O princípio da proporcionalidade nas multas do IVA

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 02.02.2020

 

A inserção de um IVA no Brasil, proposta na reforma tributária em debate no Congresso Nacional, exigirá uma substancial revisão dos mecanismos de imposição de multas atualmente existentes no âmbito do ICMS, haja vista a necessidade de equilíbrio entre os princípios da proporcionalidade e da neutralidade, este último pedra fundamental do novo imposto.

Se o Brasil pretende realmente implantar um IVA, importante acompanhar as práticas de outros países sobre o tema, notadamente o que ocorre na União Europeia, que tem uma longa experiência com este imposto.

A propósito do tema, o Tribunal de Justiça da União Europeia – TJE, no caso EN.SA., proferiu importante decisão reconhecendo que o princípio da proporcionalidade constitui regra limitadora dos Estados-Membros na disciplina de sanções impostas ao exercício irregular do direito de crédito do IVA pago pelo contribuinte, mesmo em caso de operações reconhecidamente fictícias.

A EN.SA. é uma sociedade italiana de produção e distribuição de eletricidade que efetuava operações circulares, com outras empresas do mesmo grupo, de compra e venda de energia pelo mesmo preço, documentando as operações, debitando e creditando os valores sobre ela incidentes e não gerando, assim, qualquer prejuízo ao Fisco italiano. O objetivo da empresa era aumentar o seu faturamento e com isso obter maiores financiamentos bancários.

Entretanto, o Fisco italiano procedeu à retificação das declarações de IVA da EN.SA., rejeitou a dedução do IVA relativo a operações de compra de energia elétrica (créditos) que considerou fictícias, por falta de transmissão efetiva da energia na operação de saída, e aplicou à empresa uma multa em um montante igual ao IVA indevidamente deduzido. Vale dizer, o Fisco glosou o crédito do imposto pago na aquisição e impôs uma multa de 100% sobre o crédito glosado.

O caso chegou ao TJUE que decidiu que o caráter fictício da operação impede a dedutibilidade do imposto sobre ela incidente, desde que os Estados-Membros assegurem a possibilidade de o contribuinte, demonstrando a boa-fé, recolha, em tempo útil, o imposto indevidamente debitado, eliminando completamente o risco de perda de receitas fiscais.

Decidiu ainda que as vendas fictícias de eletricidade realizadas de forma circular entre os mesmos operadores, pelos mesmos montantes, não deram origem à perda de receita fiscal. No entanto, a Diretiva IVA, à luz dos princípios da neutralidade e da proporcionalidade, autoriza uma regulamentação nacional que impede a dedução (crédito) do IVA relativo a operações fictícias, não obstante imponha ao contribuinte que pratica vendas fictícias o dever de recolher IVA sobre tais operações.

Quanto à multa, no entanto, o TJUE decidiu pela sua inaplicabilidade por violação ao princípio da proporcionalidade. Os Estados-Membros, não obstante tenham competência (art. 273, Diretiva IVA) para prever sanções para garantir a cobrança correta do UVA e evitar a fraude, devem exercer tal competência em obediência aos princípios da União, especialmente os da proporcionalidade e da neutralidade do IVA, de modo que as sanções estabelecidas pelos Estados-Membros não devem ir além do necessário para atingir os objetivos de adequada cobrança do imposto e de combate à fraude, nem ameaçar a neutralidade do imposto.

Segundo o TJUE, “para avaliar se uma sanção é conforme com o princípio da proporcionalidade, deve ter‑se em conta, nomeadamente, a natureza e a gravidade da infração que esta sanção visa punir, bem como as modalidades de determinação do seu montante”. No caso, o direito italiano para garantir a cobrança exata do IVA e evitar a fraude, prevê uma multa que não é calculada em função da dívida fiscal do sujeito passivo, mas sobre o montante do imposto indevidamente deduzido por este último.

Considerando que a dívida fiscal do sujeito passivo para efeitos de IVA é igual à diferença entre o imposto devido pelos bens e serviços prestados a jusante (débitos) e o imposto dedutível relativo aos bens e serviços adquiridos a montante (créditos), o montante do imposto indevidamente deduzido (crédito) não corresponde necessariamente a essa dívida. Assim, uma multa igual a 100% do montante do crédito deduzido, aplicada sem ter em conta o fato de o mesmo montante de IVA ter sido regularmente pago a jusante e de o Tesouro Público não ter sofrido, por conseguinte, qualquer perda de receitas fiscais, constitui uma sanção desproporcional em relação ao objetivo que persegue.

Portanto, para o Tribunal de Justiça Europeu as multas no âmbito do IVA devem, em princípio, incidir sobre o imposto devido e não sobre o imposto indevidamente creditado, por força dos princípios da proporcionalidade e da neutralidade.

E mais: nem sempre uma dedução tributária indevida deve ser acompanhada de multa, bastando a glosa do imposto creditado indevidamente. Este entendimento é completamente diferente do que atualmente estabelece a legislação brasileira do ICMS.