Protesto de Dívida

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 30.08.2005

 

Questão jurídica que revela inegável interesse prático concerne à definição dos direitos de crédito possíveis de serem levados a protesto extrajudicial pelo credor, mediante a apresentação do título representativo da dívida ao Tabelionato de protesto.

Segundo expressa definição legal (art. 1º da Lei nº 9.492/97), protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e documentos de dívida. A doutrina jurídica não tem dúvidas de quais sejam os títulos de crédito (cheque, nota promissória, duplicata, entre outros); o problema reside em definir quais são os “documentos de dívida” a que alude o referido dispositivo legal.

A possibilidade de protesto de títulos não cambiais já existia na legislação brasileira, pois a Lei de Falências (DL 7.661/45) estabelecia que mesmo os títulos não sujeitos a protesto deveriam ser protestados para os fins falimentares. A legislação (Lei nº 4.728/65) também permitia que o contrato de câmbio pudesse ser levado a protesto para que se transformasse em instrumento hábil a instrumentar a ação de execução promovida pelo contratante credor.

Sempre foi entendimento predominante na doutrina que, em princípio, objeto de protesto seriam apenas documentos que juridicamente tivessem a natureza de títulos de créditos (salvo evidentemente as expressas aberturas legais, como as tratadas no parágrafo anterior), conclusão derivada do Decreto 2.044, de 1908, que disciplinou a nota promissória, a letra de câmbio e o protesto cambial, estabelecendo que a falta ou recusa, total ou parcial, de pagamento prova-se pelo protesto.

Com a Lei 9.492/97, surgiu o desafio de definir quais são os documentos de dívida que, embora não tenham a natureza de títulos de créditos, podem ser levados a protesto.  Uma interpretação mais ampla do conceito “documentos de dívida” pode autorizar inclusive que sejam levados a protesto dívidas constantes de extratos de cartões de crédito, contas de telefone, água e luz e, no limite, até dos famigerados boletos bancários e fichas de compensação, emitidos unilateralmente pelo credor.

Objetivando melhor esclarecer a questão, o Estado de São Paulo editou a Lei 10.710/2000, segundo a qual compreendem-se como títulos e outros documentos de dívidas sujeitos a protesto comum ou falimentar os títulos de créditos, como tais definidos em lei, e os documentos considerados como títulos executivos judiciais ou extrajudiciais pela legislação processual, inclusive as certidões da dívida ativa de interesse da União, do Estado e dos Municípios.

Vale dizer, além dos títulos de crédito, podem ser levados a protesto no Estado de São Paulo, como títulos executivos judiciais, a sentença condenatória proferida no processo civil, a sentença penal condenatória transitada em julgado, a sentença homologatória de conciliação ou de transação, a sentença estrangeira devidamente homologada, o formal e a certidão de partilha e a sentença arbitral. Podem ser protestados também todo o rol de títulos executivos extrajudiciais previstos no artigo 585 do Código de Processo Civil, onde estão incluídas as certidões de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Embora a disciplina legal paulista tenha tido o condão de afastar a possibilidade de protesto de outros documentos que não se enquadrem no conceito de títulos executivos, como o extrato de cartão de crédito e as contas de água, luz e telefone, o regramento nela albergado não está imune ao debate e limitações.

Com efeito, no que tange aos títulos judiciais (sentenças judiciais), somente pode-se cogitar de serem levadas a protesto aquelas nas quais a condenação seja dotada de liquidez e certeza, afastando-se, desde logo, a possibilidade de protesto de sentenças ilíquidas e genéricas. Vale dizer, a sentença digna de ser protestada somente é aquela na qual possa se verificar com clareza o quantum da condenação imposta ao devedor (parte vencida na ação). Sem a presença de liquidez e certeza da condenação, incabível é o protesto do título executivo judicial.

Maior polêmica ainda suscita o protesto das certidões de dívida ativa das Fazendas Públicas, haja vista o regime jurídico especial, de obediência a estrita legalidade, a que está sujeito o seu processo de constituição e cobrança. Não são raros os títulos executivos extrajudiciais emitidos pelas Fazendas Públicas (certidões de dívida ativa) eivados de completa ilegalidade, seja porque fundados em atos desprovidos de valor jurídico, seja porque muitas vezes contemplam dívidas já pagas pelo contribuinte. Diante deste quadro fático, permitir que tais documentos sejam levados a protesto, causando com isso sérias conseqüências a imagem do suposto devedor (contribuinte), seria uma extrema temeridade.

O protesto pelos Fiscos de certidões de dívida ativa que albergam créditos tributários inexistentes ou ilegais, que, como se sabe, não são raros, poderá ensejar uma enxurrada de ações contra as Fazendas Públicas promovidas pelos contribuintes lesados pelo abalo sofrido em sua imagem, o que de fato terá ocorrido. Neste caso, o protesto de créditos fiscais mais do que atender ao interesse público poderá gerar um desnecessário ônus aos cofres públicos. Por essas razões, é que já há algumas decisões judiciais isoladas vedando a possibilidade de protesto de certidões de dívida ativas das Fazendas Públicas.

O ideal seria que a que a lei federal enumerasse exaustivamente (numerus clausus) os títulos de dívidas possíveis de serem levas a protesto, afastando a incerteza e contribuindo para a segurança das relações jurídicas envolvendo o crédito, privado ou público, de resto, um dos objetivos sagrados do instituto do protesto de dívida.