento da dívida. Esta circunstância ocorre na hipótese em que os contratantes fazem constar da escritura pública de hipoteca o valor entre si ajustados para os imóveis hipotecados, valor que, devidamente corrigido, será a base para as arrematações, adjudicações e remissões, consoante o que estabelece o artigo 1.484 do Novo Código Civil, regra já constante do art. 818, primeira parte do antigo Código Civil..

Com  efeito, se as partes na escritura pública de hipoteca definem um valor para o imóvel hipotecado, torna-se desnecessária a determinação judicial para que se promova nova avaliação do bem hipotecado. A lei é sábia, pois se credor e devedor já definiram um valor para o imóvel dado em garantia hipotecária de dívida, não há razão para que o Poder Judiciário no processo de execução determine nova avaliação do mesmo imóvel.

Esta norma do artigo 1.484 do Código Civil tem sido pouco observada pelos operadores do direito, e não são raros os casos de infindáveis e tormentosos incidentes processuais envolvendo questões relativas à avaliação de bem hipotecado, quando sequer a fase processual da avaliação se faz necessária, uma vez que as partes já convencionaram sobre o adequado valor do bem oferecido em garantia hipotecária pelo devedor, através de escritura pública levada ao Registro Imobiliário.

Definido contratualmente o valor de avaliação do bem hipotecado, as partes não têm o direito subjetivo de requerer nova avaliação no bojo do processo de execução, face à imperatividade da norma constante do art. 1.484 da lei civil. Da mesma forma, age contra a lei, o juiz que, na hipótese tratada, determina a efetivação de nova avaliação do bem hipotecado. Exercida pelas partes a opção legal de fazer constar da escritura de hipoteca o valor de avaliação do bem oferecido em garantia, os contratantes perdem o direito à nova avaliação deste bem durante o processo de execução, caso contrário aquela norma civil perderia todo o seu sentido prático e lógico.

Atualmente nem cabe a alegação, sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça em antigo precedente (REsp 5.623), de que a desnecessidade de nova avaliação – antes também prevista no art. 818 do antigo Código Civil de 1916 – teria sido revogada pela norma do art. 684 do Código de Processo Civil de 1973, norma esta que teria exaurido as hipóteses em que se revela prescindível a avaliação do bem garantido, pois a norma do antigo CC foi reproduzida pelo atual CC (art. 1.484). Desapareceu, assim, com o novo Código Civil o fundamento daquele precedente jurisprudencial, pois se a norma do velho CC supostamente foi revogada pelo CPC, aquela foi novamente contemplada pelo atual CC (de 2002).

No atual estágio de economia estabilizada vivido pelo Brasil, pressuposto fático de toda a reflexão ora construída, muitos dos incidentes processuais da execução hipotecária desapareceriam se os operadores do direito atentassem para a desnecessidade de avaliação do bem imóvel hipotecado, quando o mesmo já foi avaliado pelas partes no contrato com pacto adjeto de hipoteca, o que contribuiria positivamente para a celeridade processual e a imagem do Poder Judiciário.